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13 abril 2022

Curso livre de política positiva: roteiro da 4ª sessão

Reproduzo abaixo o roteiro da quarta sessão do Curso livre de política positiva, ocorrida no dia 29 de março, transmitida no canal Positivismo (disponível aqui: https://www.youtube.com/watch?v=9kiJZwvb2x0) ou no próprio canal Apostolado Positivista (disponível aqui: https://www.facebook.com/ApostoladoPositivista/videos/391232223007541). Nessa seção, abordei a teoria da família e também a concepção positiva dos "indíviduos".

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Súmula

Sociologia Estática II: teoria da família; os indivíduos

 

Roteiro

-        Família:

o   É a instituição social que, ao mesmo tempo, mais sofre com as aberrações metafísicas e a que menos foi compreendida até hoje (“hoje”: até o advento do Positivismo)

§  É a menor unidade social a que a sociedade pode ser reduzida; assim, é a verdadeira “célula social”

o   Tem duas funções principais: moral e política

§  Função moral: desenvolve diretamente os sentimentos altruístas

§  Função política: prepara os cidadãos para a vida em sociedade (ou seja, prepara cidadãos)

o   A família tem uma origem egoísta – o impulso sexual –, mas é um erro reduzi-la a isso

§  O impulso sexual tem força mais inicial que permanente

§  A força do impulso sexual é maior no homem que na mulher

§  Após a ação do impulso sexual, outros instintos entram em ação, tanto egoístas quanto altruístas; a permanência do vínculo familiar desenvolve, estimula e reforça os instintos altruístas

·         Acessoriamente, isso também esclarece que o altruísmo não é a negação do egoísmo, mas a orientação em favor dos demais

o   A família pode ser reduzida ao casal elementar, mas é claro – ou melhor, deveria ser claro – que ela é muito mais ampla que isso, pois compreende os filhos, os avós, os agregados

§  Essas diversas relações desenvolvem e estimulam sentimentos altruístas:

·         Marido ßà mulher, irmãos ßà irmãos: apego

·         Filhos à pais: veneração

·         Pais à filhos: bondade

o   Em relação ao casal nuclear, a função da família é o aperfeiçoamento mútuo, muito mais que a reprodução humana

§  A teologia, como rejeita a existência natural do altruísmo, considera que a família serve apenas fins egoístas, notadamente a reprodução humana

§  Também vale notar que a teologia com freqüência considera que a família (esposa e filhos) é propriedade dos homens

§  A metafísica não se afasta muito disso, vendo na família pouco mais que um contrato com fins sexuais e/ou uma instituição de violência sistemática do homem contra a mulher

§  Há um gênero legalista de metafísica, para quem a família deve ser paulatinamente substituída pelo Estado

o   Como a existência humana é muito mais subjetiva que objetiva e como a função do casamento é o aperfeiçoamento mútuo, o Positivismo afirma a monogamia e a viuvez eterna (as segundas núpcias são uma forma disfarçada de poligamia)

o   Como os sentimentos altruístas são desenvolvidos e aperfeiçoados na família, ela é absolutamente central para a vida em sociedade (e, claro, também para os indivíduos)

§  O estímulo, o desenvolvimento e a manutenção do altruísmo, no âmbito familiar, cabe naturalmente às mulheres

§  Isso, evidentemente, corresponde à necessidade imperiosa de dignificar-se a atuação da mulheres e não as condenar a escravas dos homens

§  Somente a destruição metafísica, com seus fortes preconceitos antialtruísmo e antifamiliares, consegue ver na afirmação do papel doméstico e moral das mulheres uma forma de exploração, degradação e violência contra as mulheres

o   O papel político, ou melhor, cívico das famílias corresponde à sua preparação afetiva, o que inclui não somente os três instintos simpáticos (apego, veneração e bondade), mas também os instintos práticos (coragem, prudência e perseverança)

§  É importante notar que, embora a família seja a base da sociedade, ela tem que se submeter à polis

§  Essa submissão à polis é necessária para evitar os desvios da família, em particular dois:

·         Possibilidade de educação afetiva egoísta

·         Possibilidade de desenvolvimento de um egoísmo coletivo familista

·         A submissão à polis altera ordinariamente as famílias, corrigindo (ou evitando) esses dois desvios; mas é claro que a própria polis tem que se orientar altruisticamente e não pelas guerras

-        Papel dos indivíduos:

o   Os indivíduos isolados e/ou como fundadores da sociedade não existem; só é possível falar em indivíduos quando se faz referência prévia às sociedades em que eles surgiram

§  Os indivíduos como célula social são uma abstração nociva e imoral

o   Mas a religião visa a regrar e a religar, ou seja, a estabelecer a unidade e a harmonia individual e coletiva: evidentemente há um amplo espaço para os indivíduos no Positivismo

§  Em última análise, todas as ações – mesmo as ações da Humanidade – realizam-se por meio de indivíduos, isto é, de agentes individuais

o   Todo ser humano tem uma vida dupla, isto é, uma objetiva e outra subjetiva

§  A vida objetiva ocorre no presente; a Humanidade tem em cada ser humano um “ser” concreto, de carne e osso

§  A vida subjetiva ocorre no passado e no futuro; a Humanidade tem em cada ser humano um “agente

o   A Humanidade tem um caráter composto; isso acarreta sua capacidade de ação mas também sérias dificuldades, pois é sempre necessário combinar a independência individual com o concurso coletivo

§  A independência individual, no estado normal, requer de ordinário a plena liberdade, o que, por sua vez, rejeita a opressão

§  Essa plena liberdade implica as liberdades de pensamento (ou de consciência), de expressão e de associação

§  Além disso, a plena liberdade também é necessária para a submissão livre e digna

§  A liberdade individual necessária para o livre concurso coletivo implica a confiança; esta, por sua vez, implica sempre a responsabilidade (e a responsabilização)

16 março 2022

Curso livre de política positiva: vídeo da 2ª sessão

No dia 15 de março ocorreu a segunda sessão do Curso livre de política positiva, com transmissão ao vivo no canal do Facebook Apostolado Positivista: Facebook.com/ApostoladoPositivista.

Nessa sessão apresentamos os conceitos de historicismo; objetividade e subjetividade; visão de conjunto e visão de detalhe; descrições e prescrições; escala enciclopédica e níveis de generalidade.

Com várias participações ao vivo, a segunda sessão está disponível aqui: https://www.facebook.com/ApostoladoPositivista/videos/495457555587668/.

O vídeo da segunda sessão também está disponível no canal The Positivism, aqui: https://www.youtube.com/watch?v=QMxrAUxE4KI.

A programação completa do Curso pode ser vista aqui.



11 março 2016

Sociologização do indivíduo ou reducionismo da sociedade?

 

Nas Ciências Sociais – e, possivelmente, também nas demais ciências – há determinadas concepções que, embora sendo puramente intelectuais, isto é, “teóricas”, têm um fraco estatuto propriamente teórico[1]. O que quero dizer com “fraco estatuto teórico”? Que essas concepções são representações, idéias, formulações que funcionam como que de recordatórios, ou como guias práticos; assim, não integram o núcleo duro de doutrinas teóricas, mas, por outro lado, ao terem um caráter intelectual, não podem deixar de ser qualificadas de “teóricas”.

Essas concepções, conforme as entendo, são ao mesmo tempo regras práticas para entendimento de determinadas realidades e questões empíricas e também, por esse motivo, o começo das teorizações. Entretanto, na medida em que elas atuam como guias para compreender determinas situações, elas têm que se relacionar com corpos teóricos mais amplos e mais robustos, surgidos a partir de pesquisas bastante anteriores ou derivados de investigações desenvolvidas a partir da aplicação desses recursos. Dessa forma, embora esses artifícios intelectuais atuem como regras práticas para as pesquisas, bem vistas as coisas eles vinculam-se intimamente com as teorias; eles seriam mais “pontas de icebergs” que “fiapos teóricos”.

Tais situações apresentam-se com clareza quando se realiza investigações sociológicas empíricas com entrevistas, sejam pesquisas qualitativas, sejam pesquisas quantitativas[2]. Nesses casos, o que se apresenta à primeira vista é somente um conjunto maior ou menor de indivíduos, a quem se pode (e deve) aplicar questionários sobre inúmeras questões. Ora, o resultado dessa aplicação de questionários – novamente: quantitativos ou qualitativos, tanto faz – consiste tão-somente em uma coleção mais ou menos dispersa de respostas, que pode indicar qual o “perfil” desses alunos, mas que por si só não tem nenhum caráter verdadeiramente sociológico: novamente, por si sós esses questionários apenas fornecem uma coleção de indivíduos justapostos, não uma concepção qualquer de verdadeira coletividade. Além disso, esse problema de falta de coletividade – esse “déficit sociológico”, por assim dizer – aplica-se ao conjunto da pesquisa, ou seja, a todas as suas etapas, desde a concepção geral até a aplicação dos questionários e a eventual interpretação dos resultados.

Ora, é necessário termos clareza de que, para uma interpretação verdadeiramente sociológica, entender os entrevistados apenas como uma coleção de indivíduos – que porventura compartilhem características e traços – consiste em um excesso de empirismo; ou, por outra, insistir em entender a coleção de indivíduos resultante da realização de entrevistas apenas como uma coleção de indivíduos é recusar-se a abstrair e aferrar-se de maneira daninha – e profundamente equivocada – a uma concepção estreita de objetividade. O excesso de objetividade, em detrimento da abstração, foi denominado por Augusto Comte de “idiotismo”, a que se contrapõe o excesso de subjetividade, que seria propriamente a loucura. A esse excesso de empirismo (que podemos denominar por meio do terrível neologismo “empiricismo”) com freqüência se soma uma filosofia geral (ou mesmo uma filosofia social) que enfatiza os indivíduos e o individualismo (tanto moral quanto “filosófico”): por certo que empiricismo e individualismo relacionam-se, ou podem relacionar-se, intimamente, mas eles são concepções diversas em termos morais, intelectuais e práticos.

Por outro lado, a dificuldade em realizar a passagem (1) da objetividade e do empirismo ingênuos/radicais que consiste em perceber apenas indivíduos (2) para a abstração (portanto, mais ou menos subjetiva) que consiste em ver aí não apenas “indivíduos”, mas coletividades em ação – essa dificuldade é um dos mais importantes e mais sérios (na verdade, no fundo ele consiste no principal) “obstáculos epistemológicos” para a imaginação sociológica e, portanto, para a própria constituição da Sociologia[3].

Assim, temos que ter clareza de que, partindo-se do empiricismo individualista descrito acima, é virtualmente impossível resolver o problema da passagem teórica da “coleção de indivíduos” para uma “coletividade”; a única forma de resolvê-lo é evitá-lo. Em outras palavras, é necessário ultrapassar liminarmente o obstáculo epistemológico do excesso de objetividade e adotar, desde o começo da pesquisa (ou desde antes dela), o conjunto de concepções segundo as quais o homem é um animal social, que ele vive em sociedade, que o indivíduo é um produto social, que para entender o indivíduo é necessário estudar e entender o contexto em que ele surge e vive. A bem da verdade, algumas concepções adicionais também são necessárias: a de que a vida em sociedade consiste em relações mútuas entre grupos e indivíduos e a de que a sociedade vive em processos ao longo do tempo[4].

Em suma: o erro que origina a dificuldade que vimos comentando, quando se tenta relacionar o indivíduo à sociedade, está em querer reduzir a sociedade ao indivíduo, quando o correto consiste em contextualizar e sociabilizar teoricamente o indivíduo[5]. Em outras palavras, tanto nas reflexões puramente teóricas quanto – para os casos que aqui consideramos – nas considerações metodológicas e sobre pesquisas empíricas, deve-se sempre explicar o indivíduo pela sociedade e não o inverso[6].

O caráter de “obstáculo epistemológico” desse preceito, que é ao mesmo tempo teórico e metodológico[7], evidencia que ele não é tão evidente quanto se pode considerar à primeira vista. Nesse sentido, é sempre necessário afirmá-lo e reafirmá-lo, seja para o público em geral (tanto das classes inferiores quanto os profissionais liberais, de classe média), seja para estudantes (de Ensino Médio, de Ensino Superior, de pós-graduação), seja para pesquisadores habituados (das mais diferentes áreas), seja enfim para filósofos e publicistas em geral. A importância e a centralidade dessa concepção não escaparam do fundador da Sociologia: Augusto Comte (1934, p. 77) afirmou-o com clareza e didatismo em meados do século XIX:

[...] Basta reconhecer que, posto que[8] o conjunto da humanidade constitua sempre o principal motor de nossas operações quaisquer, físicas, intelectuais ou morais, o Grande Ser [a Humanidade] nunca pode agir senão por intermédio de órgãos individuais. É por isso que a população objetiva, apesar de sua subordinação crescente à população subjetiva, continua necessariamente indispensável a toda influência desta. Decompondo, porém, essa participação coletiva, vê-se, afinal, que ela resulta de um livre concurso entre esforços puramente pessoais. Eis aí o que deve reerguer cada digna individualidade em presença do novo Ente Supremo [a Humanidade], ainda mais que perante o antigo [a divindade cristã]. [...]

A citação seguinte é ainda mais clara e decisiva para os nossos propósitos (Comte, 1934, p. 325; sem itálico no original): “Posto que cada função humana se exerça necessariamente por um órgão individual, sua verdadeira natureza é sempre social; pois que a participação pessoal subordina-se aí constantemente ao concurso indecomponível dos contemporâneos e dos precedentes”.

Uma última observação para concluirmos: as reflexões desenvolvidas acima se tornam plenamente compreensíveis quando se realiza pesquisas empíricas com seres humanos vivos, de carne e osso. Mas quando se passa a lidar com fontes documentais e não mais com o presente, mas com o passado, o caráter sociológico de todo ser humano cada vez mais salta à vista – o que equivale a dizer que o processo de abstração que constitui a Sociologia apresenta-se e desenvolve-se mais natural e facilmente[9]. Em outras palavras, para desenvolver-se uma pesquisa sociológica, é necessário adotar-se à partida uma concepção sociológica, com todas as conseqüências teóricas e metodológicas que isso acarreta.

 

Referências bibliográficas

BACHELARD, Gaston. 1996. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. Rio de Janeiro: Contraponto.

BECKER, Howard S. 2007. Segredos e truques da pesquisa. Rio de Janeiro: Zahar.

BORGES, Camila D. & SANTOS, Manoel A. 2005. Aplicações da técnica do grupo focal: fundamentos metodológicos, potencialidades e limites. Revista da SPAGESP, São Paulo, v. 6, n. 1, p. 74-80.

BOTELHO, André. 2013. Essencial Sociologia. São Paulo: Companhia das Letras.

CASTRO, Celso. 2014. Textos básicos de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar.

COMTE, Augusto. 1934. Catecismo positivista, ou sumária exposição da Religião da Humanidade. 4ª ed. Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil.

FREITAS, Renan S. 2003. Sociologia do Conhecimento. Pragmatismo e pensamento evolutivo. Bauru: USC.

GONDIM, Sônia M. G. 2003. Grupos focais como técnica de investigação qualitativa: desafios metodológicos. Paidéia, Ribeirão Preto, v. 12, n. 24, p. 149-161.

KING, Gary; KEOHANE, Robert O. & VERBA, Sidney. 1994. Designing Social Inquiry: Scientific Inference in Qualitative Research. New Jersey: Princeton University.

Lacerda, Gustavo B. 2022. O Positivismo e o conceito de “metafísica”. In: _____. Positivismo, Augusto Comte e Epistemologia das Ciências Humanas e Naturais. Marília: Poiesis.

SCHLUCHTER, Wolfgang. 2014. O desencantamento do mundo: seis estudos sobre Max Weber. Rio de Janeiro: UFRJ.

SILVA, Tomaz T. 1990. A Sociologia da Educação entre o funcionalismo e o pós-modernismo: os temas e os problemas de uma tradição. Em Aberto, Brasília, ano 9, n. 46, abr.-jun.

WRIGHT MILLS, Charles. 1972. A imaginação sociológica. 3ª ed. Rio de Janeiro: Zahar.



[1] Esta postagem foi originalmente feita em 11 de março de 2016. Em 1º de março de 2024 ela foi atualizada, por meio de uma revisão que incluiu uma ampliação substancial.

[2] Quando redigimos a primeira versão deste documento, em 11 de março de 2016, considerávamos a questão do ponto de vista estritamente das entrevistas estruturadas e semiestruturadas. Entretanto, bem vistas as coisas, ainda que com um pouco de exagero, podemos considerar que todas as pesquisas sociológicas empíricas, quando lidam com pessoas de carne e osso, envolvem sempre entrevistas ou processos assemelhados, mesmo que sejam grupos focais, pesquisas-ação, observações participantes etc. Por fim, vale notar que, no caso específico do grupo focal, ele adota um procedimento metodológico que se aproxima bastante das considerações que desenvolvemos aqui (a esse respeito, cf. Gondim (2003) e Borges e Santos (2005)).

[3] A idéia de “obstáculo epistemológico” foi proposta por Gaston Bachelard (1996), a propósito da constituição da Física e da Química. Como se vê, ela também é perfeitamente aplicável à Sociologia.

[4] Essas duas concepções adicionais – como, aliás, as concepções básicas sobre o caráter social do ser humano – não se desenvolveram apenas por meio do raciocínio, isto é, da pura introspecção; elas têm um forte caráter histórico, no sentido de que o desenvolvimento e o acúmulo de pesquisas sobre as sociedades e os seres humanos indicaram que elas são corretas, tanto teórica quanto metodologicamente (e mesmo moralmente) (cf. Comte, 1934, 6ª Conferência). Essa observação, cujo valor intrínseco parece indiscutível, também é importante para evitar e combater algumas afirmações feitas a partir dos anos 1960-1970 no sentido de que essas reflexões seriam “metafísicas” – evidentemente um despropósito, com frequência dito e redito com má-fé. Sobre a metafísica no sentido positivista, cf. Lacerda (2022).

Por fim, vale notar que a ênfase nos processos e não nas pessoas é uma sugestão de H. Becker (2007).

[5] Tomaz Silva (1990) fez uma observação absolutamente concorde com essa nossa.

[6] A chamada “Sociologia weberiana” padece precisamente do defeito da redução da sociedade ao indivíduo. Ou melhor: na verdade, ao aferrar-se às principais características da filosofia alemã (romântica, individualista e eivada de metafísica e misticismo), Max Weber não conseguiu jamais ultrapassar esse obstáculo epistemológico, chegando mesmo ao ponto de recusar-se a definir o conceito de “sociedade” (Schluchter, 2014)! Nesses termos, é pelo menos estranho, para não dizer chocante, que ele seja considerado um “sociólogo” e seja popularmente chamado de criador da “moderna” (!) Sociologia.

Da mesma forma, por outro lado, seja devido à forte tradição empírica – excessivamente empírica, bem vistas as coisas – que recebeu da Inglaterra, seja devido à influência de pensadores alemães (entre os quais se incluem não apenas Max Weber, mas também Franz Boas), as Ciências Sociais dos Estados Unidos padecem de vícios semelhantes aos indicados para a “Sociologia” weberiana, como a recusa a abstrair, o apego à noção de “indivíduo” e, de maneira correlata, uma certa repulsa à teorização (como Howard Becker indica a respeito de vários de seus professores e colegas). Mesmo o uso que fizemos acima da expressão “imaginação sociológica”, aliás, afasta-se de maneira importante da formulação originalmente dada a ela por seu criador, Charles Wright Mills, que, a despeito de dizer-se “radical” e “crítico” da sociedade e das Ciências Sociais estadunidenses, entendia a imaginação sociológica como a interpretação individual da situação de cada indivíduo na sociedade (Wright Mills, 1972).

Por fim, é necessário dizê-lo com muita clareza: a maior parte das Ciências Sociais que se desenvolvem atualmente, pelo menos no Brasil, adotam precisamente esses parâmetros e concepções antissociológicos, como se evidencia em duas recentes coletâneas organizadas por cientistas sociais brasileiros extremamente influentes (Botelho, 2013; Castro, 2014), que incluem Weber e teóricos assemelhados – Schultz, Simmel, Goffmann, mesmo Howard Becker e Bauman, todos eles aproximando-se muito mais da Psicologia Social que própria e verdadeiramente da Sociologia –, mas recusam-se de maneira clara, até militante, a incluir e/ou a considerar Augusto Comte e os teóricos propriamente científicos da Sociologia em suas coletâneas. Essa recusa tem um significado muito claro, cujo efeito, por motivos evidentes, é maior no grande público e em todos os interessados nas Ciências Sociais que não são profissionais da área: conforme se depreende dessas coletâneas, a “verdadeira” Sociologia corresponde à Psicologia Social praticada pelos organizadores desses livros, com doses enormes de subjetividade, de antiobjetivismo e de descritivismo empiricista que rejeita a busca de generalizações, de regularidades e, portanto, de leis naturais. Como o próprio Augusto Comte era o primeiro a afirmar com todas as letras (Comte, 1934), é claro que a Sociologia exige a subjetividade concreta; mas, ao mesmo tempo, e ao contrário do que essas coletâneas dão a entender, a Sociologia exige também a objetividade abstrata. Certamente esses organizadores fazem questão de desconhecer as importantes reflexões teórico-metodológicas desenvolvidas por King, Keohane e Verba (1994), unificando teoricamente os resultados das orientações metodológicas qualitativas e quantitativas, propostas inicialmente apenas para a Ciência Política mas, como facilmente se percebe, válidas para todas as Ciências Sociais; da mesma forma, os organizadores dessas coletâneas fazem questão de ignorar a dura e eficaz crítica que o também sociólogo e também brasileiro Renan Springer de Freitas (2003) fez à falta de resultados teóricos e práticos das pesquisas de Clifford Geertz, tão próximas da Psicologia Social exaltada nas coletâneas acima indicadas.

[7] O caráter ao mesmo tempo teórico e metodológico desse princípio não é algo banal. Se fosse apenas um princípio metodológico, talvez ele fosse bastante importante mas não fizesse tanta diferença afirmá-lo para diversos públicos: o relativismo próprio à Antropologia é um bom exemplo de princípio metodológico que – ao contrário daquilo que nos interessa aqui – deve manter-se como metodológico e não se ampliar para um aspecto teórico. No caso que nos interessa, ao insistirmos no aspecto teórico do princípio de que devemos sempre entender sociologicamente os indivíduos, queremos indicar que ele, também e acima de tudo, descreve a realidade – no caso, a realidade própria ao ser humano –; essa afirmação intelectual resulta, em seguida, em importantes conseqüências morais e políticas.

[8] Um esclarecimento gramatical: ao contrário do que se considera atualmente, em parte devido a um uso incorreto feito por Vinícius de Morais no penúltimo verso do Soneto de fidelidade, a expressão “posto que” tem um sentido adversativo e significa “embora”, ao contrário do entendimento corrente, que a entende como significando “portanto”.

[9] Como o objetivo destas anotações é afirmar a importância teórica e metodológica do princípio do caráter radicalmente social do ser humano, limitamo-nos aqui a refletir e a insistir nessa idéia, entendendo-a como, por vezes, um esforço a realizar-se para ultrapassar o que pode ser (mas não necessariamente é) um “obstáculo epistemológico”. Dito isso, devemos notar que essa eventual dificuldade de abstração com freqüência deve-se a um viés paroquial das nossas observações: afinal, quando qualquer pessoa viaja para um algum lugar cuja cultura é minimamente diferente da sua própria, o aspecto social do comportamento, dos usos e dos costumes desse outro lugar com grande rapidez salta à vista (é o que se caracteriza por vezes com a expressão “é uma cultura diferente”). Mais do que isso: ao viajarmos, nossa tendência é percebermos antes as sociedades e depois os indivíduos. Esse instinto naturalmente sociológico – que, como também já indicava Augusto Comte (1934, p. 192-194), já funda, ou reafirma, também nesse âmbito o relativismo cognitivo, sociológico e histórico – não por acaso é o fundamento da Antropologia, que, também não por acaso, muito mais que vinculada ao estudo de sociedades tribais, primitivas, simples etc., vincula-se à necessidade do deslocamento geográfico como condição para o contato com diferentes sociedades, ou, em outras palavras, vincula-se precisamente às viagens como procedimento metodológico.

08 agosto 2011

Sobre a legitimação do republicanismo via liberalismo

É completamente incorreto querer assimilar o republicanismo contemporâneo ao liberalismo. É bem verdade que qualquer teoria política atual tem que reconhecer o fato da “liberdade dos modernos”, o que pode ser facilmente assimilado à valorização liberal dos indivíduos; mas, por outro lado, como vários autores já indicaram, a liberdade negativa tem a necessidade lógica e prática da liberdade positiva e, ainda mais, uma “república” não é somente uma justaposição de indivíduos, de modo que tem que prover alguma concepção de “bem comum”. É necessário afirmar essas idéias a fim de evitar-se tentativas de legitimar o republicanismo (em particular de acordo com a riquíssima tradição francesa) via aproximação com o liberalismo (em particular o anglossaxão), como fez Jean-Fabien Spitz em Le moment républicain.

Se, nesse livro, por um lado, o autor está correto ao indicar que os pensadores por ele recenseados assumem o “indivíduo”, por outro lado, seu desejo de aproximar-se do liberalismo fá-lo desprezar republicanos que enfatizam mais o bem comum ou a coletividade que o indivíduo, embora não se filiem ao robespierrismo rousseauniano e a sua postura anti-indivíduo.

Com essa tentativa de justificar o republicanismo por meio de sua aproximação ao liberalismo, Spitz desvaloriza o republicanismo, em vez de valorizá-lo. Se só é aceitável o republicanismo de corte liberal, para que perder tempo sendo republicano? É mais fácil ir diretamente à fonte e aceitar-se alguma variedade “social” do liberalismo!

Nesse sentido, está coberto de razão Quentin Skinner em seu Liberdade antes do liberalismo, que argumenta que é o liberalismo uma corrupção do republicanismo e não o contrário. Restrito ao caso inglês do século XVII, é necessário complementar a leitura dessa pequena obra magistral com pelo menos outras duas: L’Idée républicaine en France, de Claude Nicolet, e Utopia e reforma no Iluminismo, de Franco Venturi.