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08 fevereiro 2016

"Cruzada" como encontro civilizacional

Vários anos atrás, por ocasião do lançamento do filme Cruzada (direção de Ridley Scott, 2005), publiquei na revista O Debatedouro um pequeno texto em que elogiava o filme e tecia algumas considerações sobre o "choque de civilizações". 

Desde então - e já se vão mais de dez anos - o problema das relações entre Ocidente e Islamismo continuou e, em alguns aspectos, até aumentou, embora em certo sentido a sua urgência tenha diminuído.

Por esses motivos, creio que pode ser útil reproduzir o meu texto. A versão impressa do artigo pode ser lida aqui.

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“CRUZADA” COMO ENCONTRO CIVILIZACIONAL

Na noite do sábado, dia 7 de maio, assisti ao filme Cruzada e gostei muito dele. Fui vê-lo pelos motivos básicos e evidentes (filme épico e do bom circuito comercial), mas também por ser um filme histórico e ser a respeito de um período de que gosto bastante, a Idade Média das cruzadas.

Ora, tendo visto o filme no sábado dia 7, na quarta-feira anterior li um comentário de página inteira na Folha de S. Paulo, assinado por Sérgio Dávila, em que o autor afirma que o filme é um elogio velado à era George W. Bush[1]. Fiquei interessado no comentário, li-o inteiro e achei uma besteira: considerei que o articulista está tomado por uma obsessão anti-estadunidense, mas resolvi que o melhor, antes de dar um veredito sobre o artigo e, em última instância, sobre o filme, seria assistir à própria obra do diretor Ridley Scott.

Bem, visto o filme, eis minha opinião: ele é ótimo, vale a pena e Sérgio Dávila deveria ler o livro de Jean-François Revel, A obsessão anti-americana (Rio de Janeiro, Univercidade, 2004).

Muito ao contrário do que o articulista da Folha dá a entender, o filme é muito bom, não apresenta nenhum elogio à guerra ao terror (como, aliás, afirmou o próprio diretor[2]) e, se fosse para jogarmos com títulos de livros famosos, diríamos que trata muito mais da crítica ao “choque de fundamentalismos” (Tariq Ali) que da apologia ao “choque de civilizações” (Samuel Huntington).

De fato, o filme deixa muito claro quais são seus valores: a racionalidade, a cortesia, a tolerância religiosa e filosófica, a honradez, a responsabilidade pessoal pelas ações. Dirão alguns, talvez, que a honradez e a responsabilidade pessoal são características norte-americanas e que isso poderia ser uma pista para o “bushismo”; é claro que isso seria um completo disparate. Indo exatamente na contramão dos radicalismos atuais, que têm no obscurantismo religioso sua justificação e sua legitimação, o filme afirma a importância de considerar a racionalidade como guia das ações, medindo cada um de nossos atos ao mesmo tempo de acordo com suas conseqüências políticas e também morais (se se desejar: “éticas”). Parafraseando o grande José Bonifácio, o filme deixa claro que a “sã política é filha da moral e da razão”.

Há, sem dúvida, alguns estereótipos discutíveis, como o de os franceses como os malucos beligerantes do lado dos católicos (embora o mocinho do filme, Balian, interpretado por Orlando Bloom, também seja francês, como se vê logo na primeira cena), mas, mais do que isso, não se vê os muçulmanos como radicais desmiolados querendo dizimar tudo e todos. Certo: há um líder muçulmano com essa característica, mas claramente ele é subordinado; quem de fato manda no lado do islã é Saladino, cujos valores são, como já indiquei, os mesmos que os do mocinho: a honradez, a racionalidade, o respeito mútuo.

O que dissemos acima permite-nos comparar esse filme com dois outros: A paixão de Cristo e Herói. A paixão de Cristo, independentemente de seu conteúdo, veio em um momento em que os valores religiosos, a tão falada “fé”, tem ganho uma importância desmesurada no mundo inteiro. Ora, a fé, em Cruzada, freqüentemente é posta como secundária ou desimportante, ou mesmo como fator de imbecilização; as únicas manifestações aceitáveis de fé, como se percebe no filme, são aquelas mediadas pela razão e pelo senso de comedimento.

Já a comparação com o filme Herói é mais difícil – não porque não haja elementos mais ou menos evidentes para comparar-se ambos, mas porque o filme chinês é excelente e não é tão facilmente criticável quanto A paixão de Cristo. Herói é a lenda nacional da China, é a China afirmando-se como um país de longa tradição, que se define muito antes e muito além da longa decadência por que passou desde o século XVI até chegar ao comunismo. Ora, há um aspecto nesse filme que deve ser indicado: ele trata da tentativa que um espadachim faria para assassinar um rei, que tenta unificar os vários reinos em que se dividia a antiga China mas que, para tanto, adota, como seria difícil não fazer, métodos violentos e não raro tirânicos. O aspecto que quero realçar é o projeto de unificação da China e, ainda mais, os meios adotados: a violência (a conquista) e a tirania: esse rei seria a versão chinesa do “príncipe perfeito” que foi d. João II em Portugal, isto é, o príncipe perfeito a partir dos critérios maquiavelianos e hobbesianos, que define um grande fim – a unificação de vários reinos, isto é, a criação de uma nova pátria, com a conseqüente cessação das lutas e das mortes e o progresso material (e, quiçá, também moral) – e lança mão dos meios necessários para tanto. Em Cruzada vemos, sem dúvida, o tema da conquista, mas ele é muito mais uma desculpa para tratar do relacionamento entre dois povos – ou melhor, duas civilizações – e da “sã política” de José Bonifácio que qualquer outra coisa. Especificamente, a conquista, quem faz, são os muçulmanos, que procuram reconquistar a cidade de Jerusalém e obrigam os ocidentais a manterem uma posição defensiva[3]. Como se vê ao longo de toda a fita, a cordialidade mútua e o respeito ao próprio código cavalheiresco pautam a disputa, reconhecidas as legitimidades de ambos os pleitos (a pretensão de conquista dos muçulmanos – causada, aliás, por uma provocação ocidental – e a defesa da cidade). Assim, sem desmerecer o filme chinês, como ocidentais aprendemos muito assistindo ao Herói, mas, como ocidentais e como seres humanos que vivem em uma época estranha, aprendemos (ou reaprendemos) bem mais vendo Cruzada.

Cruzada indica com clareza que, se há “choque de civilizações” nos dias correntes, ele deve-se muito ao radicalismo de alguns, mas que os meios para evitar-se esse radicalismo e resolver os conflitos são algo presente na civilização ocidental e também na islâmica. Esse “algo” não é a crença religiosa (cristão ou islâmica, tanto faz), mas a percepção de que todos somos seres humanos, de que todos queremos viver e de que todos podemos viver em paz e harmonia se soubermos assim proceder – além, é claro, de manterem-se os radicais claramente subordinados na condução da política, tanto de um lado quanto de outro.

Assim, no final das contas, Cruzada não tem nada de “apologia velada à era Bush”, mas um elogio claro, às escâncaras, a um relacionamento pacífico e racional entre duas civilizações que compartilham muitos mais valores do que se poderia pensar à primeira vista.
Em outras palavras, é uma aula de civilidade: vale a pena.




[1] DÁVILA, S. 2005. “Cruzada” faz apologia velada da era Bush. Folha de S. Paulo, 4.maio. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0405200506.htm. Acesso em: 7.maio.2005.

[2] SCOTT, R. 2005. “O filme não é sobre a guerra ao terror!”. Folha de S. Paulo, 4.maio. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0405200507.htm. Acesso em: 7.maio.2005.

[3] Lembremos a filosofia da história do grande Augusto Comte: a Idade Média caracterizou-se, como a Antigüidade, pelas guerras, mas, ao contrário de gregos e romanos, foram, exatamente, guerras defensivas. Aliás, o mocinho Balian, enquanto não está preocupado com os conflitos militares, dedica-se seriamente a esforços industriais bem-sucedidos, em que o respeito aos pequenos e aos subordinados é um dos traços mais característicos. Em outras palavras, o filme é um exemplo de conduta: como seria um elogio, mesmo que velado, à doutrina Bush?

27 novembro 2015

Reginaldo Prandi: "Terrorismo contra o Estado laico"

Artigo de opinião publicado em 27.11.2015, na Folha de S. Paulo; a versão eletrônica original pode ser lida aqui.

Um aspecto central da argumentação de R. Prandi e R. W. Santos é a seguinte: não foi a civilização "cristã" que foi alvejada no dia 13.11, mas a instituição da laicidade. Além disso, noto que esse aspecto é determinante, tanto para o Ocidente quanto para os terroristas: há séculos o Ocidente não se caracteriza mais pelo "cristianismo", mas pela laicidade crescente e pela tolerância. A laicidade do Estado, aliás e não por acaso, é repudiada pelo Islã.

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REGINALDO PRANDI E RENAN WILLIAM DOS SANTOS

Terrorismo contra o Estado laico

Ouvir o texto

Além do abominável dano real das vidas perdidas, os ataques terroristas têm um efeito essencialmente simbólico. Seu verdadeiro alvo é a autoimagem da sociedade golpeada. Em um ato que se expande para além dos corpos mortos e feridos, o objetivo fundamental é atingir, pelo terror, a alma da própria civilização do país agredido.

Foi assim com as torres gêmeas, derrubadas no 11 de Setembro de 2001. Suas ruínas simbolizaram o fim do sentimento norte-americano de invulnerabilidade.

Já a França, o país com maior população muçulmana da Europa ocidental, atacada de novo, agora pelo Estado Islâmico, representa historicamente o que esses fanáticos mais querem ver destruídas: as barreiras que separam o Estado da religião. Para esse terrorismo, que ataca em qualquer lugar, porque por toda parte pode enxergar a negação de seus valores, a França é o ícone máximo da civilização edificada com aquela separação. O ataque a Paris é, acima de tudo, um ataque ao Estado laico.

Esqueça a liberdade de pensamento, a liberdade de ter qualquer crença, ou nenhuma. Esqueça a igualdade de direitos e deveres entre cidadãos, independentemente da filiação religiosa. Esqueça a autonomia do Estado frente à religião.

O que esses terroristas querem é um mundo "livre" de tudo isso, no qual é justo matar quem tenha crenças diferentes das deles. No qual seja legítimo excluir quem não professe a religião "certa". No qual o Estado seja o braço armado a serviço da perseguição de fins religiosos, ou inspirados por uma leitura particular da religião.

Nas democracias do mundo secularizado, intoleráveis para aqueles religiosos intolerantes, o que evidentemente não inclui todos os religiosos, as religiões podem ter participação ativa na esfera política, desde que aceitem as regras do jogo: seus representantes devem ser democraticamente eleitos, pelo voto, e não conduzidos ao poder pelo carisma religioso ou cargo eclesiástico.

Mesmo aderindo às regras da representação democrática, contudo, os fundamentalistas, islâmicos ou não, ainda se enfrentariam com um Estado laico, que garante a livre escolha religiosa, mas submete as "leis de Deus", estabelecidas pela resolução teológica baseada em verdades imutáveis e mandamentos escritos em um texto sagrado, ao crivo das "leis dos homens", criadas pela deliberação política e sempre sujeitas a mudanças.

Um Estado que certamente condenaria Abraão por tentativa de infanticídio, por mais que ele acreditasse estar seguindo uma ordem divina ao pretender sacrificar o próprio filho.

No fim das contas, essa variante da religião que se manifesta no terror teria, para se firmar, que pôr a sociedade ocidental, e outras, de cabeça para baixo. Como fez o cristianismo, com ações não menos agressivas, com sociedades indígenas e do velho paganismo.

De todo modo, a matança em Paris pode ter feito crescer, aos olhos do mundo ocidental, a aversão a essa mistura promíscua entre religião e poder político. Ao invés de destruir, a ação terrorista pode ter acrescentado algumas fileiras de tijolos nos muros que separam o Estado da religião nas democracias do mundo contemporâneo. E tijolos mais firmes do que nunca, porque assentados com argamassa do sangue de inocentes.


REGINALDO PRANDI, 69, é professor sênior do Departamento de Sociologia da USP e autor, entre outros livros, de "Os Mortos e os Vivos" (ed. Três Estrelas).
RENAN WILLIAM DOS SANTOS, 23, é mestrando em sociologia na USP e bolsista da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).

24 junho 2015

Declaração da União Humanista sobre o massacre contra Charlie Hebdo

Reproduzo abaixo a declaração da União Humanista Ética Internacional (IHEU, na sigla em inglês) a propósito do massacre realizado por fanáticos muçulmanos em 7.1.2015, contra o semanário francês Charlie Hebdo. O original pode ser lido aqui.

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Twelve people including two police officers, three cartoonists, and seven journalists have been killed today, with at least 5 other victims in critical condition. The gunmen, who were filmed shouting “Allahu Akbar” and “We have avenged the prophet” as they stormed the offices of the satirical magazine Charlie Hebdo, can be assumed to be Islamist terrorists responding to satirical images published in the magazine.
Stéphane "Charb" Charbonnier, publisher of Charlie Hebdo, has been named among those killed today
Stéphane “Charb” Charbonnier, publisher of Charlie Hebdo, has been named among those killed today
“The International Humanist and Ethical Union (IHEU) is appalled and deeply saddened by the attack on the offices of the magazine Charlie Hebdo in Paris, France, today.
This is an horrific and profoundly illiberal attack. It is an act of Islamo-fascist terrorism, aimed at silencing freedom of expression about religious beliefs, and about Islam in particular.
No person who genuinely recognises the humanity of their fellow citizens, or who is remotely interested in the good of society at large or for any section of society, could ever justify this terrorism. Reading words and seeing images that satirise your beliefs is as far removed from a warrant to murder as it is possible to get.
Europe has a tradition of humanism, in which both freedom of expression, and freedom of thought and belief, including freedom of religion, are respected and upheld in law. To criticise beliefs, including through satire and ridicule, does not contravene others’ freedom of belief. Rather, criticism is essential to freedom of expression. Murder on the other hand is the ultimate nullification of all a person’s freedoms and being.
It is our true hope that Europe will neither bow to this violence, nor rise to it. We will not be provoked into an equal savagery. We will resist all terror, and we will defend freedom of thought and expression: essential values for free and meaningful lives.”
— Sonja Eggerickx, president of the International Humanist and Ethical Union (IHEU)



Logomarca da União Humanista Ética Internacional em homenagem aos mortos no massacre contra o semanário Charlie Hebdo, em 7.1.2015

10 outubro 2010

Gazeta do Povo: "Véu, liberdade e República"

O texto abaixo foi publicado no jornal Gazeta do Povo, de Curitiba, no dia 7 de outubro de 2010; o original está disponível aqui.


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Véu, liberdade e República

A questão “quais as liberdades mais básicas?” tem várias respostas, duas das quais seriam: (1) isso não faz sentido, pois (2) não há liberdades “mais básicas”. Discordamos dessas respostas: há, sim, liberdades mais básicas, que constituem os fundamentos de todas as outras. Quais seriam elas? Liberdades de pensamento, de expressão, de associação e de ir e vir. Não que outras liberdades não sejam importantes, mas essas quatro, que garantem aos indivíduos e aos grupos as condições mínimas para terem e exercerem a autonomia decisória, permitem que todas as demais sejam discutidas e estabelecidas, além de terem valor em si mesmas como valores políticos e sociais.

Pois bem: há algumas semanas aprovou-se na França uma lei que veda aos muçulmanos, em especial às muçulmanas, o uso de véus, burcas e adereços que cubram parcial ou totalmente seus rostos e que sejam a manifestação de suas crenças religiosas. O ar gu mento oficial apresentado é que tais adereços consistem em instrumentos, implícitos ou explícitos, da dominação social e masculina sobre as mulheres, subjugando-as e relegando-as a uma posição social não inferior, mas secundária; em outras palavras, tais adereços seriam instrumentos e símbolos da degradação das muçulmanas como cidadãs e como seres humanos.

Essa justificativa merece, sem dúvida, a mais profunda reflexão, pois enfatiza aspectos centrais para o projeto republicano perfilhado pelo Ocidente des de há pelo menos 200 anos, começando pela própria França: respeito universal aos seres humanos, capacidade de manifestação individual e coletiva, integração à vida coletiva de todos como cidadãos.

Todavia, essa mesma justificativa resulta na negação da autonomia individual para escolher as crenças; em nome do respeito ao pluralismo religioso, ataca-se os fundamentos desse pluralismo. É uma situação contraditória, cuja solução passa necessariamente pelo reafirmar do respeito ao pluralismo, ou melhor, do insistir em que as liberdades de pensamento e de expressão de fato são fundamentais e como tais devem ser tratadas.

No caso específico das muçulmanas francesas, é evidente que seu status social e político não pode ser o mesmo que o de muçulmanas de outros países: o uso dos adereços deve corresponder à manifestação externa de valores e escolhas íntimas, isto é, pessoais; dessa forma, elas são antes cidadãs (francesas) e depois, ou como que “por acaso”, muçulmanas e não o contrário (ou seja, antes muçulmanas e depois, “por acaso”, francesas). Dessa forma, respeitam-se os valores pessoais das muçulmanas (e, de modo geral, dos muçulmanos) tanto quanto respeitam-se os valores pessoais e as manifestações exteriores das crenças de judeus, cristãos, ateus, agnósticos, budistas etc. – além de reafirmar-se o republicanismo francês, que de maneira correta estipula o universalismo jurídico no lugar do comunitarismo.

Voltemos à justificativa oficial: o repúdio à expressão pública do que seria a submissão e a degradação das mulheres muçulmanas dirige-se, como se percebe com facilidade, a apenas um único grupo. Assim, embora o argumento em si seja moral e politicamente digno de consideração, ele é particularista e dirigido contra uma fé específica. Dessa forma, ele consiste mais em uma renovada expressão de islamofobia que na defesa do republicanismo. O argumento tem um inequívoco caráter ad hoc, elaborado de maneira casuística, para dar um lustro intelectual a uma forma de intolerância.

Para concluir: o que isso tem a ver com o Brasil? Ora, tudo. Não apenas porque os laços políticos, sociais e econômicos entre Brasil, de um lado, e França e países islâmicos, de outro lado, têm crescido, como porque os valores políticos e sociais brasileiros são muito próximos dos da França – de modo que o problema criado e enfrentado pela França refere-se também a dilemas brasileiros.