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23 abril 2024

Ideal vs. real: como lidar?

No dia 2 de César de 170 (23.4.2024) realizamos a prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua undécima conferência (dedicada ao regime público).

No sermão abordamos a oposição entre o ideal e o real e como agir considerando a distância entre ambos.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://encr.pw/iKkQa) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/snJFS). O sermão começou aos 48 min 30 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.

*   *   *

O ideal vs. o real: como lidar? 

-        A questão desta semana é ao mesmo tempo bastante simples e extremamente importante: como lidar com a oposição entre o ideal e o real?

o   Esse tema foi sugerido pelo nosso amigo Hernani G. Costa, nos seguintes termos: “O equilíbrio entre o preenchimento do ideal e a frustração de quando não o realizamos. Como agir diante disso? Como conjugar a vida vivida em nome de um ideal, diante de uma realidade que por tantas vezes parece desmenti-lo?”

-        Essa questão apresenta muitos aspectos, vários deles à primeira vista insuspeitos:

o   Em um primeiro lugar, há o aspecto moral (“psicológico”), em relação a como lidar com a distância entre o que se deseja e o que se obtém

o   Mas o aspecto moral implica o conhecimento da realidade (científico)

o   Também há as questões relativas à idealização da realidade, ou seja, são aspectos artísticos

o   Há também a idealização no sentido do que é bom, ou seja, é um outro aspecto moral

o   Tudo isso se reúne nas leis da filosofia primeira, em particular na primeira lei, a chamada “lei-mãe”

-        Comecemos pela oposição entre o real e o ideal, isto é, a oposição entre a realidade vivida e o que gostaríamos que ocorresse

o   Duas ou três observações iniciais:

§  Trata-se verdadeiramente de uma oposição entre o real e o ideal

§  Os comentários abaixo concentrar-se-ão no comportamento individual de cada um de nós

§  Além disso, concentrar-nos-emos nas dificuldades enfrentadas e, ainda mais, nos fracassos que por vezes temos que enfrentar

o   Todos vivemos enfrentando os desafios da vida; esses desafios são “desafios” porque nos impõem dificuldades, que devem ser enfrentadas, ou seja, que têm que ser enfrentadas: todos temos contas para pagar, por isso todos temos que trabalhar; temos contas para pagar porque temos necessidades que têm que ser satisfeitas: alimentação, moradia, saúde, transporte, relacionamentos, previdência, divertimentos

o   Os desafios que indiquei acima são todos eles materiais; mas é claro que viver é muito mais que só se preocupar com questões materiais; como sabemos, sem negar a importância desses aspectos, viver significa acima de tudo ter ideais, planos, projetos; significa viver orientado por valores e concepções do que é bom e belo

§  É importante dizê-lo com todas as letras para termos clareza a respeito: a vida orientada por valores e idéias existe por si só, independentemente das preocupações materiais e, na verdade, com freqüência até em oposição a elas

§  Citamos inicialmente as preocupações materiais apenas porque elas são fáceis de entender e porque elas realmente se impõem a todos

§  Mas é claro que há toda uma série de outras dificuldades na vida: entendimento falho da realidade; necessidade de cooperação com outras pessoas; disposições pessoais; acidentes tecnológicos; desastres naturais etc.

o   O que se apresenta, então, é uma oposição entre o que nós, como seres humanos, desejamos e aquilo que, enfrentando os desafios e as dificuldades, conseguimos realizar: às vezes conseguimos, às vezes fracassamos

o   Como se diz, o sucesso tem muitos pais e mães, mas o fracasso é sempre órfão: ninguém gosta de fracassar, seja porque evidentemente o fracasso conduz a um sentimento muito desagradável, seja porque ninguém gosta de assumir a responsabilidade pelo fracasso

§  O fracasso é desagradável; com freqüência sentimos a sensação de derrota, de incompetência, de incapacidade, até mesmo de merecimento no fracasso

o   Para lidarmos com isso e, de qualquer maneira, para obtermos o sucesso, temos que nos preparar das mais diferentes maneiras:

§  Temos que lembrar que cada pessoa é uma pessoa, cada empreendimento é um empreendimento diferente, cada situação é uma situação específica

§  É necessário conhecer a realidade, (1) para sabermos se nosso projeto é realizável; em seguida, (2.1) para sabermos quais as condições e as possibilidades de sucesso; (2.2) inversamente, quais as condições e as possibilidades de fracasso)

§  Assim, a partir do conhecimento da realidade e, de qualquer maneira, é necessário estarmos preparados, antecipadamente, para maiores dificuldades ou mesmo para um eventual fracasso

·         Essa preparação é tanto material quanto emocional

§  Caso fracassemos, é sempre bom e sempre importante lembrarmos a ótima observação de Winston Churchill: “O sucesso nunca é definitivo e o fracasso nunca é fatal”; em outras palavras, devemos estar sempre preparados para reerguer-nos, ou seja, devemos ter a resiliência

§  Todos podemos, e até devemos, lamentar a derrota durante um certo período de tempo; quanto mais importante essa derrota, maior o tempo despendido; mas o luto não pode durar para sempre e, no final das contas, trata-se de uma questão de amadurecimento: quem é mais maduro passa mais rapidamente pelo luto

·         Na verdade, inversamente, em certo sentido o amadurecimento consiste na capacidade de cada um de lidar com as dificuldades e com os fracassos, não se deixando abalar em demasia com eles, sabendo olhar para os fracassos com serenidade (o que não equivale a olhá-los com satisfação), superando-os com maior facilidade e seguindo em frente

§  Quando acontece o fracasso, ele pode ter ocorrido devido a muitos motivos: falta de preparo intelectual, falta de preparo moral, falta de preparo técnico, falta de cooperação, eventos inesperados

§  É sempre importante avaliar cuidadosamente cada uma dessas possibilidades, para (1) determinar os diversos fatores que conduziram ao fracasso: com isso, (2) é possível determinar as responsabilidades; (3) em uma eventual nova tentativa, esses fatores têm que receber mais atenção; finalmente, (4) conseguir determinar as diversas responsabilidades integra o processo de luto e, daí, o de resiliência e amadurecimento

-        Em suma, do ponto de vista estritamente individual, na oposição entre o ideal e o real, o problema que nos conduz a considerar o “como lidar?” é como lidar com as dificuldades e, em particular, com o fracasso

o   A resposta para isso é tão simples de enunciar quanto difícil de executar: preparar-se o máximo possível com antecedência em termos morais (“psicológicos”), intelectuais e práticos e, no caso do fracasso, saber avaliar os fatores que conduziram ao fracasso

o   O entendimento intelectual ajuda na preparação moral prévia e, depois, no caso de fracasso, auxilia na resiliência

-        Como sugerimos no início, os comentários acima apresentam parte da questão; modestamente fizemos observações que seriam um começo de apoio: mas foi apenas um começo

o   Vejamos agora outros aspectos do tema – aspectos que são fundamentais de serem afirmados em conjunto com as observações acima, a fim de lidar-se de maneira adequada (digna, madura, eficiente) com as dificuldades e os fracassos na vida

o   Esses outros aspectos são: (1) aspectos intelectuais e científicos; (2) questões de moralidade; (3) aspectos artísticos

-        Qualquer projeto exige que conheçamos a realidade:

o   O conhecimento da realidade, seja abstrato, seja concreto, é condição fundamental para qualquer atividade e, bem vistas as coisas, para a vida

o   A realidade, nesse caso, consiste principalmente nas condições objetivas do mundo, ou seja, aquelas que não dependem da vontade humana (e que, com freqüência, opõem-se à vontade humana)

§  Para evitar confusões e mal-entendidos: as condições sociológicas gerais e também as morais integram, no presente caso, as condições objetivas

o   Como vimos antes, é necessário conhecer a realidade para podermos determinar as possibilidades de êxito de qualquer projeto e, inversamente, as suas possibilidades de fracasso; com isso, podemos preparar-nos em termos práticos (reunindo os elementos necessários para o sucesso do empreendimento) e em termos morais (ficando de sobreaviso para as dificuldades e, ainda mais, para um eventual fracasso – e, assim, criando uma espécie de “almofada” moral)

o   O conhecimento abstrato da realidade consiste nas leis naturais, isto é, das relações necessárias de sucessão ou coexistência dos fenômenos

§  O conhecimento da realidade (abstrato e concreto) conduz a uma idealização da realidade, basicamente em termos apenas intelectuais: o “ideal”, aí, é uma elaboração intelectual e simplificada da realidade

o   Esse conhecimento tem que estar ligado sempre a uma regra prática de sabedoria, que consiste em determinar o que podemos e o que não podemos fazer; ou, dito de outra forma, o que podemos e o que não podemos mudar

§  Na verdade, a determinação do que podemos e do que não podemos mudar antecede sempre a proposição de qualquer projeto

§  Em relação ao que podemos mudar, seguindo as leis naturais, é necessário avaliar se é moralmente correto; no que se refere ao que não podemos mudar, a única possibilidade é a digna resignação

·         Em outras palavras, a digna submissão (a digna aceitação) é sempre o único caminho possível tendo em vista as leis naturais, seja reconhecendo as possibilidades de atuação, seja reconhecimento a impossibilidade de ação

§  Inversamente, não faz sentido desejar algo que vai contra as leis naturais: desejar algo francamente impossível implica uma vontade caprichosa e o fracasso certo

·         A “resiliência” nesse caso consiste não em retomar o projeto, mas em abandoná-lo e retomar a vida com outros objetivos

·         A maturidade, nesse caso, consiste em reconhecer a inutilidade dos esforços e a necessidade de mudar de objetivos: não há dúvida de que isso pode exigir maiores esforços, que, por sua vez, aumentarão o “grau” de maturidade

-        Também há os vários aspectos relativos à moralidade dos ideais

o   Tudo o que comentamos acima pressupõe que os nossos objetivos são moralmente corretos

o   Mas é claro que a avaliação moral deve sempre ser feita – e, além disso, deve sempre ser feita antes de qualquer outra avaliação

o   A moralidade das ações é sempre dada pelo altruísmo: melhorará o bem-estar? Não prejudicará? Estimulará o altruísmo? Não estimulará o egoísmo?

§  Vale notar que a “bondade”, aí, consiste no altruísmo e que a “maldade” consiste no estímulo direto e único do egoísmo (incluindo o sadismo); não há que falar em “bondade” e “maldade” como se elas existissem por si sós, como abstrações personificadas (ou seja, metafísicas)

o   Os valores e as idéias que são moralmente corretos – ou seja, que estimulam e/ou realizam o altruísmo – podem tornar-se “ideais”, ou seja, concepções (1) abstratas da realidade que (2) indicam os bons caminhos a seguir

§  É importante insistir: não é porque algo é factível que também é moralmente desejável e que, portanto, deve ser feito

o   É igualmente importante lembrar que, no caso de projetos moralmente corretos, com freqüência um fracasso momentâneo não pode impedir a continuidade dos esforços: em outros termos, um fracasso momentâneo não nega nem invalida o ideal

§  Isso se aplica às dificuldades, aos desastres e também às injustiças da vida

§  A palavra “momentâneo” é central aqui: por vezes, um ideal factível não se realiza devido a dificuldades materiais, a dificuldades sociais amplas, a dificuldades políticas; mas cumpre perceber que, se em um determinado momento algo não é possível, em outro momento, e/ou com outros esforços, esse projeto pode vir a realizar-se

o   Ainda no que se refere a moral e à oposição entre o ideal e o real:

§  Como “agimos por afeição”, todas as nossas ações são moralmente motivadas – daí a necessidade de que essa motivação seja altruísta

§  Mas é claro que os sentimentos não dão apenas a partida nas ações: são os sentimentos que nos mantêm atuantes, mesmo (e até principalmente) em face das adversidades

·         Os bons sentimentos de nossos familiares e nossos amigos confortam-nos e apóiam-nos, seja durante as dificuldades, seja no fracasso

·         Assim, é importante lembrar: não existimos no vazio, ou melhor, não existem indivíduos, mas apenas agentes da Humanidade; todas as nossas ações são propostas, elaboradas e levadas a cabo na, pela e para a Humanidade

§  Além dos sentimentos e das idéias, a natureza humana atua por meio dos instintos práticos: a coragem, a prudência e a perseverança

·         A coragem leva-nos a agir; é o impulso para a frente

·         A prudência são os cuidados que tomamos, para evitar problemas (ou problemas excessivos, ou problemas desnecessários, ou problemas inesperados)

·         A perseverança é o que nos mantêm em atividade, ao longo do tempo e a despeito das dificuldades

o   Assim, a resiliência é uma forma de perseverança, em que temos que retomar nossas atividades quaisquer e, se for o caso, retomarmos os esforços das ações que anteriormente fracassaram

-        Há ainda outros aspectos a considerar na oposição entre o ideal e o real; todavia, esses outros aspectos serão somente citados aqui

o   As observações acima se concentram nos indivíduos, nas dificuldades morais que cada um enfrenta ao realizar seus projetos e, em particular, ao fracassar: mas, como Augusto Comte afirmava desde o início de sua carreira e como consagrou na Religião da Humanidade, de real só existe a Humanidade

§  Isso significa que todos os projetos só podem realizar-se pela Humanidade, devido aos inúmeros fatores envolvidos:

·         O altruísmo realiza diretamente a Humanidade

·         Os projetos construtivos (não violentos, não destruidores) desenvolveram-se ao longo da história

·         Da mesma forma, nossas concepções sobre a realidade também se desenvolveram ao longo da história

·         Qualquer projeto implica, sempre, a coletividade, seja nas idéias, seja nas palavras, seja na necessária colaboração de qualquer atividade

·         Por fim – e de maneira central para esta prédica –, no caso de maiores dificuldades e/ou de fracasso, o amparo é sempre dado pela Humanidade, seja com o afeto que nossos amigos e familiares dão, seja com as idéias e os valores que nos confortam

o   Como vimos e como todos sabemos, a palavra “ideal” apresenta uma importante ambigüidade:

§  Ela pode ser uma concepção abstrata da realidade e/ou pode ser u’a meta considerada correta

·         Temos aí as partes que cabem ao cérebro e ao coração

·         Vale lembrarmos a bela frase de Vauvenargues: “os grandes pensamentos provêm do coração”

§  Além disso, há o espaço para a imaginação e, portanto, para as artes

·         Não podemos esquecer que as artes idealizam a realidade, ou seja, descrevem um cenário que simplifica o mundo e que, ao mesmo tempo, é desejável

·         As artes, então, ajudam a inspirar-nos e a ter coragem; enquanto enfrentamos dificuldades, elas confortam-nos, de modo que apóiam a perseverança; por fim, no caso do fracasso, é fora de dúvida a importância que elas apresentam para o conforto moral, para a resiliência e para o nosso amadurecimento

o   O papel da idealização – considerando todos os aspectos indicados acima, incluindo suas relações com a realidade – é resumido, sintetizado e/ou pressuposto na primeira lei da filosofia primeira, cuja importância é tão grande que é chamada de “lei-mãe”: “Formar a hipótese mais simples e mais simpática que comporta o conjunto dos dados a representar”        

25 março 2022

Hernani Gomes da Costa: "Positivismo e psicanálise - teorias e psicoterapia"

No dia 15 de março, durante a segunda sessão do Curso livre de política positiva, durante a exposição surgiu uma questão: considerando a importância da subjetividade, quais seriam as relações entre o Positivismo e a psicanálise? Essa questão, por mais interessante e sugestiva que seja, não poderia ser tratada durante o curso - seja porque ela ensejaria, necessariamente, muitas reflexões; seja porque, embora seja necessário falar sobre subjetividade, o curso em si é sobre política e não sobre psicologia; seja enfim porque eu mesmo não tenho condições de responder a essa questão.

Assim, pedi a meu amigo Hernani Gomes da Costa a grande gentileza de elaborar uma resposta; ele imediatamente começou a respondê-la, concluindo as suas anotações no dia 22 de março, uma semana depois, a tempo da terceira sessão do curso. Nessa terceira sessão eu não teria condições de ler a íntegra da resposta; por isso me limitei a apenas citar os quatro aspectos indicados inicialmente pelo Hernani; mas, com a autorização do autor, formatei o texto e publico-o agora, na forma abaixo.

Espero que gostem e que apreciem essas reflexões!

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Positivismo e psicanálise - teorias e psicoterapia

Hernani Gomes da Costa


Introdução

Uma forma que me parece bastante fecunda de começar a examinar a relação entre a psicanálise e o positivismo consiste em distinguir logo de início a teoria psicanalítica de sua correspondente técnica psicoterápica e, em seguida, comparar a primeira à Moral Teórica e a segunda à Moral Prática. Embora o caráter metafísico da psicanálise deva oferecer, tanto em um caso como mesmo no outro, um contraste marcante com o espírito positivo, isso não nos deve demover de buscar entre essas duas grandes concepções da alma humana o maior número possível de pontos de contato, pontos esses, aliás, que devem poder formar toda uma base a partir da qual se poderá fazer a psicanálise percorrer, ela própria, a lei dos três estados.

Moral Teórica e teoria psicanalítica

Devo assinalar quatro grandes pontos de contato, cujo conjunto, assim me parece, chega mesmo a suplantar todas as diferenças e oposições que decerto existem entre essas duas formulações pioneiras; são elas:

1)                 primado da emocionalidade sobre a racionalidade;

2)                 identidade fundamental das leis naturais que regulam os estados de saúde e de doença mental;

3)                 plena caracterização do fenômeno mental como distinto dos (e irredutível aos) processos químicos, biológicos e sociológicos que o acompanham e malgrado estejam-lhe associados indissoluvelmente; por fim,

4)                 valorização da vida onírica como legítima (e segundo Freud como preferencial) via de acesso ao conhecimento e ao aperfeiçoamento profundo de si.

Examinemos agora, um a um, a relevância desses quatro pontos.

1) Primado da emocionalidade sobre a racionalidade

A grande revolução esboçada por Franz Gall e sistematizada por A. Comte sobre o psiquismo humano, segundo a qual se deveria buscar sempre em motivações emocionais as mais fundas raízes dos nossos pensamentos e das nossas ações, precisou esperar por Freud até se traduzir como parte de uma efetiva busca pelo alívio dos nossos transtornos psicológicos. No decorrer da evolução do movimento psicanalítico, não me consta que nenhuma de suas inúmeras dissidências tenha jamais dado ensejo à mínima insurreição contra essa tese, que representa, insistimos, uma semelhança essencial com a concepção positiva da alma. Pelo contrário, esta manteve-se intacta resistindo a todas as demais correntes que haveriam de formar-se na psicologia (mesmo fora da psicanálise) e que no fundo limitaram-se apenas à resolução do problema de identificar, dentre todo o inventário das nossas punções instintivas, a qual delas deveria caber o primado de nossa dinâmica mental.

2) Identidade fundamental das leis naturais que regulam os estados de saúde e de doença mental

O segundo ponto que me parece convir apresentar consiste no modo como tanto a teoria psicanalítica da alma quanto a comtiana formulam a seu próprio modo a identidade comum que subjaz aos fenômenos patológicos e aos que concernem à saúde. Prosseguindo ambas, nesse particular, as bases lançadas por François Broussais, elas vieram estabelecer o continuum que, ligando um desses extremos ao outro, permitem teoricamente que se conceba tanto a recondução da mente da doença para à saúde, quanto sua recaída à doença, e permitem ainda conceber essa dupla passagem como se constituindo, no fundo, de um só e mesmo processo, apenas funcionando em dois sentidos opostos. Foi assim que se tornou possível transpor o abismo em que jaziam ininteligíveis os mais grotescos sintomas psicopatológicos, que doravante puderam ser rastreados até sua origem mais remota e então compreendidos nos termos de uma intrincada deformação daqueles mesmos processos que a mente elabora em seu estado são.

3) O fenômeno mental como distinto dos processos inferiores

É sabido que a escola positivista encontrou profunda resistência do materialismo junto ao mundo acadêmico em que, na menos pior das hipóteses, apenas foi possível acompanhar – de um seguro distanciamento – as concepções comtianas até os estritos limites sugeridos pelo Curso de Filosofia Positiva que faziam então da Moral tão-só o capítulo final da Biologia e o preâmbulo à Sociologia (concebida esta como a última e a mais alta ciência). De fato, em uma atmosfera em que predominavam concepções como as de Carl Vogt (que afirmava ser o pensamento a secreção do cérebro), declarar, como Comte o fez em sua fase religiosa, a identidade própria do fenômeno moral em relação aos da neurofisiologia, inclusive a erguendo acima da Sociologia, era algo que parecia ameaçar a tão sonhada unidade objetiva da ciência materialista, com um retorno à tenebrosas concepções de um espiritualismo teológico ou de um vitalismo metafísico não menos funesto. Esse quadro só mudou a partir dos experimentos de Charcot (um dos mestres de Freud) com pacientes histéricos cujas paralisias parciais exóticas conduziriam a verdadeiros paradoxos se houvessem de ser anatomicamente compreendidas como associáveis apenas a lesões neurológicas. Foram tais experimentos que arrancaram Freud do materialismo vulgar, conduzindo-o a um caminho que, embora não exatamente novo (uma vez que já havia sido apontado por A. Comte e trilhado por seu discípulo Georges Audiffrent), havia, para todos os efeitos, permanecido à margem do mundo acadêmico, sufocado até mesmo pelo littreísmo que ainda hoje passa por ser o positivismo comtiano. Eis aí como foi que em mais esse aspecto fundamental a psicanálise veio assemelhar-se ao positivismo já a partir da própria consideração do fenômeno moral como detentor de um status próprio e superior, que, conquanto subordinado a todos os demais, não se reduz a nenhum deles.

4) Vida onírica como via de acesso ao conhecimento e ao aperfeiçoamento profundo de si

Se, como Freud afirmou, a interpretação dos sonhos é a via régia do inconsciente, então podemos dizer que Comte apresenta-se (no cenário de uma então embrionária Psicologia) como um genuíno precursor não só da psicanálise como do que hoje chamamos sonhos lúcidos. De fato, quanto a isso, Comte escrevera no Catecismo positivista – e, note-se, quase 50 anos antes da publicação dos dois célebres volumes que abrem o século XX e aos quais Freud carinhosamente se referia como “o meu livro de sonhos” – o seguinte: “pode-se esperar que a teoria cerebral conduza finalmente a bem interpretar os sonhos e mesmo a modificá-los, segundo o voto de toda a Antigüidade”. Se livrarmo-nos dos preconceitos que pairam sobre o positivismo, poderemos compreender como foi possível a Comte encetar tamanho adiantamento, uma vez que em uma síntese que sempre tendeu e pretendeu tornar-se plenamente relativa e subjetiva, a valorização da vida onírica não poderia senão corresponder a um dos corolários da própria valorização geral conferida a essa faculdade complexa da imaginação – isto é, ao recurso lógico de elaborar imagens e de intensificá-las deliberadamente. Tal faculdade vem, pois, com a nova síntese, reocupar natural e necessariamente no conjunto da nossa natureza, (e assim também nas concepções e práticas que a ela correspondem) o seu primitivo lugar de honra dignamente reconstituído, tanto quanto em contrapartida deveu-o ser posta sob suspeita e desprezada por um grosseiro academicismo materialista, que aliás perdura até hoje. Acrescente-se a isso que, além da esperança depositada por A. Comte (e compartilhada por Freud) na capacidade de bem interpretar os sonhos, também a expectativa do fundador do positivismo na possibilidade moral representada pelo dom complementar de modificá-los (assunto que, tanto quanto sei, jamais entrou na pauta da obra freudiana) veio enfim realizar-se sob nossos olhos, mediante técnicas do sonho lúcido sistematizadas apenas em meados dos anos 1970.

Moral Prática e técnica psicoterápica psicanalítica

Se na primeira parte de nosso exame foi simples identificar alguns pontos de contato significativos entre as teorias comtiana e freudiana da alma, a presente segunda parte, referente à atuação direta de ambas sobre a subjetividade humana, vem oferecer ao contrário um contraste radical que as torna, a meu ver, antagônicas; o que aliás sugere imediatamente a questão de saber se, afinal, existiria hoje alguma outra linha pedagógica e psicoterápica que melhor se assemelhasse à moral prática conforme concebida por Comte. Examinaremos também esse último ponto. Convém notar, porém, que a morte prematura de Comte representou a catástrofe que privou a Humanidade do que seriam os demais três volumes que se seguiriam ao tratado matemático (único publicado) que forma o primeiro tomo da sua Síntese Subjetiva. Seria justamente no segundo e no terceiro tomo dessa tetralogia há tanto tempo anunciada que Comte trataria de constituir a Moral Teórica e a Moral Prática (ou, como diríamos hoje, a Psicologia e a psicoterapia/pedagogia positivas, respectivamente). Assim, tudo quanto dispõe aquele que deseja debruçar-se hoje sobre tal problema encontra-se disperso heterogeneamente ao longo da obra comtiana, apenas sob forma de indicações mais ou menos incidentais e sumárias. Só o que nos resta fazer, pois, é conjecturar tomando tais bases – sugestivas porém necessariamente incompletas (somadas, é claro, a tudo o mais que a Humanidade conseguiu realizar convergentemente em termos de especulação e de investigação psicológica, psicoterápica e pedagógica) e, a partir daí, inferir (e mesmo assim apenas como mera plausibilidade) como haveriam de constituir-se as suas morais Teórica e Prática. Limitar-nos-emos apenas a indicar o que nos parece esse novo caminho que Comte começava a vislumbrar (e cuja mais precisa caracterização só pôde ser apresentada já em seu leito de morte como em um último ensinamento) e que, se percorrido, guiá-lo-ia – assim nos parece – a uma inteira e nova possibilidade de interação e de compreensão interpessoal, a qual, por sua vez, corresponde, a nada menos que à própria chegada da comunicação humana como um todo ao seu estado positivo.

Para melhor examinar o contraste efetivo entre o modo de operar da psicanálise e da Moral Prática, conviria examinar a proposta desta, indicada já por sua posição mesma na escala enciclopédica. O conceito que emerge de tal posição, e que me parece o mais caracterizador do seu espírito geral, traduz-se na sua condição única (e que apenas aí é possível) de uma plena concretude em que toda abstração torna-se a um tempo tão impossível quanto indesejável. Se à Moral Teórica apenas coube investigar e inventariar o que há de comum a cada individualidade, é à Moral Prática que cabe, ao invés, desenvolver os esforços no sentido de estabelecer as atitudes do que poderíamos chamar de “ciência da excepcionalidade”. Ocupando uma posição singularmente privilegiada na escala dos saberes, fronteiriça às demais artes práticas cujos seis restantes elementos formarão uma hierarquia que descerá sucessivamente da política até as artes ligadas à matemática, a Moral Prática caracteriza-se, de fato, pelo trabalho contínuo de deter-se tão-só em cada indivíduo no seu aqui e agora, ou seja na concentração total de nossa emocionalidade e de nossa atenção em uma determinada pessoa concreta, que se apresenta de fato a nós em um determinado lugar e tempo concreto e que, dessa forma, momento a momento vem revelar-se na qualidade da subjetividade singular e incomparável (ou antes a-comparável) que é. Os elementos únicos para uma tal compreensão não podem, pois, deixar de consistir exclusivamente naquilo que essa própria pessoa concreta venha revelar por meio da sua comunicação verbal ou não verbal conosco e que por nós possa ser assimilada e a ela devolvida como forma de confirmar, por tal pessoa mesma, se (ou em que medida) fomos capazes de alcançar o sentido subjetivo do que nos comunicou. Outrossim, esse nosso esforço por seu turno não carece de nenhum construto teórico, resumindo-se antes na consequência natural de um gesto único que consiste, ao contrário, em despirmo-nos cada vez mais de quaisquer abstracionismos (mesmo os oferecidos pela própria Moral Teórica) bem como de hipóteses, pressupostos, expectativas, juízos de valor etc. que possamos acaso formular sobre alguém e por mais plausíveis ou necessários que nos pareçam. É assim, pois, que tudo de quanto dispomos como instrumento para alcançar essa compreensão é a nossa própria emoção e atenção, inteira e integralmente voltadas e votadas a quem de fato apresenta-se a nós, no desejo imenso e intenso de captar assim a totalidade do significado subjetivo real do que nos é oferecido na interação – também única – dessa pessoa conosco. Em uma palavra, só o que nos resta como instrumento efetivo para tal compreensão humana somos nós mesmos, com nossas próprias faculdades naturais de empatia, de congruência e de receptividade positiva e incondicional.

Embora haja um certo consenso de que a psicanálise não é mais, hoje, o que foi nos tempos de Freud, parece-me inegável que ela tenha recebido da Medicina a herança de uma certa postura profissional típica, herança esta de que seus profissionais, em geral, ainda não se dispuseram a abrir mão. Refiro-me a um posicionamento no qual o psicanalista apresenta-se como um especialista, como um “doutor de almas”, ou – o que é ainda pior – como um “fulano-de-tal-ólogo”. Ela parte do pressuposto de que existem verdades universais e necessárias sobre os mecanismos mais profundos responsáveis pelo padecimento moral do ser humano, verdades que precisariam ser eficientemente identificadas nos sintomas que o “paciente” manifesta e em seguida “tratadas” pelo psicanalista. A palavra do psicanalista substitui, no caso, o bisturi; o divã substitui a mesa de cirurgia; as sessões são o equivalente a uma operação; o trauma é a causa do sintoma e a catarse, a extrusão do mal. Bem se vê que em uma ambiência como essa a relação deve pautar-se na suposta dependência quase total em que o “paciente” encontra-se na sua relação com o psicanalista. É essa dependência que faz o paciente requer uma ajuda impessoal cujas propostas e solicitações são tão específicas que ninguém mais – nem parentes, nem amigos, nem médicos, nem sacerdotes e nem ele próprio, paciente – teria como oferecer e à qual ele apenas vem contribuir na qualidade de um colaborador involuntário no desenvolvimento da teoria e no aprimoramento da técnica, oferecendo a ambas novos insumos de “material” a compor ilustrações adicionais que enriquecerão a psicanálise, confirmando, complementando ou, vez por outra, infirmando a verdade de seus pressupostos e a eficácia de seus procedimentos.

Uma evidência sensível do teorismo psicanalítico revela-se muito particularmente na barreira iniciática imposta pelo Estado na ocasião mesma do ingresso do recém-formado psicólogo em sua vida profissional: o gigantesco aparato teórico da psicanálise adjunto ao seu correspondente repositório terminológico (que já formou, diga-se, grossos léxicos) prestam-se – como talvez os de nenhuma outra linha de psicoterapia – a oferecer quase todo o conteúdo das questões de múltipla escolha presentes nas provas de concursos públicos para os cargos de psicólogo. Nada em Psicologia consegue ser tão farto e nada consegue ajustar-se tão bem e ser tão precisamente caracterizável (quando se trata de comportar um inequívoco “assinale a única resposta correta”) do que a psicanálise.

Comte, em seu leito de morte, afirmara, porém, como consistindo em um verdadeiro vício lógico enraizado na Medicina a prática de aplicar princípios gerais a casos particulares. Jung, discípulo dissidente de Freud, chegaria mesmo a dizer: “conheçam-se todas as teorias, dominem-se todas as técnicas, mas ao estarmos diante de outra alma humana, sejamos apenas outra alma humana”. Ora, pergunta-se então: como ficaria (e em que consistiria) uma Psicologia, uma Psicoterapia e uma Pedagogia que procurassem rastrear as mais longínquas consequências de tal vício lógico, tentando o mais que possível evitá-las e contorná-las? Como dissemos inicialmente, na obra comtiana apenas poderemos encontrar sobre isso sentenças esparsas e incidentais. Esse tema tão capital (e que, desgraçadamente, em virtude de apenas dois anos de vida que o destino não concedeu ao fundador do positivismo) não pôde ter nenhuma apresentação direta e sistemática, conquanto representasse desde há muito o próprio coroamento de toda a doutrina. Contudo, pensamos que, apesar disso, o oferecido aqui, se largamente desenvolvido, possa servir como a primeira base de um esboço de tentativa no sentido de compreender o que foi aquela antiga e esquecida proposta, assim como de estabelecer algum critério por meio do qual seja possível investigar se existe hoje alguma linha de Psicologia naturalmente mais próxima dela. Penso que a resposta a essa última questão seja afirmativa e que tal linha esteja cabalmente representada nas chamadas abordagem centrada na pessoa (ACP) e na pedagogia centrada no aluno, de Carl Rogers.

Torna-se uma tarefa das mais melindrosas e arriscadas fazer derivar todo um conjunto de práticas de uma única indicação extrema tomada como fundamental, mas, a menos que nos arrisquemos a algo assim, não estaremos realmente em condições de avançar. As linhas psicoterápicas podem ser grosso modo divididas em três grandes grupos segundo a base que tomaram para o acesso à subjetividade humana: de natureza predominantemente prática (behaviorismo, orgonoterapia, rolfing, rebirthing, terapia do grito primal etc.), intelectual (psicanálise e suas dissidências, gestalt, terapia cognitivo-comportamental, filosofia clínica etc.) ou afetiva (abordagem centrada na pessoa, terapia existencialista, psicodrama etc.).

Essa decomposição mais ou menos assente nos meios acadêmicos forma um critério adicional que favorece o nosso trabalho, o qual passa a incidir de preferência sobre o último desses três grupos, tão bem a propósito caracterizado pela denominação de psicoterapias humanistas.

Assim como Comte precisou livrar-se até mesmo de determinadas especulações e ambições científicas para atingir a plenitude do estado positivo, Rogers também precisou fazê-lo para alcançar a cristalinidade da visão do outro como a de uma total alteridade mutável instante a instante. Em uma analogia com a Matemática, podemos dizer que a diferença entre a abordagem centrada na pessoa e as demais formas diretivas e abstratas de acesso à subjetividade assemelha-se à que existe entre a idéia de somatório quando comparada à de integral. Da mesma forma – e explorando ainda mais a analogia com a Matemática –, a diferença entre a pessoa conforme concebida nas demais terapias e na ACP assemelha-se à diferença fundamental entre o conjunto dos números reais, em que é cabível a relação “maior do que” e “menor do que”, e o conjunto dos números imaginários, em que esse componente quantitativo deixa de fazer sentido, malgrado seus elementos característicos consistam de entidades aritméticas tão bem definíveis como aquelas encontráveis no conjunto dos números reais[1].

Finalizando, devemos dizer que, embora os conceitos de doença, alta, cura, sintoma, inconsciente, trauma, diagnóstico, tratamento, terapia, neurose, psicose, obsessão, compulsão, id, ego, superego, paciente etc. etc. etc. não encontrem absolutamente lugar na abordagem centrada na pessoa, isso não significa que ela rejeite, a bem dizer, o fato reconhecido de que psicólogos de outras linhas tenham dito haver identificado (segundo seus próprios construtos – e designado segundo seu próprio jargão) muito do que efetivamente acontece no interior de uma sessão da ACP, quer na condição fenômenos a eles familiares, quer mesmo na condição de consistirem estes nas mesmas exatas e genuínas ocorrências que historicamente atestaram desde o início, a realidade de cada uma suas próprias e inúmeras teorias. A rejeição a esses conceitos obedece, no caso, a uma outra ordem de considerações e de atitudes distinta do que seria uma simples rejeição teórica. Trata-se aqui de evitar a todo custo o abstracionismo, considerando, por exemplo, que por mais bem descritos que possam vir a tornar-se conceitos como os de neurose, tão exaustivamente tratados, tais descrições jamais poderiam equivaler – em termos de informação real – ao que a própria pessoa que busca ajuda teria a dizer sobre si mesma, assim como jamais equivalerão ao que uma pessoa que busca compreender a outrem possa obter de sua própria empatia, quando se compara isso a qualquer suposto conhecimento a priori que estivesse fora do contato direto e íntimo com ela, pela intermediação dos mais experientes e argutos intérpretes.

 

Nota pessoal: Caro Gustavo, eis aí em síntese o meu prometido texto. Penso haver chegado a um resultado mais ou menos satisfatório nessa minha primeira tentativa sistemática de situar a psicanálise no contexto das concepções positivas, sobretudo considerando-se o tempo que tive disponível, bem como a necessidade de encurtá-lo tanto quanto convém a uma simples resposta. Precisamos desenvolver esse tema, inclusive no sentido de colher da própria psicanálise alguns conceitos mais tardios que eventualmente a aproximem mais da Moral Teórica e Prática.



[1] Melhor seria dizer “conjunto dos números complexos”, de que o conjunto dos imaginários é apenas uma parte , ou seja, aquele em que, na expressão geral “A+Bi”, A é igual a zero.

19 janeiro 2016

19 de janeiro, nascimento de Augusto Comte

19 de janeiro, nascimento de Augusto Comte, o fundador da Sociologia e da Religião da Humanidade





Primeiros anos

Em 19 de janeiro de 1798 nascia na cidade de Montpellier, no Sul da França, Isidore Auguste Marie François Xavier Comte – ou, como passou a chamar-se mais tarde, apenas Augusto Comte. Ainda adolescente, mudou-se para Paris, aonde foi estudar na Escola Politécnica; mas, devido ao clima político, que freqüentemente resultava em sérios problemas com a disciplina militar da Escola, foi obrigado a sair dela. Enquanto estudou lá, todavia, leu avidamente História, Filosofia, Moral e as várias ciências – interesse que manteve e desenvolveu ao longo da vida.

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Objetivo na vida: reformar a sociedade

Tornou-se professor de Matemática para ganhar a vida, mas sua preocupação fundamental era entender as profundas mudanças sociais, políticas e intelectuais por que passava a França e a Europa: Revolução Francesa, guerras napoleônicas, Revolução Industrial, miséria crescente, avanços científicos. Assim, elaborou e realizou o projeto de entender cientificamente a sociedade e o desenvolvimento histórico humano; para isso, após examinar historicamente as características de cada uma das ciências existentes até então – Matemática, Astronomia, Física, Química e Biologia –, criou a ciência da sociedade, a Sociologia.

Política positiva

Mas enquanto a Sociologia estuda a sociedade, esse estudo tem que ser aplicado na prática, para evitar, solucionar ou diminuir os problemas e conflitos que a sociedade enfrentava. Foi por esse motivo que Augusto Comte, com base nas pesquisas da Sociologia, passou a propor uma série de medidas e sugestões, no que chamava de "política positiva", entre as quais podemos citar as seguintes:
·         inclusão social dos trabalhadores
·         valorização das mulheres
·         responsabilidade social dos empresários
·         fim das guerras
·         instrução pública e popular
·         fortalecimento da sociedade civil
·         controle social do governo
·         afirmação dos deveres sociais mútuos

Uma nova ciência: a Moral Positiva

O conjunto dessas medidas resultava na valorização do altruísmo, isto é, nos esforços que cada indivíduo e cada grupo deve fazer em benefício dos outros indivíduos e grupos, no sentido de controlar e diminuir (mas não acabar com) o egoísmo. Isso implica esforços sociais e individuais, de modo que não apenas o conhecimento profundo e científico da sociedade é necessário, mas também o do ser humano individualmente tomado: assim, Comte criou também a ciência que estuda os indivíduos e os processos de educação, ou seja, a Moral Teórica (a "Psicologia") e a Moral Prática (a "Pedagogia").

A religião do altruísmo e da paz: a Religião da Humanidade


O conhecimento do ser humano é dado também pela ciência, mas o ser humano é uma totalidade, que engloba os sentimentos, a inteligência e as ações práticas, tanto individuais quanto coletivas, tanto hoje quanto ontem e amanhã. A ciência tem sempre perspectivas parciais e o ser humano precisa de perspectivas de conjunto: daí a necessidade da Filosofia e das Artes, que devem ser integradas e servir de base para Ciência e a Política. Esse conjunto, que valoriza o ser humano e o altruísmo, foi chamado por Augusto Comte de "religião" – e, portanto, daí surgiu a Religião da Humanidade, que é a grande síntese da obra de Comte e o maior ideal a que podemos aspirar.