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14 julho 2020

Insight Inteligência: "Brasil vive crise moral"

A revista Insight Inteligência - que se dedica a (in)formar a opinião pública por meio de artigos com debates políticos mais profundos que o habitual dos jornais diários, mas sem os formalismos acadêmicos - publicou em seu número 89 um artigo de nossa autoria sobre a crise política e moral que vive o nosso país há alguns anos.

O texto pode ser lido aqui. Já a versão completa da revista, com o nosso texto diagramado em formato PDF, pode ser lido aqui.

A versão original do texto, com algumas pequenas diferenças de estilo em relação ao publicado na revista, está reproduzida abaixo. 


*   *   *


Mais que crise política, o Brasil vive uma crise moral[i]

 

A sã política é filha da moral e da razão
(José Bonifácio)

Agir por afeição e pensar para agir
O amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim
(Augusto Comte)


Fonte: https://insightinteligencia.com.br/mais-que-crise-politica-o-brasil-vive-uma-crise-moral/

O Brasil atravessa uma crise político-moral

 

Já virou um triste mas correto senso comum dizer que o Brasil atravessa desde há vários anos uma crise política; essa crise, como facilmente se percebe, é também moral, no sentido de que a própria atividade política encontra-se profundamente desmoralizada. Essa desmoralização, por sua vez, também se deve a motivos de caráter moral, em particular a percepção, certa ou errada mas com certeza generalizada, de que os políticos profissionais costumeiramente não falam a verdade; de que eles não buscam o bem comum em suas atividades cotidianas; de que são corruptos e corruptores: assim, a percepção é que os políticos são mentirosos, mesquinhos e corruptos. Por extensão, os partidos políticos e as instituições republicanas (aí incluídos os membros do poder Judiciário) são vistas não como a serviço dos cidadãos e do país, mas dos próprios políticos. Tudo isso conduz a uma forte crise de legitimidade, ou seja, da adesão subjetiva dos cidadãos à ordem política vigente[ii].

Realismo ou moralismo?

 

Muitas das críticas político-morais feitas contra o nosso sistema político são mais ou menos ingênuas e por vezes equivocadas, ao passo que outras são bastante densas e certeiras. Muitos analistas políticos costumam chamar pejorativamente as críticas morais de “moralistas”, com isso querendo reduzi-las todas a concepções ingênuas, altamente abstratas e desvinculadas da realidade; o moralismo, nesse sentido, seria uma visão “idealista”, que despreza as negociações e as disputas de interesses e que pretende que todos os políticos sejam como que vestais[iii]. Os analistas que denunciam o moralismo adotariam, por sua vez, uma concepção “realista”, que aceita que a política é uma constante disputa entre grupos de interesses e indivíduos que desejam repartir entre si o mando, as riquezas e o status resultante do poder político.

Deveria ser claro que não se pode nem desprezar as críticas de caráter moral como sendo simples moralismo, nem querer que a prática política seja a atividade de indivíduos sempre modelares. Os autoproclamados “realistas” não raro são cínicos que reduzem a política ao enfrentamento de grupos opostos; no limite, para eles a política é uma forma disfarçada de guerra[iv]. Já os apodados de “idealistas” muitas vezes rejeitam de maneira efetivamente ingênua e tola as necessárias negociações e transações (inclusive os processos de convencimento) que devem sempre ocorrer para que os assuntos públicos sejam levados a cabo.

Para o ser humano agir, a realidade sempre tem que ser idealizada: isso quer dizer que temos que ter noções gerais mais ou menos ideais guiando-nos em nossas condutas, indicando o que é certo e o que é errado, da mesma forma que o que pode e o que não pode ser feito, assim como quais os principais grupos sociais que atuam e porquê. Nesses termos, idealidade e realidade andam de mãos dadas, em que por um lado reconhece-se a legitimidade das negociações e da atividade própria aos políticos e, por outro lado, proclamam-se com clareza os princípios e os valores que estruturam, limitam e norteiam a ordem política. Como dizia o grande fundador da pátria brasileira, José Bonifácio: “a sã política é filha da moral e da razão”.

Aprofundando o entendimento da “moral”

 

As observações acima são apenas uma introdução para discutirmos a profundidade da crise moral que atravessamos. Na verdade, após superarmos a tola dicotomia entre realismo e moralismo, temos que aprofundar o entendimento do que seria a “moral”. O melhor caminho para isso – e não por acaso, diga-se de passagem – é o indicado pelo Positivismo, ou seja, pelas longas elaborações de Augusto Comte.

Para Comte, a Moral é a ciência suprema, aquela que resume todas as ciências abstratas anteriores[v], que se caracteriza pela identidade entre sujeito e objeto e pelo menor grau de abstração em seus estudos, que realiza naturalmente a transição entre o conhecimento abstrato (científico) e a atividade prática (das artes práticas) e que, assim, que estabelece os parâmetros de conduta coletiva e individual. Todos esses atributos da Moral – que de maneira muito, muito imperfeita poderíamos chamar de “Psicologia” e de “Pedagogia” – baseiam-se na própria natureza humana, isto é, na constituição cerebral do ser humano. O homem é um ser que age buscando a satisfação de seus instintos, sendo que a inteligência atua aí para esclarecer o mundo, o próprio homem e os meios possíveis para tal satisfação. Ocorre que a respeito dos “instintos” não se deve ter uma concepção rasa, como as que identificam os instintos com a fome e os impulsos sexuais; isto é, sem dúvida que a fome e o impulso sexual integram o quadro de instintos, mas não são os únicos nem os principais. O que importa notar é que, além do egoísmo – que Augusto Comte identificou como composto pelos instintos nutritivo, sexual, materno, destrutivo, construtivo, orgulho e vaidade –, o ser humano possui o altruísmo – composto pelo apego, pela veneração e pela bondade. Não há dúvida de que o egoísmo é mais forte que o altruísmo; entretanto, essa maior força não equivale à inexistência do altruísmo – como, aliás, os “realistas” e os cínicos costumam afirmar – nem equivale a que o egoísmo seja sempre dominante com a mesma intensidade.

O que importa notar é que o ser humano – da mesma forma que os animais superiores, como o cachorro, o cavalo, a vaca e até o gato – é naturalmente altruísta e que desde sempre esse altruísmo atua. Mais do que isso: à medida que o ser humano desenvolveu-se historicamente, o altruísmo tornou-se mais ativo e, portanto, mais forte. Se nos proverbiais tempos pré-históricos o ser humano mantinha-se em pequenos grupos familiares para comer, reproduzir-se e proteger-se, à medida que as associações sociais aumentaram os traços de nossa natureza que submetem e disciplinam o egoísmo tornaram-se cada vez mais intensos: a própria noção de “disciplina” exige a subordinação do indivíduo a uma ordem externa (objetiva e subjetiva), da mesma forma que todo aperfeiçoamento requer que um indivíduo ou um grupo reconheça suas próprias limitações e suas próprias imperfeições e, assim, submeta-se a outrem. A noção de “Humanidade” desenvolveu-se gradativamente, superando as limitações familiares e pátrias; com isso, a veneração cedeu lugar primeiro para o apego e estes dois, por sua vez, abriram espaço para a bondade universal.

A ciência da Moral de Augusto Comte apresenta inúmeras outras características; mas, além do caráter inato do altruísmo e do seu desenvolvimento histórico, uma das mais importantes descobertas do fundador da Religião da Humanidade foi que é apenas o altruísmo que é capaz de disciplinar moralmente um indivíduo, ao oferecer um princípio interno capaz de orientar os vários instintos. O egoísmo, em contraposição, caso deseje tornar-se o guia geral, fica sempre em uma constante disputa entre os seus vários instintos, sem que nenhum consiga obter a ascendência sobre os demais: em outras palavras, a harmonia mental e a conduta regrada surgem apenas quando o altruísmo disciplina e orienta o egoísmo.

Considerando essa relação entre egoísmo e altruísmo, Augusto Comte definiu-a como sendo própria aos sentimentos (evidenciando, assim, as maiores importância e dignidade do altruísmo em relação ao egoísmo). Os sentimentos são a base, são a origem das ações humanas; ao mesmo tempo, os sentimentos são os objetivos de nossas ações; em outras palavras, agimos movidos pelos sentimentos com vistas à satisfação dos sentimentos. A inteligência, como indicamos antes, ocupa um papel secundário, ainda que da maior importância, nessa economia moral: é a inteligência que explica o mundo e o homem e, portanto, permite que a realidade faça sentido; além disso, a inteligência esclarece quais são os meios possíveis (eventualmente os mais adequados) à consecução dos nossos objetivos[vi]. Essa dinâmica foi sintetizada por Augusto Comte da seguinte maneira: “agir por afeição e pensar para agir”.

É claro que, embora a inteligência tenha um papel instrumental na economia humana, ela não é inerte, ou seja, ela é ativa e funciona com relativa autonomia. Isso resulta em dois problemas sucessivos para a inteligência: por um lado, ela pode buscar soluções para problemas propostos pelo altruísmo ou pelo egoísmo; como vimos, é necessário que ela sirva o altruísmo; por outro lado, a inteligência atua e obtém resultados, que podem ser utilizados pelo altruísmo ou pelo egoísmo[vii]. Dito de outra maneira: não apenas os fins que buscamos têm sempre que ser altruístas, como as possíveis soluções para esses objetivos têm sempre que ser altruístas[viii]. Com isso fica evidente que o altruísmo tem que ser continuamente afirmado e estimulado, a fim de poder sempre orientar e disciplinar a inteligência; os meios para esse estímulo do altruísmo Augusto Comte compendiou na parte do culto da Religião da Humanidade (mas de que não trataremos aqui)[ix].

Política brasileira: falta de altruísmo nos objetivos e nas soluções

 

As considerações que fizemos até agora serviram para evidenciar que qualquer descrição realista da política tem que incorporar, necessariamente, os aspectos morais dessa atividade, seja porque a legitimação do sistema político envolve aspectos morais, seja porque qualquer ação humana é moralmente orientada e justificada. Assim, por um lado abandonamos as críticas que afirmam que as considerações morais são mero “moralismo” e, por outro lado, evidenciamos que a análise científica da política exige uma extensa análise científica da própria moral (que, por sua vez, tem que ser moralmente orientada). Tudo isso se fundamenta no Positivismo, ou melhor, na Religião da Humanidade.

Podemos abordar o tema que nos interessa, que é o fato de que a presente crise política brasileira é também, ou melhor, é antes de mais nada uma crise moral.

No cotidiano da política as concepções normativas dos vários grupos sociais entram em choque entre si, da mesma forma que seus interesses econômicos, políticos, culturais etc.; com freqüência valores e interesses sobrepõem-se, resultando daí muito da riqueza da atividade política. Vale também notar que a política envolve disputas e negociações para que políticas públicas sejam implementadas e a tomada de decisões e a implementação das políticas públicas envolvem beneficiar alguns grupos e algumas práticas em detrimento de outros, escolhendo-se alguns caminhos de preferência a outros; assim, embora as negociações ocorram o tempo todo, elas visam a converter-se, em algum momento, em decisões concretas.

Os grupos que se confrontam nas arenas políticas têm que concordar com alguns princípios elementares – pelo menos têm que aceitar que as instituições existentes são minimamente aceitáveis e capazes de processar as demandas sociopolíticas. Por certo que em alguns momentos as instituições são vistas como incapazes de processarem as demandas sociais ou, além disso, são de fato incapazes de tal processamento; nesses momentos, por diversos meios – alguns pacíficos, outros nem tanto – as instituições mudam, regimes políticos alteram-se e assim por diante. Em todo caso, o que queremos indicar é que no dia-a-dia da política mesmo grupos que se opõem de maneira frontal têm que concordar com as regras do jogo; além disso, é sabido que discordâncias morais e intelectuais profundas não são nem nunca foram impeditivas de acordos práticos a respeito de determinadas questões – o que é uma outra forma de dizer que as conversas e as negociações ocorrem continuamente e que, se não o respeito mútuo, pelo menos a tolerância e o convívio civilizado são bases da atividade política.

No Brasil deixaram de existir esses diversos acordos tácitos e explícitos que permitem a convivência de grupos opostos. A crítica moral ao sistema político brasileiro sempre houve, tanto da parte da “direita” – como na famosa União Democrática Nacional (UDN, 1946-1967), cuja reiterada crítica moral tornou o “udenismo” sinônimo de “moralismo” – quanto da parte da “esquerda” – fosse durante o regime militar (1964-1985), realizado pelas oposições, fosse da parte do Partido dos Trabalhadores, que sistematicamente rejeitou em nome de princípios morais todas as grandes mudanças políticas brasileiras entre 1982 (quando foi fundado o partido) e 2002 (quando afinal foi eleito para a Presidência da República). Ocorre que, devido a fatores sociais profundos, na década de 2010 o descontentamento social com a política no Brasil tornou-se mais profundo e mais radical e ultrapassando em muito a mera perda de legitimidade do sistema político (como se tal perda fosse pouca coisa!). Não faz sentido historiar os acontecimentos que resultaram em tal quadro; o ano de 2013 geralmente é indicado como deflagrador de amplas insatisfações populares, mas é claro que as “jornadas de junho” tiveram causas que as antecederam e acontecimentos posteriores e concomitantes aumentaram ainda mais a radicalização.

A perda da legitimidade do sistema político é um problema de perda de confiança; é uma questão moral, mas bem vistas as coisas a “moral” implicada nele é bastante rasteira, na medida em que os sentimentos e as ideias não estão em jogo: os sentimentos e as idéias de fundo permanecem, o que se perde é a crença de que o sistema pode, de alguma forma, corresponder aos sentimentos e às idéias, bem como os satisfazer.

O problema vivido atualmente no Brasil consiste no aprofundamento radical dessa crise de legitimidade; os sentimentos e as idéias de fundo anteriores perderam-se ou corromperam-se, sendo cada vez mais substituídas por outras coisas muito ruins e muito piores: em vez de termos amor, temos ódio; em vez de termos altruísmo, temos egoísmo; em vez de termos bondade, temos mesquinhez. As interpretações racionais e racionalizadoras seguem de maneira quase automática tais sentimentos duros, agressivos e destrutivos.

Essa alteração profunda não ocorreu no vazio; ela foi realizada de maneira intencional por vários grupos e indivíduos que a desejam conscientemente. Na verdade, ela corresponde à infeliz reunião de políticos anti-intelectualistas mas extremamente violentos e promotores da violência como política de Estado com intelectuais que, em nome de interpretações bastante específicas do catolicismo, promovem o culto ao ódio, à intolerância e ao desrespeito. Injunções político-partidárias muito específicas criaram o ambiente específico para que frutificasse politicamente a união de violentos políticos anti-intelectuais com intelectuais imorais. Como se sabe, apoiam essa coligação empresários e capitalistas que buscam meios de sistematicamente se furtarem às suas responsabilidades sociais, da mesma forma que líderes religiosos que buscam apenas explorar a pobreza, a ignorância e a boa-fé popular.

Em tal quadro os sentimentos estão profundamente alterados e, como dissemos, chegam a estar pervertidos: por um lado há o culto à mesquinhez individual e coletiva, disfarçado sob um manto que conspurca a idéia de “bem comum”; mas, por outro lado, o que permite essa conspurcação é que o altruísmo, a bondade, a generosidade – em uma palavra, o amor – foram substituídos não pela mesquinhez e pelo egoísmo, mas pelo ódio. De fato, o intelectual imoral que exerce a tarefa de legitimar a aberração política que atualmente ocorre no Brasil já disse diversas vezes que o ódio é um sentimento tanto quanto o amor e que, portanto, ele é tão legítimo quanto o amor para motivar as ações humanas. Daí se segue naturalmente o culto à morte, a dicotomização da política, o desrespeito e a intolerância a todos aqueles de quem discordam. A paranóia é mais um traço dessa política degenerada; não há dúvida de que ela é um traço específico de vários importantes líderes dessa onda política, mas é bastante claro que ela também se constitui em uma característica própria ao movimento como um todo: afinal, a política, ou melhor, a República e a cidadania pressupõem uma confiança generalizada, mesmo que abstrata, e essa mesma confiança generalizada é negada sistematicamente pelos cultores do ódio e da violência.

Se o ódio é o sentimento de base e a violência a prática política justificada, do ponto de vista intelectual essa política nutre-se das teorias da conspiração. É fácil ver como as teorias da conspiração vinculam-se ao ódio e à violência: elas também se baseiam na desconfiança sistemática, na falta de respeito pelos outros, na exclusão dos “inimigos” e na autoexclusão dos “eleitos”. A inteligência, aí, não cumpre o papel de esclarecer, mas apenas o de justificar – sempre a posteriori – as idéias derivadas do sentimento de ódio e da prática da violência sistemática.

Em termos coletivos, esses vários traços convergem para uma postura destrutiva e destruidora, que abomina o diálogo e a tolerância; também constitui um grupo que se torna cada vez mais coeso, ao isolar-se progressivamente do resto da sociedade – a quem, aliás, trata na base da pancada (ou do tiro) – e ao realizar um culto à personalidade. A paranóia, as teorias da conspiração e o autoisolamento produzem outro resultado mental: a lavagem cerebral.

O conjunto disso tudo traduz-se na constituição de grupos fanáticos, autoritários, violentos, agressivos, intolerantes – e lamentavelmente extremamente ativos. A experiência histórica já deu nome para esse tipo de movimento: fascismo. O repertório das atividades práticas fascistas também já é conhecido e é constituído não apenas pelo que vimos indicando até o momento, mas também de outras táticas reiteradas, como o emprego sistemático da desinformação, o uso proposital e perversamente ambígüo das palavras e a atribuição aos seus adversários (sempre entendidos como “inimigos” a serem abatidos) de práticas e maus sentimentos que, todavia, correspondem às práticas e sentimentos dos próprios fascistas. Esse conjunto evidencia, afetivamente, que subjazem a ele não apenas os sentimentos egoísticos, mas principalmente o desejo de destruir tudo aquilo de que os fascistas discordam ou que lhes desagradam: é a consagração do ódio e do medo. Do ponto de vista intelectual, as táticas adotadas pelo fascismo visam a causar confusão sistemática entre a população e, mais do que isso, a corromper a confiança básica para qualquer sociedade, seja entre cidadãos e governo, seja dos cidadãos entre si: é a consagração da desconfiança. A noção de uma realidade objetiva, externa às vontades individuais e coletivas, é combatida de maneira direta e indireta, seja por meio da sua negação clara, seja por meio da confusão e da desconfiança. Assim, o Estado torna-se uma instituição basicamente repressiva e as únicas coisas de que se pode ter certeza (além do medo e do ódio) são as decisões tomadas em cada momento pelo líder.

O Brasil vive esse triste quadro há cerca de dois anos; os grupos sociais que se baseiam e que apóiam tais concepções organizam-se há muito tempo – começaram justamente nos meios de comunicação, empregando a violência retórica a título de    “verdade” – e obtiveram um inaudito sucesso político nas eleições presidenciais de 2018, em parte devido ao fracasso retumbante da esquerda, em parte devido à inépcia política e moral da centro-direita, em parte devido à exitosa manipulação das idéias e dos valores da população brasileira. Em meados de 2020, quando escrevo estas páginas, o estado de coisas descrito acima aprofunda-se mais e mais, com grupos de fanáticos manifestando-se cada vez mais, manipulando as instituições públicas, realizando lavagem cerebral em seus membros e seus simpatizantes – e, talvez o mais importante, ocupando espaços públicos (como na constituição de “acampamentos de resistência” na Esplanada dos Ministérios em Brasília)[x].

Pode-se com legitimidade obtemperar que grupos fascistas constituem a exceção e não a regra do ambiente sociopolítico brasileiro e que, assim, não faria muito sentido afirmar a sua importância política. De fato, esses grupos são realmente minoritários; entretanto, há pelo menos dois fortes motivos para que não se os considere desimportantes. Em primeiro lugar, indicamos antes que esses grupos são extremamente ativos e mobilizados; em vez de diminuírem em tamanho e em quantidade, o movimento que se vê é o de eles aumentarem em quantidade de membros, em quantidade de grupos e em organização interna (sem contar a lavagem cerebral, que ocorre continuamente). Associado a isso está o fato de que, embora tenham um violento discurso antissistêmico, tais grupos obtiveram o poder em 2018 e o atual Presidente da República não disfarça sua vivíssima simpatia para com eles. À medida que o tempo passa, a instabilidade do atual governo federal aumenta, o que aos olhos dos ativistas parece justificar suas atividades e, portanto, torna-os mais aguerridos: não se pode desprezar, nunca, a importância política que grupos minoritários e marginais, mas extremamente aguerridos, podem ter.

Em segundo lugar, embora os grupos paramilitares sejam minoritários em relação à totalidade da população brasileira e sejam evidentemente radicais, ou ultrarradicais, em seus posicionamentos sociopolíticos, o fato é que eles legitimam a sensibilidade, o discurso e a prática da violência, do ódio e da intolerância, abrindo espaço para que grupos menos extremos que eles, mas defensores de comportamentos assemelhados, organizem-se, manifestem-se e obtenham poder. Na verdade, o caráter exemplar dos extremistas para os não-extremistas não é uma simples possibilidade, mas uma realidade efetiva, como se pode constatar no comportamento reacionário de inúmeros grandes empresários brasileiros que apóiam tais grupos e combatem com palavras, dinheiro e humilhações de seus empregados a dignidade indígena, a qualidade de vida dos trabalhadores, a proteção ao meio ambiente, as liberdades de consciência, expressão e organização (com a evidente exceção das suas próprias “consciências”, expressão e organizações) – e, durante a presente pandemia de covid-19, o trabalho quase compulsório de todos os que não são doentes e/ou idosos, em franca oposição às recomendações de todas as organizações médicas do mundo inteiro[xi]. Em outras palavras, a mera existência de tais grupos extremistas abre espaço para que seus valores e suas idéias ganhem espaço na sociedade, passando a estar disponíveis no repertório sociopolítico nacional; nesse sentido, mesmo pessoas que poderíamos em outros contextos julgar sensatas, razoáveis, dotadas de boa vontade, podem deixar-se seduzir pelo fascismo, mesmo e principalmente quando suas idéias e valores não são apresentadas com clareza como sendo fascistas.

A necessidade de ligas religiosas e políticas

 

Como dizia Augusto Comte, a natureza do problema indica a natureza da sua solução. O problema vivido atualmente no Brasil é político e moral; assim, são necessárias medidas políticas e morais. Essas medidas devem ser tanto diretivas (educativas) quanto repressivas (jurídico-policiais) e devem ser aplicadas com urgência cada vez maior.

As medidas políticas são as mais diretas e as mais fáceis de serem implementadas; o ordenamento político brasileiro orienta-se claramente em prol das liberdades, do respeito à vida, da tolerância etc.: as autoridades, portanto, devem fazer cumprir as leis e coibir o máximo possível, mas sempre dentro dos limites da lei, todos os comportamentos violentos e de ódio.

Todavia, a repressão é o ambiente em que os fascistas sentem-se mais à vontade; a planta do fascismo só é exterminada quando o conjunto da população afirma com todas as letras, de maneira clara, que o fascismo é inaceitável; aliás, quando o conjunto da população recusa a árvore e também impede que as sementes do fascismo surjam e brotem. Esse trabalho, não há dúvida, é muito mais difícil e de longo prazo – o que não quer dizer, todavia, que ele não possa render frutos de imediato.

A ação pedagógica depende de ligas religiosas e políticas. Os conservadores, que tradicionalmente afirmam a importância dos valores morais, devem reafirmar essa importância, mas ao mesmo tempo devem deixar de lado suas repugnâncias pelo que consideram os exageros do progresso e devem assumir que no Brasil as liberdades, o respeito mútuo, a tolerância são efetivamente tradicionais e, portanto, devem ser valorizadas e respeitadas. As diversas religiões existentes no Brasil – fetíchicas, politeístas, monoteístas, metafísicas e positiva – devem igualmente afirmar, isoladas ou em grupos, que só o amor constrói, que o altruísmo deve prevalecer sobre o egoísmo, que o ódio não pode nunca ser considerado o pilar de nenhuma política nem de nenhuma organização social. Em várias ocasiões as religiões teológicas defenderam valores contrários a esses, em particular algumas religiões monoteístas; entretanto, ao menos nominalmente todas – fetichistas, teológicas, metafísicas, positiva – defendem atualmente o amor, o altruísmo, a tolerância: que o afirmem mais e mais vezes, que repudiem o ódio, o egoísmo, a intolerância[xii].

Em termos políticos, é necessário que os vários partidos e grupos sociais unam-se em favor das liberdades e contra o fascismo. Essa união não precisa ser explícita: basta que tacitamente os grupos deixem de ferir-se uns aos outros e passem a envidar esforços sinérgicos, ou seja, na mesma direção, com o mesmo objetivo. Da mesma forma, os líderes políticos devem agir no sentido de preservar e fortalecer as instituições republicanas, além de adotarem os remédios republicanos para nossos correntes males políticos. Isso equivale em particular a duas séries de medidas: por um lado, os líderes políticos devem deixar de fazer mesquinhos cálculos político-eleitorais e devem passar a mirar no afastamento constitucional do atual Presidente da República, cujo comportamento já se revelou mais do que pródigo em crimes comuns, crimes de responsabilidade, quebras do decoro etc. Por outro lado, os líderes devem abandonar qualquer esperança de substituir o presidencialismo pelo parlamentarismo: tal substituição não resolveria nenhum problema, geraria um desgaste sociopolítico inaceitável para o país atualmente, oneraria o país com uma estrutura inútil (a Presidência de enfeite) e substituiria o governo do fascista pelo governo dos mancomunados.

A chamada sociedade civil pode e deve apoiar os esforços tanto da liga religiosa quanto da liga política. Os chamados “intelectuais”, por fim, têm que se pôr ao lado da sociedade civil e da liga religiosa, de modo a atuar como formadores de opinião; assim, devem abandonar os sempre existentes desejos de assumirem o poder (no lugar dos grupos políticos que a cada momento governam, geralmente na forma de oportunistas propostas parlamentaristas). No quadro atual, os intelectuais não podem furtar-se à obrigação de manifestarem-se publicamente ; atuando como formadores de opinião, os intelectuais devem indicar as possibilidades de ação para os políticos e os efeitos sociais e políticos do fascismo; mas, como formadores de opinião, devem apenas secundar os esforços da liga religiosa, cujo papel é o de reverter a putrefação moral que se estende pelo país.

A substituição do atual governo, fascista, por um outro que não o seja não encerra nossos problemas; ela é uma etapa necessária mas insuficiente. O trabalho pedagógico, da cultura do amor e do respeito, deve ser mais uma vez retomada no país; em particular, ela deve refletir-se politicamente no abandono radical de qualquer discurso e de qualquer prática que oponha brasileiros contra brasileiros, ou “nós” contra “eles”: essa é a verdadeira e profunda origem dos males que nos afligem.






[i] Gustavo Biscaia de Lacerda, sociólogo.

[ii] Este documento deveria ser um pequeno artigo episódico para eventual publicação em jornal diário; entretanto, a natureza do problema e a necessidade de explicar com um mínimo de detalhe a interpretação positiva de nossas dificuldades levou-me a ampliar cada vez mais a redação. Como ficará claro ao longo das páginas seguintes, esta é uma contribuição positivista para os profundos problemas que afligem atualmente o Brasil; embora sejamos suspeitos para falar, até o momento é a única interpretação que considera com a profundidade necessária os vários aspectos essenciais desses problemas.

[iii] Os romanos, que como a respeito de tantos outros aspectos são um dos nossos melhores antepassados políticos, designavam os postulantes aos cargos eletivos como “candidatos”, ou seja, como indivíduos “cândidos”, que trajavam togas talares da cor branca exatamente para indicarem sua pureza moral.

[iv] Vale notar que muitos dos “realistas” com frequência são acadêmicos que – o mais das vezes de maneira secreta – gostariam eles m esmos de exercer o poder.

[v] A Moral foi justamente denominada de “ciência sagrada” por Augusto Comte; ela está no ápice da série enciclopédica, que organiza por generalidade objetiva decrescente e generalidade subjetiva crescente as ciências abstratas mais gerais: Matemática, Astronomia, Física, Química, Biologia, Sociologia e Moral. A Moral é a ciência mais complexa e a mais nobre; por isso mesmo foi a última a constituir-se, pois exigia que o entendimento do mundo e do ser humano ocorresse antes. O conhecimento teórico, abstrato, da Moral conduz imediatamente à atividade prática, concreta, que lhe é própria e que consiste na orientação de cada indivíduo em sua vida, considerando o caráter social do ser humano.

[vi] A partir disso se evidencia que a descrição da realidade do mundo não se opõe, nem pode opor-se, à idealização desse mesmo mundo. Da mesma forma, isso também evidencia que a busca do conhecimento real tem que se aliar, ou melhor, tem que se submeter à busca do conhecimento útil.

[vii] Augusto Comte considerava pelo menos mais um problema relativo à inteligência, que é a sua busca incessante de ela mesma querer ser o princípio regulador e coordenador da economia moral em vez de submeter-se aos sentimentos (altruístas). Essa questão, importante por si só, refere-se mais à autonomia da inteligência e tem uma aplicação mais direta entre os “intelectuais”; como a presente reflexão tem um caráter político, esse problema não nos interessa tanto agora.

[viii] O conjunto das observações precedentes também esclarece porque os analistas políticos “realistas” estão errados ao considerarem que a política é apenas a disputa de poder e ao desprezarem o papel da idealização e dos valores morais na vida política. Além de fazerem uma descrição extremamente pobre da atividade política (apesar de dizerem-se “realistas”), eles ou deixam de lado ou ignoram aspectos centrais da natureza humana que têm impacto direto na realidade política, como a busca do bem comum, a própria necessidade de idealizar a realidade para desenvolver atividades, o devotamento pessoal a causas que ultrapassam as motivações egoísticas.

[ix] Vale notar, de qualquer maneira, que a Religião da Humanidade sistematiza as concepções acima e, mais do que tudo, sistematiza o culto, de maneira a estimular cotidianamente o altruísmo, com vistas à regulação da inteligência e da atividade prática.

[x] Em maio de 2020, por exemplo, um grupo denominado de “300 de Brasília” fez um acampamento na Esplanada. Esse grupo – que, apesar do nome, não se constitui por 300 mas por cerca de 50 pessoas – é ao mesmo tempo militantemente “cristão”, agressivo em seu linguajar, defensor da extinção de instituições como o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional, defensor do fim da “imprensa tradicional”, defensor de intervenção militar na política e do Ato Institucional n. 5 (de 13.12.1968, o mais violento de todos os AIs), defensor do uso de armas para “proteção”, defensor de uma “ucrainização do Brasil” (ou seja, da ocorrência de uma guerra civil no país, de maneira semelhante ao que ocorre na Ucrânia, após a invasão russa e a tomada violenta da Criméia em 2015). E tudo isso ao mesmo tempo em que dizem que são “não-violentos” e “a favor da vida”. O grau de confusão moral, intelectual e política é evidenciado pelo uso simultâneo de camisetas e de bandeiras enaltecendo a monarquia brasileira e a bandeira nacional republicana!

Aliás, no que se refere à bandeira nacional, esses grupos repetem sem cessar o “Ordem e Progresso”, entendendo por “ordem” um autoritarismo militar, ao mesmo tempo em que desprezam o “Positivismo” e ignoram profundamente que, para Comte e o Positivismo, a “ordem” inclui as liberdades civis e o repúdio à violência.

Por fim, a referência à Ucrânia é reveladora: se há lá uma guerra civil, isso se deve a que grupos pró-russos defendem ou a anexação total do país à Rússia ou a independência de partes do território ucraniano (seguidas, evidentemente, pela anexação “voluntária” à Rússia). A Rússia, nesse caso, não é uma expectadora inocente: baseada em um fascismo místico, pelo menos desde o início do século XXI ela defende a anexação da Ucrânia ao seu território e o combate sistemático ao Ocidente (daí, aliás, o apoio russo à eleição de Donald Trump nos EUA e à saída da Inglaterra da União Européia).

[xi] Reveladora da intensidade da degradação moral desses empresários é a afirmação de que na pandemia não haveria problemas em que morressem umas cinco ou sete mil pessoas, de modo geral idosas; o importante seria que a economia continuasse a funcionar (e, portanto, que todos infectassem-se com o coronavírus-2, até o momento sem vacina disponível contra ele). Em meados de maio, enquanto escrevemos, a taxa de mortes já ultrapassou a marca dos 14 mil mortos – mas é claro que tais empresários não mudaram de opinião: desde que a economia continue funcionando, as mortes podem continuar ocorrendo.

[xii] Como estamos indicando, o Positivismo prega exatamente o contrário do que tais grupos ultraconservadores atribuem-lhe; mas, ainda assim, pessoas de boa vontade, movidas por boas intenções, repetem erros sistemáticos na ânsia de serem “críticos” e de evidenciarem alguma cultura histórica – exemplo disso foi a desastrada e profundamente injusta observação feita pelo rabino Michel Schlesinger, da Congregação Israelita Paulista, em artigo no jornal O Estado de S. Paulo de 9 de maio de 2020, em que atribui ao “Positivismo científico” a motivação e a justificativa para atrocidades sociais variadas (aliás, note-se: atrocidades apenas sugeridas, mas não nomeadas). Logo um rabino, sacerdote de uma religião que tanto preza o conhecimento e que, como poucos povos e culturas, sofreu os efeitos da perseguição e da desinformação!

05 outubro 2014

Relevância contemporânea do Positivismo II

Em seu n. 66, de julho-setembro de 2014, a revista Insight Inteligência publicou um artigo de minha autoria, intitulado "O Positivismo ontem como hoje" (disponível aqui). 

Ele é a segunda versão, reduzida, de um texto intitulado "Aplicando Comte atualmente, ou sobre a relevância contemporânea do Positivismo": esse texto maior não foi publicado porque ultrapassava os limites de tamanho da revista. 

Assim, como o texto original tinha algumas observações que não foram publicadas, pode ser interessante publicá-las; por esse motivo, ele está disponível abaixo.


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Aplicando Comte atualmente,

ou sobre a relevância contemporânea do positivismo[1]


Gustavo Biscaia de Lacerda

1) Introdução

Filosofia, política e até religião criada no século XIX, designado por uma palavra cujo sentido tornou-se amplamente polissêmico (embora atualmente com um forte viés negativo), pode parecer pelo menos curioso falar-se nesta segunda década do século XXI em “relevância contemporânea do positivismo”. Afinal de contas, sem muito rigor costuma-se associar-se a ele as mais variadas idéias, muitas delas consideradas datadas ou que se gostaria que o fossem: higienismo, cientificismo, evolucionismo, eurocentrismo, racionalismo, empirismo, iluminismo etc. Além disso, integram o senso comum acadêmico na forma de anedotas algumas particularidades da vida e da obra de Augusto Comte, o fundador do positivismo: o casamento com uma prostituta, a crise mental, a paixão platônica, a fundação de uma nova religião; tais anedotas, também com freqüência, soem constituir o grosso do que se “conhece” a respeito do tema.
Para piorar, embora o uso das palavras “positivismo” e “positivista” sejam de uso recorrente na academia, a par das suas intensas polissemias o sentido específico atribuído a elas não é claro, ou seja, elas designam ou podem designar muitas coisas mas não se tem clareza a seu respeito. Por exemplo: é perfeitamente possível (embora incorreto) em uma discussão historiográfica falar-se em “positivismo” e indicar que um dos seus precursores ou principais autores teria sido A. Comte, sem ter clareza de que o positivismo na história refere-se mais a Leopold von Ranke e que a obra de Comte aproxima-se mais da Escola dos Anais (REIS, 2006).
Tratar da “relevância contemporânea do positivismo” exige, portanto, um sério esforço preliminar de esclarecimento dos termos empregados, ou seja, de uma “limpeza do campo” e distinções conceituais. Esse exercício não é propriamente simples, pois, embora seja mais ou menos fácil distinguir (digamos) o positivismo comtiano do positivismo historiográfico, a delimitação do que a Sociologia e a Ciência Política praticadas nos Estados Unidos chamam de “positivismo” é muito mais problemática: enquanto as idéias de Comte e de Ranke estão explicitadas em suas obras, sendo possível consultá-las diretamente na fonte e determinar com precisão o que eles disseram – ainda que sempre haja espaço para problemas de interpretação –, o positivismo sociológico estadunidense é o resultado da confluência de pelo menos três tradições (a das pesquisas empíricas de Chicago, a do empirismo lógico e a do evolucionismo europeu) que deram origem, por sua vez, a uma quarta tradição, ou seja, a um modo de pensar mais ou menos difuso, mais ou menos institucionalizado, mas a que apenas com dificuldade pode-se atribuir nomes específicos (cf. BRYANT, 1985; 1989)[2].
Da mesma forma, outras correntes e tradições apresentam vagamente o positivismo a fim de definirem suas próprias posições a contrario: os exemplos mais fáceis são o da Escola de Frankfurt e o autodenominado “pós-positivismo” na disciplina acadêmica das Relações Internacionais. No que se refere aos frankfurtianos, a participação de T. Adorno e J. Habermas na célebre “disputa sobre o positivismo na Sociologia alemã”, ocorrida ao longo da década de 1960 (cf. ADORNO, 1976), ilustra com clareza esse aspecto: ambos os autores elaboraram um conceito de positivismo que não correspondia a nenhuma das suas variedades até então conhecidas e praticadas, mas, bem ao contrário, a uma idéia que eles tinham do que seria o positivismo: o objetivo não era dialogar com um ou outro autor, vivo ou morto àquela época[3], mas expor, na melhor das hipóteses, um modelo por eles definido e, na pior das hipóteses, uma caricatura a ser mobilizada no sofisma do espantalho[4].
No caso do chamado “pós-positivismo” a situação é um pouco distinta, pois ele refere-se a uma pluralidade de perspectivas, que se entendem como desde fortemente discordantes até contrárias ao “positivismo”. Em todo caso, a definição de positivismo é igualmente problemática, ora aproximando-se do que a Sociologia estadunidense entende por tal palavra, ora aproximando-se de outras concepções (como a da Escola de Frankfurt).
De modo mais amplo, é fácil concordar com a observação de Loïc Wacquant (1996), segundo a qual o “positivismo” passou de uma palavra com sentido fortemente positivo (entre o século XIX e meados do século XX) para uma com sentido fortemente negativo (aproximadamente a partir da década de 1960), chegando a ser uma espécie de xingamento acadêmico e intelectual.
Não importa, neste momento, fazer as distinções sugeridas acima; de nossa parte, em outro lugar já as propusemos para alguns casos (LACERDA, 2009a), bem como alguns outros autores também já o fizeram a respeito de outras áreas (Norberto Bobbio (1995) para o Direito, José Carlos Reis (2006) para a História). O que importa indicar é a necessidade de tais distinções para tratar do “positivismo”, por mais cansativo e aborrecido que seja tal exercício intelectual (e por mais cansativo e aborrecido que seja sua reafirmação e sua recapitulação em discussões como a presente).
Feitas essas observações iniciais, convém afirmar algo que está implícito até aqui: ao tratarmos do “positivismo”, consideraremo-lo equivalente à filosofia, à política e à religião elaborados por Augusto Comte – seja para afirmar-se o parâmetro utilizado aqui, seja porque a palavra “positivismo” foi criada por A. Comte para referir-se ao próprio sistema.
Por outro lado, também convém refletirmos sobre o que significa, ou significaria, a sua “relevância contemporânea”. Os profissionais ligados às elaborações mais recentes da área acadêmica da História das Idéias (ligados à Escola de Cambridge, à História dos Conceitos, à História Conceitual do Político) soem afirmar que toda elaboração intelectual é historicamente localizada, com isso querendo dizer que só é possível entender uma idéia se ela for devidamente contextualizada em termos políticos, sociais e intelectuais – embora a idéia de “contexto” possa sofrer maiores ou menores ampliações em termos de seu escopo, isto é, de sua duração cronológica. Essa idéia, simples e importante em si mesma, pode conduzir a exageros como o de aceitar idéias apenas estritamente nos contextos específicos em que foram elaboradas, rejeitando, inversamente, a sua transposição para outros períodos ou, o que é até certo ponto equivalente, a sua adoção por outros períodos: esse exagero poderia, quem sabe, ser denominado de “hipercontextualismo” e impede in limine que idéias antigas sejam adotadas em períodos posteriores[5] (embora isso não venha ao caso).
É claro que esse exagero não nos pode impedir de reconhecer a validade e a necessidade teórica e metodológica da contextualização: situar uma obra no período em que foi escrita permite compreender quais os desafios políticos, sociais e intelectuais com que ela deparava-se no momento em que era escrita e, assim, a que procurava responder e/ou solucionar; os autores e atores com que a obra dialogava, quem criticava, em quem apoiava-se e assim por diante. Nesse sentido, parece claro que a contextualização permite entender melhor – alguns diriam “adequadamente” – a própria obra.
Entretanto, falar em “atualidade” de uma obra implica dar um passo além da contextualização: implica transportá-la para os dias atuais e fazer um esforço teórico para adaptá-la às condições sociais, políticas e intelectuais presentes. Ou melhor: procurar adaptá-la para o momento presente naquilo que ela é mais “datada” ou mais “enraizada” no contexto em que foi produzida, assim como aplicar, na medida do possível, aqueles elementos que são mais atemporais ou cujos contextos abrangem períodos mais amplos[6]. Considerando que a investigação, ou proposição, da “atualidade” de uma obra envolve um exercício de imaginação, isto é, corresponde por si só a um esforço de teorização (social, política, estética, científica), talvez seja mais fácil de compreender a restrição que apresentamos há pouco a respeito da “hipercontextualização”: se aferrarmo-nos a um determinado contexto e ao enraizamento de uma obra nesse contexto, será impossível transportar para outro momento no tempo e outro lugar no espaço as idéias contidas na obra – e, portanto, a sua utilidade será diminuída e, como sugeriu P. Rosanvallon, essa experiência histórica pode ser desperdiçada.
Em que pese o aspecto mais puramente acadêmico dos comentários acima – no sentido bourdieusiano de referência cerimonial aos maîtres à penser do momento (BOURDIEU, 2011) –, eles têm uma importância lógica para a presente discussão: afinal de contas, não se pode, isto é, não seria aceitável falar-se pura e simplesmente, de maneira impune, em “atualidade do positivismo”. Como lembramos anteriormente, é o antigo colaborador do próprio Bourdieu (WACQUANT, 1996) quem observou que o positivismo atualmente é um termo intelectualmente pejorativo, a ser utilizado em disputas intelectuais contra os adversários; ele é o “outro teórico”, a ser negado, desprezado, rejeitado (cf. LACERDA, 2009a), ainda que devendo sempre estar sub-repticiamente presente: como seria possível, nesses termos, que houvesse alguma outra atualidade para o positivismo além da sua completa negação?
Ao contrário das perspectivas que apodam ao positivismo uma função negativa a priori, um exame cuidadoso da obra de Comte sugere que, talvez, seja possível falar-se em sua “atualidade”. Para isso, reafirmemos, a limpeza preliminar do campo (intelectual, semântico, institucional) é condição sine qua non; em seguida, importa delimitar o que se entende por positivismo de Augusto Comte: por um lado, a integralidade de sua obra, incluindo aí também, e principalmente, o que se chama de sua obra religiosa, isto é, os livros, os documentos e as cartas escritas após 1846, após o encontro com Clotilde de Vaux e o que se chamou de “l'année sans pareille”, “o ano sem par”, até a morte do fundador da Sociologia, ocorrida em 1857. O grosso da produção comtiana encontra-se nesse lapso temporal: o Discours sur l'ensemble du positivisme (1848), o Système de politique positive (1851-1854), o Catechisme positiviste (1852), o Appel aux conservateurs (1855), a Synthèse subjective (1856), centenas de cartas, várias obras menores e os projetos políticos e sociais elaborados pela Sociedade Positivista durante a breve existência da II República francesa (1848-1851). Assim, por outro lado, incluímos na rubrica de “positivistas” os discípulos e seguidores chamados de “ortodoxos”, isto é, que aceitavam a obra religiosa, em contraposição aos que aceitavam apenas a obra científica (ou seja, o Système de philosophie positive, 1830-1842) e que eram chamados de “heterodoxos”[7]: entre estes estão John Stuart Mill e Émile Littré e, entre aqueles, Pierre Laffitte e os brasileiros Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes[8]. As diferenças, dissensões e disputas entre os sub-ramos dos ortodoxos eram inúmeras e variadas; por exemplo, tornou-se famosa a ruptura ocorrida em 1883 entre os brasileiros e Laffitte: mas, ainda assim, sem entrar no mérito de tal separação, é bastante útil aceitarmos a produção intelectual de ambos esses subgrupos ortodoxos, especialmente para os fins que nos interessam – isto é, para tratar-se da atualidade de Comte[9].
Uma última observação preliminar, que já se constitui também em uma sugestão da atualidade do positivismo, é a respeito do “caleidoscópio epistemológico” comtiano, conforme a feliz expressão de Angèle Kremer-Marietti (2007). Para os conhecedores de Comte é mais ou menos lugar-comum a idéia de que sua obra é ao mesmo tempo sistêmica e sistemática, ou seja, Comte desenvolve em seus escritos progressivamente as suas concepções, ampliando os conceitos e relacionando-os uns aos outros. A visão de conjunto predomina, no duplo sentido de que (1) a perspectiva geral dá o tom e orienta as perspectivas particulares e (2) de que um elemento relaciona-se de várias maneiras a outros elementos. Ora, o caleidoscópio é um aparelho com uma quantidade limitada de pedras coloridas, que, movimentado, revela sempre outras e novas configurações; da mesma forma, cada um dos capítulos dos livros comtianos sugere sempre outras perspectivas, outras possibilidades a serem desenvolvidas com outros elementos já expostos ou a expor, dependendo do capítulo e do livro que se leia. Da mesma forma, como notou Ângelo Torres (1997), uma das características da redação de Comte é a sua ambigüidade – não em um sentido negativo, de frases ou palavras com duplo sentido (ou sentido triplo, quádruplo etc.) e cujo sentido específico não seja possível determinar, mas uma ambigüidade positiva, constituída pela incorporação progressiva de vários sentidos e, assim, pela ampliação do campo semântico das palavras e dos conceitos empregados. Esses dois aspectos (o “caleidoscópio epistemológico” e a ambigüidade estilística) sugerem um caráter intelectualmente “aberto” do pensamento comtiano – aliás, em contraposição às interpretações usuais, que o percebem como fechado, devido a ele constituir-se como um “sistema”.
Todos esses comentários preliminares são necessários para termos clareza a respeito do que estamos tratando. Dito isso, podemos passar a examinar a atualidade do positivismo, ou seja, quais os seus aspectos que, de maneira mais ou menos evidente, têm aplicação ou utilidade no século XXI, seja no Brasil, seja no mundo. Esses aspectos terão um viés razoavelmente claro, vinculados à nossa área de trabalho e de formação acadêmica: as sugestões abaixo tendem a referir-se a problemas políticos, a questões sociológicas ou, ainda, em menor escala, a temas epistemológicos. É claro que se fôssemos engenheiros, músicos, psicólogos, literatos, médicos ou outros profissionais, proporíamos ainda outras possibilidades; nesse sentido, o rol abaixo não tem a menor pretensão de esgotar o assunto.
Em um texto de alguns anos atrás (LACERDA, 2009b) elaboramos uma relação preliminar de 12 elementos do positivismo que, parece-nos, apresentam grande atualidade; pretendíamos seguir aqui tal relação, acrescentando vários outros itens, que seriam expostos mais ou menos em ordem alfabética. Todavia, à medida que redigíamos este artigo, vimos ser impossível seguir tal procedimento ­– não porque as sugestões não se revelassem frutíferas ou porque a ordem alfabética não fosse adequada, mas, justamente ao contrário, os itens que propusemos desenvolveram-se tanto que exigiriam um texto bem maior que um texto de tamanho regular para serem expostas. Assim, decidimos limitar a exposição aos seguintes itens, que correspondem às demais seções deste artigo: sentidos da palavra “positivo”; reencantamento do mundo; afirmação da sociedade civil; defesa de relações sociais pacíficas. Convém notar, de qualquer maneira, que o estilo das próximas seções será expositivo – no sentido específico de que as idéias comtianas serão expostas, mas não haverá contraposição com autores, teorias, concepções contemporâneas (pelo menos, não haverá contraposições sistemáticas); isso se deve à extensão do texto e requererá, da parte do leitor, um pouco do exercício de sua erudição.

2) Sentidos da palavra “positivo”

Comecemos com a palavra “positivo”, que por derivação dá nome ao sistema comtiano e que é empregado amiúde em seus livros. Tratar dessa palavra permite ao mesmo tempo entender algumas idéias do sistema comtiano e expor elementos cuja atualidade é mais manifesta.
A palavra “positivo” foi utilizada inicialmente (como em Comte (1972)) tendo como referência os “conhecimentos positivos”, definidos em contraposição às idéias teológicas e metafísicas, ou seja, sendo sinônimos de conhecimentos científicos, isto é, de conhecimentos que sejam de alguma forma ao mesmo tempo racionais e empíricos (e/ou passíveis de verificação)[10]. Nesse sentido inicial, o “positivo” e, de maneira mais ampla, cada um dos “estágios” da lei dos três estágios refere-se a uma forma de conceber a realidade, o que, no vocabulário atual, pode ser lido aproximadamente como um parâmetro de “interpretação” (em um sentido próximo ao weberiano), ou uma “episteme”, ou um “paradigma”[11]. A esse sentido amplo soma-se a exigência de base empírica das teorias, com isso se indicando que os verdadeiros conhecimentos referem-se àquilo que existe de fato – embora evidentemente seja sempre possível teorizarmos coisas que não existem. Na afirmação comtiana do conhecimento positivo não há nenhuma restrição à teorização em si, nem à formulação de hipóteses explicativas. Por outro lado, não há aí nenhuma exigência de que a todo instante seja necessária a referência a objetos empíricos e, de modo mais importante, o pensamento comtiano rejeita a concepção de que o conhecimento seja a mera coleção de dados empíricos (eventualmente com a adição de alguma inferência generalizante, mais ou menos rasteira). Como explicitado no Discurso sobre o espírito positivo (COMTE, 1992), para Comte o conhecimento positivo é acima de tudo teórico, constituído pelas leis naturais: a base empírica é requisito necessário para elas, mas não elas não se resumem à empiria. Além disso, considerando em termos mais amplos as necessidades intelectuais do ser humano – ou seja, suas necessidades de ter uma compreensão geral e coerente do próprio ser humano, da sociedade e do mundo –, a base empírica é necessária, mas não é suficiente: nesse sentido, Comte considera aceitável o uso de ficções ao mesmo tempo racionais e afetivas para coordenação das idéias e dos sentimentos (e, daí, das ações), desde que se assuma e tenha-se clareza tanto o caráter subjetivo de tais idéias quanto os conhecimentos objetivos de base. Evidentemente, há uma grande distância entre o que é “positivo” em oposição à teologia e à metafísica e o que é “positivo” como sendo, também, o recurso teórico para coordenação teórica e mental: tal distância foi percorrida paulatinamente por A. Comte, dos Opúsculos de filosofia social (1815-1826) e do Système de philosophie positive (1830-1842) ao Système de politique positive (1851-1854); não por acaso, tal passagem corresponde também ao trânsito das reflexões mais científicas para as religiosas.
De qualquer maneira, a distinção entre o conhecimento positivo e o mero empirismo evidencia a inadequação da identidade, com freqüência afirmada, entre positivismo e empirismo: essa identidade é muitas vezes defendida com o fito de afirmar-se a relevância de perspectivas ditas teorizantes, “subjetivistas” e mesmo “metafísicas”[12], associando-se implícita ou explicitamente ao positivismo uma postura antiteórica[13].
Mas como o próprio desenvolvimento da obra comtiana sugere, é possível e mesmo necessário dar um passo além e perceber que o conhecimento positivo permite um regime intelectual, social e político mais amplo, caracterizado pela positividade; esta, por sua vez, seria definida pelos seguintes atributos: real, útil, certo, preciso, relativo, orgânico e simpático. A compreensão de cada uma dessas características é facilitada pela contraposição a seus opostos: real vs. irreal (ou fictício); útil vs. inútil; certo vs. incerto; preciso vs. vago; relativo vs. absoluto; orgânico vs. crítico (ou destruidor); simpático vs. antipático (ou egoísta).
Não é possível aqui comentar cada uma das características da palavra positivo, pois tal exercício ocuparia muito espaço[14]; o que importa notar é que para Comte todas essas características participam de maneira integral da positividade e do “espírito positivo”. Na verdade, lendo-se as obras da sua fase “religiosa”, o que se evidencia é que, tomando-se como pressupostos os quatro primeiros elementos – real, útil, certo e preciso, que têm um aspecto por assim dizer mais epistemológico –, os outros três atributos – relativo, orgânico, simpático, cujo aspecto social é mais evidente – assumem grande importância: não por acaso, é nessa fase que Comte desenvolve cuidadosamente suas reflexões políticas.
Expor tão rapidamente a palavra positivo pode parecer insuficiente – e nossa tendência é concordarmos. Ainda assim, é possível extrair duas ou três conclusões parciais a partir dos elementos apresentados acima. Em primeiro lugar, há um aspecto de desmistificação do positivismo, ao indicar-se como a palavra que resume muito do pensamento comtiano é mais complexa do que se costuma considerar: na intensa ambigüidade da palavra “positivo” é difícil perceber uma concepção simplista, seja da realidade humana, seja da ciência. Em segundo lugar, os elementos reunidos estabelecem parâmetros lógicos, morais e políticos para avaliação dos conhecimentos produzidos, em um sentido que não é apenas epistemológico (“o que e como podemos conhecer?”), mas também prático: “para quê (e para quem) devemos conhecer?”. Como lembrou há alguns anos Michel Bourdeau (2011), o conceito comtiano de “utilidade” está longe de ser meramente técnico ou de sugerir a aplicação imediata e material dos conhecimentos – o que se aplica também e em particular às teorias: afinal, as idéias orientam a realidade humana e estimulam diferentes padrões de comportamentos e de sentimentos; nesse sentido, para Comte o conhecimento deve servir para o aperfeiçoamento humano, que é antes de tudo moral[15]. Em terceiro lugar, a consideração integral da palavra “positivo” permite o estabelecimento de um quadro de referência transdisciplinar, em que não apenas as disciplinas científicas são integradas e vistas em conjunto, como também os mais variados aspectos da existência humana (sentimentos, inteligência, ação prática; artes, filosofia, ciências, indústria, política; educação) são integrados[16].

3) “Reencantamento do mundo”

É interessante notar que, embora afirmasse a racionalidade científica como instrumento para conhecer a realidade, Comte não a estabelecia em princípio e fim da existência humana: tal papel duplo de início e fim seria ocupado pelos sentimentos, isto é, pelos diversos tipos de afetos, dos quais se deveria estimular os altruístas e comprimir (mas não erradicar) os egoístas. O estímulo ao altruísmo ocorreria por meio das relações humanas diretas e também por meio de ações práticas as mais variadas, em que se pode incluir desde, por exemplo, a cooperação com vistas ao bem comum até o que poderíamos chamar de “práticas de memória”, como os cultos individual e doméstico aos antepassados familiares, a recordação dos grandes tipos da história da Humanidade e de cada país etc.
Comte também a prece positivista, cuja função é estimular o altruísmo por meio da veneração, do apego e da bondade, bem como da compressão do orgulho, da vaidade, do instinto destrutivo etc.; ela serve ao mesmo tempo como um instrumento de exame de consciência e como um exercício de preservação da memória dos entes queridos, além de ser um exercício poético individual. De maneira complementar, a posse de objetos, o reconhecimento de caminhos e procedimentos, a lembrança de situações compartilhadas etc. dos entes queridos são outras tantas formas de manter-lhes viva a memória e estimular o altruísmo (cf. p. ex. COMTE, 1996, 4ª conferência). Nesse sentido, L. Fedi (2008, p. 174-175) notou o quanto o apelo comtiano aos cultos individual e doméstico aproxima-se das práticas de judeus contra o esquecimento e a destruição sistemática de vidas que ocorreram no século XX.
Mas, de maneira mais radical, é possível adotar uma certa interpretação da expressão “reencantamento do mundo” para o universo comtiano, por meio do que vários autores chamaram de “neofetichismo”. A idéia do neofetichismo foi proposta pelo próprio Comte e consiste em assimilar o fetichismo ao positivismo, ou seja, em considerar que o planeta Terra e o meio ambiente têm vida, caracterizada pelos sentimentos, mas não pela inteligência: para Comte, essa hipótese deve ser assumida como subjetiva, ou seja, como uma ficção útil, cujo fim é desenvolver o afeto humano e ligá-lo ao ambiente em que vive, ao mesmo tempo permitindo e limitando a ação humana sobre o planeta (no sentido de evitar exageros e desvios). Além disso, o “neofetichismo” é a base para um sistema mais amplo de abstrações destinadas a coordenar, regular e guiar sentimentos, inteligência e atividade humanas: esse sistema é o que A. Comte chamou de “trindade positiva”, composta pelo “Grão-Ser”, pelo “Grão-Meio” e pelo “Grão-Fetiche” (respectivamente a Humanidade, o Espaço e a Terra) (cf. COMTE, 1856; 1929, v. IV). Esses conceitos foram elaborados tendo em vista que o ser humano possa perceber-se como integrando um lugar no espaço e também na história, ao mesmo tempo que respeitando ambos à medida que age e modifica o espaço terrestre e a sociedade em que vive (cf. GRANGE, 1996).
Como observou Pierucci (2003), a expressão “desencantamento do mundo” foi popularizada pela obra de Weber e refere-se mais propriamente ao processo de “desmagificação” da realidade, promovida por inúmeras concepções racionalizantes do universo, entre as quais se incluem mesmo algumas teologias: nesse sentido, não é adequado afirmar que o positivismo busca “reencantar” o mundo, pois ele não visa a reinstituir nenhum aspecto “mágico”; nesse sentido, J. Grange (1996, p. 360) está correta ao afirmar que o positivismo não “reencanta” o mundo. Mas, por outro lado, a valorização subjetiva – assumidamente fictícia e com intenções racionais e afetivas – do planeta Terra e do espaço, bem como a incorporação dos animais e das plantas domesticados no conceito de Humanidade, tornam pleno de sentido e afetivamente importante o mundo em que vive o ser humano. Ampliado e adensado nos termos propostos por A. Comte, o conceito de “(meio) ambiente”, embora seja o lócus da ação humana, não é o local frio em que se pode agir e dispor ao bel-prazer[17].
Seja pela relação com a memória, seja pela proposta do “neofetichismo”, o positivismo promove uma profunda valorização da existência humana, naquilo que ela tem e pode ter de positivo. O que importa notar é que essa valorização vai na direção contrária da progressiva perda de sentido que a ação corrosiva da ciência sobre a teologia acarreta – ao mesmo tempo em que também vai na direção contrária de inúmeras filosofias contemporâneas (niilistas, pós-modernas e/ou ultracontextualistas), que afirmam orgulhosas a inexistência e a impossibilidade de sentido na vida humana.

4) Afirmação da sociedade civil

As idéias políticas de Augusto Comte são usualmente resumidas na sua proposta de “ditadura republicana”, em que o destaque é concedido à palavra “ditadura”, entendida como governo forte e autoritário – de preferência mantido por militares – e em caráter permanente. Entretanto, a proposta política positivista afirma precisamente o contrário desse senso comum: a “ditadura republicana” é um governo civil temporário (porque estritamente transitório) caracterizado pelas liberdades públicas, das quais as mais básicas e importantes são as liberdades de pensamento, de expressão e de associação: em vez de basear-se no autoritarismo e na violência, a “ditadura republicana” deve estimular as relações sociais pacíficas[18].
Na verdade, o regime político ideal para Comte deve corresponder a uma sociedade ideal, ambos sendo caracterizados pela expressão “sociocracia” (nome dado de maneira paralela à teocracia, que, grosso modo, seria o regime da teologia). Tanto o regime político quanto a sociedade ideais, no pensamento comtiano, correspondem à conjugação de dois elementos: um histórico-científico e outro utópico. A parte histórico-científica baseia-se no estudo do ser humano, em termos individuais e coletivos, bem como em suas relações com o mundo de que faz parte: esse estudo permite que se conheça as suas características, suas possibilidades e seus limites, ou, nos termos comtianos, ele revela as leis naturais sociológicas (que aliás têm um caráter histórico), morais e naturais. A partir desse conhecimento, é possível elaborar um futuro ideal e idealizado, com isso se querendo referir tanto ao quadro que a história pretérita indica de maneira concreta quanto à realidade que essa história sugere ser possível ao ser humano alcançar. Em outras palavras, com base na história é possível sugerir a sociedade mais adequada ao ser humano positivo, com base na “descrição” é possível sugerir prescrições: é dessa forma que, no Système de politique positive, o “quadro do futuro humano” (v. IV) é possível e proposto após os exames preliminares da situação cósmica (v. I), da “estática social” (v. II) e da evolução histórica (v. III).
Assim, na sociocracia a “sociedade industrial” e o “espírito positivo” andam de braços dados, resultando e produzindo relações sociais pacíficas. Como vimos antes, o espírito positivo caracteriza-se, entre outros elementos, pelo relativismo, o que, nesse caso específico, equivale a perceber que a organização sócio-política humana corresponde às necessidades humanas e que varia ao longo da história e do espaço; além disso, tais variações permitem o desenvolvimento de atributos humanos, que vão acumulando-se variadamente com o passar do tempo. Da mesma forma, o relativismo implica a possibilidade de discussão e de reflexão sobre os fundamentos e os procedimentos adotados: tais discussão e reflexão não são fins em si próprios, ou seja, não se discute por discutir, mas para que se compreenda a organização social, para que busque seu aperfeiçoamento e, claro, para que a estrutura social tenha a adesão dos cidadãos.
De maneira correlata, em inúmeras passagens do Système de politique positive, Comte nota que o absolutismo filosófico, com sua busca de causas primeiras e finais e de perspectivas que independam da situação do ser humano no mundo, tende a rejeitar o debate e a reflexão; suas respostas para os problemas que investiga e as suas propostas sociais são “reveladas” e, nesse sentido, devem ser pura e simplesmente aceitas. Em termos sócio-políticos, portanto, o absolutismo tende a gerar a aceitação passiva e irracional da ordem social; nos casos em que convive com o pluralismo, tal convivência decorre ou da tolerância condescendente que uma revelação mantém para com as demais, ou de uma solução de compromisso entre as várias revelações, ou de uma situação em que ele perde espaço para outras concepções da realidade. O resultado sócio-político do absolutismo, portanto, é que ele tende a beneficiar regimes políticos que não aceitam o debate, nem a reflexão, nem a crítica.
Na proposta comtiana, a “sociedade industrial” consiste por seu turno na organização racional e na divisão sistemática do trabalho. De maneira mais ampla, para Comte a “indústria” consiste na ação humana sobre o planeta e, em termos histórico-conceituais, ela opõe-se às “sociedades guerreiras”. As sociedades guerreiras, como o próprio nome indica, são sociedades organizadas em função da guerra, isto é, dos conflitos armados entre grupos sociais; na análise histórica comtiana, após deixarem o extermínio mútuo, tais conflitos passam da busca da conquista de outros povos (como ocorria na Antigüidade), ou seja, ofensivos, para os conflitos defensivos (como nas Cruzadas); por fim, os hábitos e valores guerreiros são substituídos pela valorização da vida, da preservação dos bens e das propriedades e pela consideração de que se vive melhor com a indústria e o comércio que com a guerra – e, inversamente, de que a guerra destrói vidas e bens e diminui a riqueza e o bem-estar. A passagem das sociedades guerreiras para as sociedades industriais implica, evidentemente, a mudança de valores sociais – da glória e da honra para o conforto e o bem-estar –, assim como a decadência e mesmo extinção de alguns grupos sociais, juntamente com a ascensão de outros grupos sociais.
Na sociedade industrial a interdependência dos grupos sociais (resultantes da divisão do trabalho) torna-se mais evidente e, daí, a noção de dever ganha mais força: todos os grupos devem cooperar entre si, cumprindo seus deveres, em vez de buscarem privilégios e sua satisfação por meio dos “direitos”. Diferentes posições na sociedade implicam diferentes deveres: quanto maiores os deveres, maiores devem ser os meios para satisfazê-los e, ao mesmo tempo, maiores devem ser as cobranças para tais satisfações. Em outras palavras, os ricos e poderosos têm riqueza e poder não para usarem e abusarem a seu bel-prazer de tais recursos, mas para empregarem-nos em benefício da sociedade. Os conflitos, decorrentes das diferentes perspectivas e posições na sociedade, devem ser solucionados pacificamente, tendo em mente o bem comum e os deveres mútuos.
Pois bem: o conceito de sociocracia, diferentemente de grande parte da teoria política existente até o século XIX, incorpora com clareza a noção de “sociedade civil”, sendo que Comte usa precisamente essa expressão para referir-se ao espaço público não-estatal[19]. A sociedade civil para Comte não se define de maneira apenas negativa (como aquilo que não é estatal nem privado): ela tem um status social e político próprio, correspondendo ao conjunto dos cidadãos, que trabalham, discutem, fiscalizam o Estado e mantêm a opinião pública. Embora a distinção entre Estado e sociedade civil evidencie por si só que A. Comte estabelece uma clara separação entre os que detêm o poder político e os que não o detém – entendendo-se por “poder político”, neste contexto específico, a capacidade de elaborar leis e de, em último caso, apelar à violência física –, isso não equivale a dizer que a sociedade civil esteja alienada de qualquer participação política e, portanto, incapaz de exercer pressão e ter poder: o que é característico da sociedade civil, como indicado há pouco, é a opinião pública, ou seja, a possibilidade de a todo instante avaliar e, daí, referendar ou rejeitar a organização social e também as políticas levadas a cabo pelo Estado – o que conduz, portanto, ao conceito de legitimidade de um governo.
Em outras palavras, na teoria comtiana a sociedade civil é um dos dois pólos principais da vida política; embora não seja o pólo por definição ativo, não é possível qualificá-la propriamente de “pólo passivo” – exceto, é claro, se considerar-se que a atividade política consiste apenas e tão-somente na possibilidade de emitir as leis e de mobilizar as agências da violência (a polícia, em particular). Assim, é mais adequado caracterizar a sociedade civil comtiana como “pólo menos ativo” da política – ou ainda, de maneira mais precisa, ela seria um pólo diferentemente ativo, ao consistir na sede da opinião pública e também no conjunto da sociedade[20]. A efetiva atividade da sociedade civil na sociocracia pode ser avaliada pela consideração de Comte de que o que se opõe e “equilibra” de fato ao poder do Estado não é a fragmentação do Estado em dois, três, quatro, n “poderes”, mas é a própria sociedade civil[21].
A teoria histórica de Comte, com seus relatos sobre as conseqüências políticas e sociais dos pensamentos absoluto e relativo, assim como sobre as sociedades guerreiras e industrial, ganha mais relevância ao notar-se que a sociocracia só pode viger em uma sociedade caracterizada ao mesmo tempo pelo espírito positivo (relativo) e em uma sociedade industrial, seja porque em sociedades militares a existência autônoma da sociedade civil não é tão clara, seja porque o pensamento absoluto considera a crítica um ato de traição e/ou uma heresia, seja porque sem o pensamento relativo as críticas podem ser motivadas pelo puro espírito destrutivo.
De modo mais específico, a opinião pública é organizada e mobilizada pelo Augusto Comte chamada de “poder Espiritual”, ou seja, pelos pensadores que têm uma perspectiva de conjunto da vida humana, no que se refere à sua história, à situação do ser humano no mundo, às relações entre os vários grupos sociais (incluindo aí os vários países), aos vários elementos da existência humana (artes, ciência, filosofia, indústria, política, educação). O poder Espiritual exerce funções de intérprete, de guia e de educador; devido à importância de tais atribuições e em paralelo aos grupos que em séculos anteriores desempenharam-nas, Comte chama o conjunto do poder Espiritual de “sacerdócio”. Os sacerdotes têm que ser uma combinação de filósofos, sociólogos, pedagogos e conselheiros espirituais, realizando desde uma “Sociologia pública” (como proposto por Michael Burawoy) até o aconselhamento individual: nesse sentido, é interessante notar que suas responsabilidades afastam do sacerdócio os meros cientistas (sejam os cientistas naturais, sejam os cientistas sociais), devido à visão fragmentária da realidade, bem como ao aspecto intelectualista da ciência[22].
Pois bem: seja porque o poder Espiritual baseia sua influência no aconselhamento (e, portanto, no respeito voluntário e pacífico que lhe é dedicado por seus aderentes ou ouvintes), seja porque a possibilidade de fiscalização sobre o poder político só pode ser feito por órgãos e agentes autônomos, seja porque o uso do poder político pelos órgãos de aconselhamento degrada tais órgãos, seja finalmente porque o poder político investido da capacidade de impor crenças gera hipocrisia e cinismo, Augusto Comte afirma que tanto o poder Espiritual quanto o “poder Temporal” (isto é, o Estado) têm que se manter estritamente separados. Uma das conseqüências de tal separação é o que se chama vulgarmente de “laicidade do Estado”, em que o Estado não professa, não protege nem persegue nenhuma doutrina. Outra conseqüência é que na sociocracia os formadores de opinião não podem deter o poder, seja o poder político, seja o poder econômico: para Comte, a situação ideal é que eles sejam pobres (mas, evidentemente, não miseráveis), a fim de manterem sua autonomia face aos poderes (políticos e econômicos).

5) Defesa de relações sociais pacíficas

Nas seções anteriores afirmamos várias vezes que para Comte as relações sociais têm que ser pacíficas; é interessante nesta seção reafirmá-lo, desenvolvendo essa concepção e indicando como ela relaciona-se com um ideal de bem viver, desenvolvido em particular no v. IV do Système de politique positive (1854) e no Appel aux conservateurs (1855).
Na sociocracia, como em qualquer regime, o Estado tem uma importante função social, que consiste em organizar a vida material da sociedade e em manter as relações com outros países: nisso não há novidade. Mas o Estado fundamenta-se na força física: essa observação, que A. Comte adota de Hobbes, indica que quanto mais as pessoas agem apenas em virtude do respeito às leis e apenas na medida em que o Estado obriga, mais as pessoas submetem-se a relações sociais baseadas na força. Para alterar tal quadro, é necessário que cada qual aja de maneira correta porque está intimamente convencido de que precisa agir de determinada forma, sem se ver obrigado a tanto pelo Estado. Isso, evidentemente, implica que os cidadãos ajam cada vez mais a partir do aconselhamento e da opinião, ao mesmo tempo que existam valores comuns amplamente compartilhados pela sociedade, que indiquem quais são as responsabilidades mútuas a partir do que se considera bom, correto, justo etc. Em outras palavras, relações sociais (mais) pacíficas requerem o fortalecimento da sociedade civil, da opinião pública e, em última análise, do poder Espiritual; em outras palavras, requerem o fortalecimento da noção de “dever” (às expensas da idéia de “direitos”).
O ideal, portanto, é que as relações sociais sejam voluntariamente pacificadas; todavia, diferenças de perspectivas e de interesses persistem, gerando conflitos, que podem ser desde desacordos e disputas até greves ou rebeliões. Todos esses movimentos podem ser mais ou menos legítimos (dependendo do contexto específico), embora quanto mais extremos mais excepcionais eles devam ser. Dessa forma, no pensamento positivista os chamados conflitos sociais são aceitos e reconhecidos e, em determinadas condições, são até mesmo valorizados: tal valorização é instrumental, como no caso da luta de classes, em que as disputas entre patrões e empregados deve realçar a necessidade de instituição do poder Espiritual positivo, a par da afirmação da visão de conjunto, dos valores do pacifismo, da interdependência, das responsabilidades sociais mútuas, do altruísmo.
Assim, de modo geral, Comte reconhece a existência dos conflitos sociais e, ao contrário do marxismo, que valoriza a violência e vê nos conflitos o “motor da história”, para o positivismo os conflitos são historicamente datáveis e datados. Como exposto acima, as sociedades militares já não têm vez e as guerras só trazem destruição e desolação. Entretanto, como observamos há pouco, perspectivas e situações particulares conduzem a diferentes interesses, que eventualmente podem transformar-se em interesses conflitantes com os de outros grupos: pacificamente, há que ocorrer a negociação entre as partes interessadas, com ou sem mediação. Uma das partes em conflito pode sentir-se continuamente prejudicada: apelos à opinião pública podem ser utilizados, assim como manifestações públicas, campanhas etc., chegando mesmo à interrupção temporária das atividades, ou seja, às greves: a negociação impõe-se, aí. Em outras palavras, os conflitos devem ser solucionados tendo por parâmetro o valor da fraternidade universal e, de qualquer maneira, rejeitando-se qualquer instrumento violento.
Em relação às atividades materiais, o Estado tem que manter uma visão de conjunto para a sociedade; a despeito disso, ele pode desviar-se de suas funções, seja por menosprezar aspectos da realidade social, seja por privilegiar um grupo às expensas de outro(s), seja por egoísmo e/ou ignorância. Para Comte, a visão de conjunto específica do governo é a que considera o tempo presente – é o que ele chamava de “solidariedade”. De maneira complementar, a verdadeira visão de conjunto, ou melhor, a visão de conjunto mais completa incorpora tanto o aspecto histórico do ser humano (a “continuidade”, no linguajar comtiano) quanto os aspectos não-materiais: por todos esses motivos o poder Espiritual é mais apto a organizar a opinião pública. Dito isso, é claro que pode surgir um conflito entre o Estado e o conjunto da sociedade civil: nesse caso, os vários meios sugeridos acima para solução de conflitos apresentam-se da mesma forma; mas, no limite, Comte reconhece que pode ser necessária mesmo uma rebelião popular para persuadir-se o governo de alterar de conduta. Esse é um aspecto interessante de sua sociocracia, pois nela as forças armadas deveriam ser extintas, mantendo-se organizações de imposição da força apenas com funções policiais, isto é, de manutenção da ordem – e mesmo estas deveriam ser em número suficiente apenas para a estrita manutenção da ordem, mas insuficientes para evitarem rebeliões populares[23].
Um outro âmbito em que as relações sociais devem ser pacíficas é aquele em que a idéia de “pacifismo” é diretamente compreensível, ou seja, o das relações interestatais. Do que já se expôs antes, vários traços da política internacional proposta por A. Comte são discerníveis: proscrição da guerra, relações habitualmente pacíficas, conflitos mediados, extinção das forças armadas, abandono dos hábitos e das práticas militaristas, colonialistas e imperialistas. Por si sós tais propostas apresentam grande relevância contemporânea, seja por serem desafiadoras, seja porque paulatinamente estão incorporando-se à realidade internacional. Mas há alguns elementos adicionais que são interessantes de serem mencionados.
O primeiro deles refere-se à pluralidade de países: para Comte a idéia de um “supergoverno”, isto é, de uma autoridade soberana cujo território cubra todo o planeta Terra é impensável. “Impensável” não porque eventualmente não seja factível – por hipótese ele pode ocorrer –, mas porque um governo com tais dimensões seria despótico. Por que despótico? Devido a duas séries de motivos. Por um lado, um governo desse tamanho não teria condições de efetivamente conhecer e, portanto, regular as realidades locais; a partir de critérios gerais, possivelmente hauridos da experiência da capital mundial, seriam impostos às mais diferentes e distantes partes do mundo parâmetros inadequados para tais partes do mundo. Por outro lado, opondo-se aos anarquistas, comunistas e igualitaristas de modo geral, Comte afirma que tanto o poder quanto a riqueza devem concentrar-se; todavia, o princípio que ao mesmo tempo justifica e regula tais concentrações é o da responsabilidade social: nesse sentido, deve haver poderosos e ricos, mas tais poderosos e ricos devem lançar mão de seus recursos para o benefício da sociedade, respeitando-se todos os elementos apresentados acima, assim como inúmeros outros. Ora, para Comte, o escrutínio público do uso de tais recursos, levado a cabo pela sociedade civil, exige a proximidade física e moral entre gestores e beneficiários: a conseqüência disso é que as unidades políticas têm que ser de pequena extensão. Em outras palavras, responsabilidade social, accountability, valorização da política de base e mesmo um esboço do chamado orçamento participativo[24].
O fundador do positivismo sugeria que as pátrias do futuro – a serem chamadas de mátrias – deveriam ter extensões que ficassem entre as da Bélgica (30,2 mil km2) e de Portugal (92,4 mil km2). Em termos do Brasil, essas extensões corresponderiam a repúblicas que variariam entre o Espírito Santo (46,1 mil km2) e Pernambuco (98,3 mil km2): as menores fundir-se-iam, as maiores desmembrar-se-iam. Considerando essas extensões, Comte sugeria a existência futura de cerca de 500 repúblicas sociocráticas[25].

6) Comentários finais

Desenvolvemos neste texto alguns poucos elementos do positivismo que nos parecem atuais – não porque haja apenas alguns elementos atuais, mas porque a exposição de vários deles exigiria uma quantidade de páginas incompatível com as limitações do artigo. Conforme notamos na seção 1, os aspectos comentados aqui foram anteriormente sugeridos em Lacerda (2009b): rearrumando e ampliando essa lista anterior, poderíamos sugerir ainda, pelo menos, os seguintes tópicos para tratarmos da “atualidade do positivismo”: afirmação da importância social, intelectual e afetiva da mulher; afirmação da importância social, intelectual e afetiva das artes; afirmação da visão de conjunto sincrônica e diacrônica da sociedade e do ser humano; concepção relacional das ciências, de suas teorias e de seus métodos; crítica ao academicismo; crítica ao individualismo ético e metodológico; crítica aos extremos opostos do liberalismo laissez-faire e do comunismo; defesa da fraternidade universal e rejeição do racismo, da xenofobia, do colonialismo etc.; defesa da noção de deveres sociais e crítica à noção de direitos; ética global; método subjetivo como epistemologia superadora de dicotomias (objetivo-subjetivo, “explicação”-“compreensão”); metodologia sociológica histórica e comparativa; perspectiva que conjuga universal e particular, agente e estrutura, ordem e progresso; proposição de parâmetros do bem viver; proposta de justiça social; proposta pedagógica ao mesmo tempo humanista e científica; responsabilidade social, incluindo incorporação e dignificação do proletariado.
Sem querer esgotar os aspectos do positivismo que também poderiam ser explorados, no fundo a lista acima busca apenas estimular a curiosidade a seu respeito. Em todo caso, cremos que as sugestões feitas apresentam grande ressonância com os debates e as questões contemporâneas: nesse sentido, pode-se falar em “atualidade” do positivismo. Por outro lado, a capacidade que os pesquisadores atuais têm de explorar esses aspectos todos, bem como o desejo de levarem a sério o pensamento positivista – em vez de, como observou mas também praticou Wacquant (1996), adotá-lo como o “outro” teórico e como xingamento intelectual – são aspectos fundamentais para que essa atualidade realize-se. Do contrário, continuaremos confirmando a ocorrência do diagnóstico feito em Lacerda (2011a) sobre a impossibilidade institucional de estudos comtianos no Brasil, em que não se estuda Comte porque não se gosta dele e não se gosta dele porque não se o estuda.

Gustavo Biscaia de Lacerda (GBLacerda@gmail.com) é doutor e “pós-doutor” em Teoria Política (UFSC) e Sociólogo (UFPR).

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[1] Agradeço bastante o apoio e a paciência de Christian Lynch para a redação deste artigo.
[2] Exemplar a respeito dessas dificuldades é a produção teórica de Jeffrey Alexander. Esse autor notabilizou-se nas décadas de 1980 e 1990 ao rever as bases conceituais da Sociologia dos EUA; mesmo embora tenha afirmado a importância do estudo e da (eterna) recuperação dos “clássicos” (cf. ALEXANDER, 1999), foi igualmente insensível (ou incapaz) de distinguir as várias correntes que originaram tal Sociologia e, de qualquer maneira, de perceber com clareza os traços específicos do positivismo de Comte em relação ao “positivismo sociológico” dos EUA, como se pode ver em Alexander (1982).
[3] Popper (2004) – que, aliás, rejeitava a alcunha de “positivista”, fosse entendida no sentido comtiano, fosse no sentido do empirismo lógico, em que ele poderia, discutivelmente, ser inserido – observou exatamente esse aspecto em sua tréplica à “réplica” de Adorno: Adorno teria ignorado todos os comentários de Popper no evento inicial da “disputa sobre a Sociologia alemã” (o Congresso da Sociedade de Sociologia Alemã de 1961), tratando de outras questões e considerando aspectos que pura e simplesmente não tinham sido tratados por Popper. O caráter genérico das críticas dos frankfurtianos ao “positivismo” são mantidos também nos textos de Habermas, sejam os presentes na “disputa sobre a Sociologia” (cf. ADORNO (1976)), seja em trabalhos individuais posteriores (HABERMAS, 1968).
[4] O sofisma do espantalho consiste em apresentar, com ou sem dolo, uma versão distorcida ou errada – em todo caso (super)simplificada – do argumento que se deseja criticar para que a crítica recaia sobre a versão distorcida em vez de sobre o argumento inicial.
[5] Essa postura apresenta ainda outras conseqüências, entre as quais podemos citar a recusa de comparações históricas (afinal, se cada contexto só faz sentido em relação a si próprio, a comparação entre dois contextos revelará apenas a particularidade de cada um, em vez de conduzir a eventuais generalizações) e a também recusa de filosofias da história (no sentido de concepções do desenvolvimento humano macro-histórico).
[6] Esse parece-nos ser um dos elementos distintivos centrais entre a História das Idéias e a Teoria Política. A necessária e correta ênfase da História das Idéias nos enraizamentos contextuais das obras e das ações humanas, por mais importante que seja, é insuficiente para exercícios teóricos, sejam eles “normativos”, sejam eles “empíricos”. Inversamente, é claro que isso não equivale a afirmar que as teorizações “normativas” e “empíricas” possam dispensar o conhecimento da história e a perspectiva diacrônica; longe disso: significa “somente” que história e teoria política são momentos intelectualmente diferentes, logicamente sucessivos um em relação ao outro. Sem dúvida que tais observações são objeto de discussões, algumas mais intelectuais, outras mais corporativas: a perspectiva que adotamos aqui se baseia em Comte e, nesse sentido, tem um viés sociológico em vez de historiográfico. Cf. Comte (1972).
[7] Alguns analistas afirmam que tal clivagem, entre “ortodoxos” e “heterodoxos”, é insuficiente para entender todas as relações entre os vários positivistas, adeptos explícitos ou não da obra de Comte; tal insuficiência seria particularmente clara no caso brasileiro. Ainda que tal observação tenha lá seus méritos, ela não apresenta grande importância para este artigo, visto que não se trata aqui de indicar as possíveis configurações concretas dos adeptos do positivismo; além disso, a oposição ortodoxos-heterodoxos – aliás proposta pelo próprio Comte, já na década de 1840 – é suficientemente instrumental para os nossos presentes objetivos.
[8] As diferenças entre os ortodoxos e os heterodoxos não podem ser diminuídas, especialmente porque, grosso modo, a elas correspondem diferenças nacionais, no sentido de que, em traços amplos, pode-se dizer que os ingleses eram heterodoxos e os franceses, ortodoxos, com as correspondentes narrativas a respeito da obra de Comte. Assim, os ingleses tendem a seguir a narrativa de John Stuart Mill, para quem deve-se dividir a obra de Augusto Comte em duas fases, das quais a primeira, “científica”, é aceitável e a segunda é fruto do enlouquecimento do autor: Bevir (1993) e Giddens (2000) repetem esses argumentos (quase diríamos “estereótipos”). Juliette Grange (2008) observa com clareza o quanto Stuart Mill originou mitos a respeito de Comte, seja no que se refere à unidade de sua obra ou à tese da loucura, seja no que se refere à epistemologia dita “positivista” (que seria mais milliana que comtiana).
[9] As dissensões foram realmente variadas, em termos de grupos que se formaram e também ao longo do tempo. Citamos especificamente Laffitte e Lemos-Teixeira Mendes por motivos puramente instrumentais: enquanto a produção intelectual de Laffitte foi enorme, a atuação intelectual, política e social dos brasileiros foi igualmente grande; tanto em um caso quanto em outro é possível entender em termos práticos e detalhados elementos mais abstratos da obra de Comte, o que, em outras palavras, significa ter subsídios para sugerir sua atualidade (ou ainda para propor como ela pode ser atualizada). Poderíamos, é claro, considerar outros nomes e de outras nacionalidades, mas com um rendimento intelectual menor.
[10] Como observou Larry Laudan (1971; 2010), muito do “método positivo” tem que ser entendido em função de combinações variadas, adequadas a cada caso, entre teorização e observação empírica.
[11] Fedi (2008) indicou essa mesma aproximação, reconhecendo, de qualquer maneira, as várias e evidentes diferenças entre cada um dos conceitos específicos.
[12] O conceito de “metafísica” exigiria toda uma discussão à parte. Embora para Comte ele seja secundário, em particular em comparação com o conceito de “teologia” e, ainda mais, com o de “absoluto filosófico”, alguns dos debates filosóficos e epistemológicos do século XX deram-lhe grande centralidade, bem como realçaram a tendência ordinária a considerar-se que “metafísica” e “filosofia” são sinônimas (assim como seriam sinônimas entre si “religião” e “teologia”). Expusemos alguns apontamentos a esse respeito em Lacerda (2011b). Kremer-Marietti (1983, cap. 3-4) e Gane (2006) também comentam um pouco essas questões.
[13] A idéia corrente de que o sistema comtiano vincula-se a uma postura antiteórica poderia originar-se de uma concepção muito empirista seja da ciência, seja das idéias de Comte, ou então de uma identificação das idéias de Comte com as do Círculo de Viena. Como vemos, Comte rejeita o puro empirismo (cf. p. ex. COMTE, 1975, lição 58; 1992); no que se refere ao Círculo de Viena, Halfpenny (1982) e Kremer-Marietti (1983), entre outros, indicam a impropriedade dessa aproximação.
[14] Explicações pormenorizadas podem ser lidas na própria obra de Comte (1899, p. 25-28; 1990, p. 42-44), em Arbousse-Bastide (1990, p. XIX) e também em Lacerda (2010, p. 83ss.).
[15] Resumidamente, o “aperfeiçoamento moral” consiste, para Comte, no estímulo do altruísmo, da cooperação e das atividades pacíficas, em contraposição ao egoísmo (seja individual, seja coletivo), às disputas incessantes e daninhas e às relações sociais violentas e agressivas (cf. COMTE, 1899; 1929; 1996).
[16] Para realizar esse movimento intelectual, Comte define um procedimento geral, o “método subjetivo”, exposto ao longo do Système de politique positive e da Synthèse subjective (1856). É digno de nota e sugestivo que a acusação corrente de doença mental, feita contra Comte por pensadores como Littré e Stuart Mill (no século XIX) e Giddens (atualmente), inclua a proposição do “método subjetivo”.
[17] Grange (1996, p. 357-368) expõe em detalhes o conceito de “neofetichismo” de Comte – na verdade, é ela quem sugere o nome “neofetichismo” para a proposta comtiana de “incorporação do fetichismo”. A exposição feita é detalhada e cuidadosa, mas formulada em linguagem um pouco rebuscada (é a característica francesa de conferir um aspecto literário aos textos filosóficos) e apresenta o grave defeito de ver nas ficções afetivas e lógicas de Comte uma forma tortuosa de buscar a divindade. O livro de L. Fedi (2002), inteiramente dedicado ao conceito de fetichismo, na seção dedicada a Comte não comete esse erro de Grange, ao mesmo tempo em que expõe os principais argumentos e fases do pensamento comtiano a respeito do fetichismo.
[18] Algumas exposições e discussões detalhadas do conceito de “ditadura republicana” podem ser lidas, além de na obra do próprio Comte (1899; 1929, v. II, IV), em Virmond (2003) e Lacerda (2010, seção 7.1; 2013a). Convém notar que o mito da ditadura republicana autoritária é tão arraigado e difundido que, recentemente, por ocasião da efeméride da Proclamação da República em 2013, a revista de divulgação História Viva, em seu número 121, repetiu ponto por ponto os erros e problemas elencados acima, com o agravante de também se apoiar para isso em alguns famosos pesquisadores: uma discussão cerrada mas não exaustiva desses problemas pode ser lida em Lacerda (2013b).
[19] É digno de nota que A. Comte inclui Adam Ferguson – autor do pioneiro livro An Essay on the History of Civil Society, de 1767 – no seu “Calendário positivista concreto”. Ferguson encontra-se no mês de Descartes (11º mês do calendário), dedicado à filosofia moderna, na semana de David Hume, correspondente às filosofias da história, como adjunto de Condorcet.
[20] Conforme nota Pierre Laffitte (1889), a associação dos conceitos de sociedade civil e de governo compõe a noção positiva de “soberania”, que já não é mais a concepção teológica, do direito divino dos reis (p. ex., Bossuet), ou a metafísica, da todo-poderosa, onisciente e inquestionável “soberania do povo” (p. ex., Rousseau).
[21] Comte trata da sociedade civil quando considera o Estado, ou, em segundo sua terminologia, o “governo” ou mesmo o “poder Temporal”. A sociedade civil surge seja como instituição (ou lócus) própria, seja como integrante do “poder Espiritual” (cf. LAFFITTE, 1889; COMTE, 1899; 1929, v. II; LACERDA, 2010, cap. 7).
[22] Na verdade, ao longo de sua carreira Comte muda progressivamente sua opinião a respeito dos cientistas: começando por valorizá-los ao extremo em sua juventude, passa no início de sua vida adulta a fazer-lhes restrições até que, na plena madureza, condena-os francamente, seja por seu corporativismo, seja pela sua irresponsabilidade social, seja pela persistência de hábitos mentais absolutos (dispersão das pesquisas, viés anti-histórico, anti-relativismo) (cf. PETIT, 1998; PICKERING, 2007). Do século XIX para cá evidentemente muita coisa mudou (embora não tudo nem em todos os aspectos), mas é necessário notar que as Ciências Sociais e, de maneira mais ampla, as chamadas Ciências Humanas incorporaram vários dos elementos que mereceram as ácidas críticas de Comte (como a fragmentação, o irracionalismo, o amoralismo, o viés anti-histórico).
[23] Convém insistir em uma idéia sugerida antes: evidentemente, para que essa proposta sociocrática tenha lugar é necessário que as teorias sócio-políticas de caráter metafísico percam sua influência na sociedade e que, em particular, deixe-se de perceber-se nas rebeliões o instrumento básico e/ou essencial de protesto.
[24] O “esboço” de orçamento participativo pode ser visto no projeto de constituição política elaborado pela Sociedade Positivista durante o agitado ano de 1848, em que foi proclamada a II República francesa (cf. SOCIÉTÉ POSITIVISTE, 1981, p. 302-304; LACERDA, 2010, p. 484-492).
[25] Se lembrarmos que a Organização das Nações Unidas foi fundada em 1946 por 51 estados, que ela conta atualmente com 193 membros (mais alguns observadores) e que a maior parte dessa enorme ampliação em 60 anos deveu-se à fragmentação de unidades políticas maiores, a proposta de Comte não parece tão estranha ou ousada.

(Reprodução livre, desde que citada a fonte.)