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18 maio 2023

Teoria positiva da confiança

No dia 24 de César de 169 (16.5.2023) realizamos nossa prédica positiva. Após darmos continuidade à leitura comentada da sexta conferência do Catecismo positivista (dedicada ao conjunto do dogma positivo), proferimos um sermão sobre a teoria positiva da confiança. As anotações que serviram de base para essa exposição, acrescidas de comentários sugeridos pelo público, estão reproduzidas abaixo.

A prédica pode ser vista nos canais Positivismo (aqui: https://l1nq.com/gl2k6) e Apostolado Positivista do Brasil (aqui: https://l1nk.dev/vPER3). O sermão pode ser visto a partir de 41' 45".

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Sobre a confiança

 -        Podemos dizer que a confiança é a base todas as relações sociais

o   Assim, a confiança é um dos conceitos sociais, políticos e morais mais importantes de qualquer sociedade e de qualquer pessoa

o   A confiança seria importante para o Positivismo de qualquer maneira; mas, além disso, o Positivismo fundamenta de diferentes maneiras e tira inúmeras conseqüências da confiança

-        A confiança em si mesma tem aspectos subjetivos e outros objetivos

-        À primeira vista, a confiança seria apenas subjetiva e individual

o   Podemos defini-la basicamente como a crença de que alguém e/ou alguma instituição merece respeito e apoio

§  Em certo sentido, a confiança aproxima-se da esperança: mas, enquanto a esperança tem um aspecto mais abstrato e de longo prazo, a confiança é mais concreta e de curto prazo

o   Mais do que apoio e respeito: trata-se da crença de que, em um determinado âmbito da vida, podemos confiar no julgamento e nas ações tomadas por outras pessoas e/ou instituições

§  Assim, esse aspecto puramente subjetivo assume um âmbito coletivo e tem conseqüências diretas também coletivas

o   Um outro aspecto importante, também subjetivo e objetivo, individual e coletivo: a confiança exige sempre a liberdade e, portanto, a autonomia dos indivíduos

§  Inversamente, isso equivale a dizer que em face do medo, da coerção, da ameaça de violência, não é possível a confiança

 

[Comentários de Hernani Gomes da Costa, feitos em 14.5.2023.]

Boa tarde, Gustavo! Tudo bem? Acabei de ler a sinopse de seu próximo sermão. Pareceu-me capaz de fornecer as bases necessárias para uma apresentação completa do assunto em seu próprio âmbito.

Assim, tenho pois a acrescentar aqui apenas uma sugestão, que embora me pareça acessória (e dispensável, portanto, à compreensão do assunto) proveria o sermão de uma base mais geral e sistemática.

Ela consiste em ligar o tema específico da confiança fazendo-o derivar do conjunto inteiro do dogma, isto é, vinculando-o à concepção fundamental deste.

Se a base da nossa confiança reside na fé demonstrável segundo a qual a Humanidade habita um mundo onde os fenômenos quaisquer seguem leis apreciáveis, é esta precisamente a confiança que nos haverá de conferir toda a segurança emocional necessária à nossa harmonia mental nas relações humanas. O “mundo assombrado pelos demônios”, de que fala Carl Sagan, é o mundo onde se imagina que “tudo pode acontecer”, e que longe de nos favorecer a confiança seja lá no que for, apenas pode nos fazer mergulhar a mente nas mais delirantes e antipáticas possibilidades todas elas tornadas igualmente plausíveis.

Einstein em contrapartida (que costumava “jogar pra a platéia” servindo-se de metáforas teológicas para exprimir seu pensamento, de maneira atraente) certa vez afirmou que “o Senhor é sutil mas não malicioso”, querendo, no fundo, dizer com isso que a Natureza não se furta nunca a dar-se a conhecer à Humanidade, podendo cada um de nós, confiar nela tal como confiaria em alguém radicalmente honesto. Essa fé na regularidade dos fenômenos quaisquer corresponde à mais longínqua referência a que podemos levar o conceito de confiança.

Aquele mesmo pensamento que Einstein exprimiu em termos teológicos, Carl Rogers o expressou vantajosamente em termos fetíchicos, quando afirmou que “os fatos são amigos”. Ora se um amigo é fundamentalmente digno de confiança, nada nos impede de dizer, inversamente, que o que é digno de confiança é amigo.

Assim, a transparência que fundamenta as relações fraternas entre os homens não é um sentimento que precise ser procurado e desenvolvido apenas no interior da ordem moral. Ao contrário ele nos é desde sempre e o tempo todo exemplificado e robustecido por uma concepção diretamente sugerida já pela própria ordem física e mesmo pela ordem lógica. Com efeito, o mundo espontaneamente se oferece à Humanidade tal como sistematicamente as pessoas se propõem a fazê-lo guiadas pelo altruísmo. Ao apenas ser tal como é, e portanto ao tão só manifestar-se a nós apenas (e totalmente) pelo que é, o mundo vem assim a nos prover do mais recuado exemplo físico e lógico de tudo aquilo que nós devemos ser e desenvolver moralmente.

Um outro ponto que talvez merecesse comentar é o contraste radical entre os conceitos teológico e positivo de confiança: o mesmo teologismo que nos convida (ou antes nos intima) a confiar cegamente num ser que - a menos de ser concebido a priori como bom - não poderia deixar de ser tomado como o responsável direto por todas as nossas misérias (sempre então imaginadas como devendo obedecer a algum propósito maior que nos escapa) esse mesmo teologismo, dizia, é também aquele que não hesita em pôr sob suspeita e em difamar a Humanidade inteira, declarando maldito o homem que confia no próprio homem; e isso, note-se, não importando quais possam ter sido as maiores e as mais numerosas provas reconhecíveis e decisivas de sua sempre e inconfundível benevolência progressiva para com seus filhos.

 

-        A confiança exige comportamentos práticos reiterados:

o   É uma questão (1) de honestidade; (2) de coerência dos comportamentos entre si ao longo do tempo; (3) de coerência das idéias e dos valores entre si ao longo do tempo; (4) de coerência entre idéias/valores e atos ao longo do tempo

o   Daí, portanto, o “viver às claras”: sem a publicidade dos atos, é impossível averiguar a coerência e a constância dos comportamentos

-        A Religião da Humanidade estabelece que o dever de simpatia implica uma postura geral de boa vontade de todos para com todos: essa boa vontade implica, por sua vez, uma boa-fé generalizada, o que equivale a uma confiança generalizada

o   Essa é uma das conseqüências da lei-mãe da Filosofia Primeira, “formular a hipótese mais simples, mais estética e mais simpática que comporte os dados disponíveis”

o   Entretanto, como indicamos antes, a confiança tem que ser comprovada e merecida na prática

§  Os atributos que nos permitem desenvolver a confiança são pelo menos estes: liberdade (e/ou autonomia), honestidade, coerência, constância (ou consistência), publicidade

o   Aquele que deixa de merecer a confiança de outrem tem que tratar de reconstituí-la, agindo de maneira adequada

§  Nesse caso, evidentemente, o esforço de recuperar a confiança é daquele que a perdeu, não daquele(s) que foi(ram) frustrado(s)

-        Dois aspectos do “viver às claras”, ambos evidentemente relacionados entre si: um mais moral, outro mais político

o   O sentido moral é o sentido básico e corresponde à moralidade dos atos quaisquer, em que se deve sempre poder justificar publicamente nossas condutas e nossas decisões

o   O sentido político é o da publicidade dos atos quaisquer, sejam públicos, sejam privados

-        A confiança abrange também aspectos sociais e mais objetivos:

o   Há a confiança diretamente nas instituições

§  Exemplos: na ciência; no Estado; nas igrejas; nas escolas

o   Diferentes sociedades, filosofias e modos de entender a realidade estimulam mais ou menos a confiança nas pessoas e/ou nas instituições

§  Exemplo positivo, que comprova diretamente a importância e a validade da confiança: na China pré-comunista, havia uma confiança generalizada e espontânea no governo

§  Exemplos negativos, que comprovam indiretamente a importância da confiança: (1) a teoria política ocidental, herdando a concepção monoteísta e teológica de que qualquer crítica ao governo é uma sublevação (quase) herética, tende a consagrar a revolta sistemática como sinal de afirmação da liberdade; (2) da mesma forma, herdando no fundo uma concepção absolutisto-monoteísta, a teoria política ocidental tende a considerar que a liberdade é ausência de qualquer parâmetro, ou seja, que a liberdade é anárquica e/ou caprichosa; (3) a metafísica consagra a concepção de que todos os poderes e, no fundo, todas as instituições são imerecedoras de confiança

§  Devemos insistir, a partir das considerações acima, em que a metafísica, com seu caráter corrosivo, é completamente contrária à confiança

§  Como, no Ocidente, vivemos em uma época metafísica, a valorização efetiva da confiança torna-se uma tarefa complicada, difícil e até heróica

-        O Positivismo distingue vários tipos de relações sociais; daí, podemos determinar várias “direções” da confiança:

o   Sentidos vertical e horizontal da confiança:

§  Sentido horizontal: entre “iguais” (amigos, correligionários, namorados, cônjuges etc.)

§  Sentido vertical de baixo para cima: dos seguidores para os líderes

§  Sentido vertical de cima para baixo: dos líderes para os seguidores

o   Sentidos restrito e ampliado da confiança:

§  Assim como todo ser humano é um servidor da Humanidade (nesse sentido amplo e um tanto figurado, um “servidor público”) e tem uma atuação restrita (sua profissão, seu ofício) e outra ampliada (a preocupação com as atividades coletivas e a respectiva fiscalização), podemos dizer que a confiança também tem um âmbito restrito e outro ampliado

§  Sentido restrito: confiança nas atividades específicas e limitadas de cada qual (exemplos: nos médicos que nos atendem, nos professores que nos ensinam)

§  Sentido ampliado: confiança que depositamos em alguém e/ou alguma instituição de caráter geral (exemplo: no sacerdócio positivo)

·         É importante lembrar que somos todos servidores da Humanidade, quer trabalhemos no setor “privado”, quer trabalhemos no setor “público”

-        Há um aspecto diretamente político da confiança (“político” no sentido de “pólis”, isto é, de vida coletiva):

o   Toda função social sempre se baseia na confiança

§  Isso quer dizer que não é possível a ninguém desempenhar suas funções (sejam elas estritamente privadas, sejam elas públicas) sem que o conjunto da sociedade e os demais concidadãos confiem uns nos outros

§  Sem essa confiança, o exercício das funções e a eficácia social das atividades fica seriamente prejudicada

o   A plena responsabilidade dos atos e do cumprimento das funções sociais baseia-se sempre na plena confiança

§  Ao dever geral de confiança (ou seja, de confiarmos uns nos outros) corresponde, em contrapartida, o dever específico de que os servidores da Humanidade sejam sempre responsáveis perante o conjunto da sociedade e os demais concidadãos

·         Convém lembrar que a “responsabilidade” significa aqui tanto a efetiva capacidade de ação quanto a responsabilização dos servidores da Humanidade

·         Também importa lembrar que, quanto maiores as responsabilidades, maiores os poderes necessários

23 janeiro 2013

Objetividade e subjetividade, análise e síntese, absolutismo e relativismo


A despeito de ser extremamente denso e exigir a compreensão preliminar de toda a filosofia da história, da ciência e da religião de Comte, o trecho abaixo é notável e esclarecedor, com sua avaliação das relações entre as sínteses absoluta e relativa – a primeira característica da teologia e da metafísica, a segunda, do Positivismo –, assim como das relações entre a subjetividade relativa (de caráter sintético) e a objetividade científica (de caráter analítico).
Augusto Comte indica que a teologia e a metafísica, ambas absolutas e buscando as causas, tiveram sua importância histórica, mas suas sínteses eram subjetivas, embora afirmassem-se objetivas. A passagem para a síntese relativa implica o abandono da pesquisa das causas e a busca das leis naturais; ao mesmo tempo, deve-se abandonar qualquer esperança de síntese objetiva, assumindo-se que a síntese é necessariamente subjetiva.
Com isso, a relação entre subjetividade e objetividade – e, daí, entre síntese e análise – muda. O desenvolvimento da objetividade científica foi necessário para mostrar o quanto a busca do absoluto é infrutífera; mas essa própria objetividade – que é sempre analítica – deve ser sempre subordinada à subjetividade relativa, de caráter sintético: essa subordinação consiste no fornecimento dos materiais intelectuais a serem coordenados pela síntese relativa.

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“Mieux on médite sur la marche primitive de notre intelligence, plus on reconnaît qu'elle n'exigeait d'autre rectification radicale que de substituer l'étude des lois à la recherche des causes. Son vice fondamental, d'ailleurs inévitable et même indispensable, ne consistait point dans son caractère subjectif, mais dans sa nature absolue. La longue coexistence de ces deux attributs n'a point empêché la subjectivité de manifester ses hautes propriétés, intellectuelles et surtout morales. Toute synthèse doit être subjective, puisque l'objectivité reste toujours analytique. Mais la prépondérance de la subjectivité est encore plus indispensable à la subordination fondamentale de l'esprit envers le cœur. Cette double nécessité, qui jusqu'ici prévalut sans être aperçue, a été confusément sentie par les principaux métaphysiciens modernes, depuis l'avortement décisif des nombreuses tentatives de systématisation objective. Ainsi poussés vers l'unité subjective, ils ne l'ont manquée que pour l'avoir restreinte à l'homme individuel, au lieu de la fonder sur l'humanité.
La subjectivité initiale n'avait donc besoin que de devenir relative; mais cette transformation radicale a exigé tout le préambule objective accompli graduellement depuis Thalès jusqu'à Bichat. Car il fallait pour cela faire universellement prévaloir l'étude des lois naturelles, qui ne pouvait commencer qu'envers les moindres phénomènes, d'où elle s'est ensuite étendue lentement aux plus éminents. L'achèvement de cette immense préparation conduit maintenant à fonder la vraie subjectivité, en substituant la sociologie à la théologie. Ainsi rendue relative, la prépondérance du véritable point de vue humain devient beaucoup plus directe, et même plus complète que lorsqu'elle présidait implicitement au régime absolu. Cette transformation définitive est encore plus salutaire au cœur qu'à l'esprit, d'après l'harmonie durable qu'elle institue entre eux. L'objectivité, qui ne put rien systématiser, prend enfin son office caractéristique, de fournir partout les matériaux des constructions réservées à la subjectivité” (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 581-582).

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Tradução para o português:

"Mais se medita sobre a marcha primitiva de nossa inteligência, mais se reconhece que ela não exigiria outra retificação radical senão a de substituir pelo estudo das leis a pesquisa das causas. Seu vício fundamental, aliás inevitável e mesmo indispensável, não consistiu de maneira nenhuma em seu caráter subjetivo, mas em sua natureza absoluta. A longa coexistência desses dois atributos não impediu de modo nenhum a subjetividade de manifestar suas altas propriedades, intelectuais e sobretudo morais. Toda síntese deve ser subjetiva, pois a objetividade permanece sempre analítica. Mas a preponderância da subjetividade é ainda mais indispensável à subordinação fundamental do espírito ao coração. Essa dupla necessidade, que até aqui prevaleceu sem ser percebida, foi confusamente sentida pelos principais metafísicos modernos, depois do abortamento decisivo de numerosas tentativas de sistematização objetiva. Assim impelidos em direção à unidade subjetiva, eles não falharam senão em restringi-la ao homem individual, em vez de fundá-la sobre a Humanidade.

A subjetividade inicial, então, não tinha necessidade senão de tornar-se relativa; mas essa transformação radical exigiu todo o preâmbulo objetivo realizado gradualmente após Tales [de Mileto] até [Xavier] Bichat. Afinal, era necessário para isso fazer prevalecer universalmente o estudo das leis naturais, que não poderia começar senão a respeito dos menores fenômenos, de que ela lentamente se estendeu em seguida aos mais eminentes. A conclusão dessa imensa preparação conduz agora a fundar a verdadeira subjetividade, ao substituir pela Sociologia a teologia. Assim tornada relativa, a preponderância do verdadeiro ponto vista humano torna-se bastante mais direto e mesmo mais completo que quando ele presidia implicitamente o regime absoluto. Essa transformação definitiva é ainda mais salutar ao coração que ao espírito, segundo a harmonia durável que ela institui entre eles. A objetividade, não pode nada sistematizar, assume afinal seu ofício característico, de fornecer por toda parte os materiais das construções reservadas à subjetividade" (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 581-582).