Mostrando postagens com marcador Thomas Kuhn. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Thomas Kuhn. Mostrar todas as postagens

17 setembro 2012

Kuhn derruba as barreiras entre ciências e humanidades - mas Augusto Comte não?

Kuhn derruba as barreiras entre ciências e humanidades. Augusto Comte não?


Na edição 296 da revista Ciência Hoje foi publicada a matéria “A queda do muro entre ciências e humanidades”, referindo-se ao cinqüentenário da publicação original do livro A estrutura das revoluções científicas, de Thomas Kuhn, em que se apresenta uma interpretação sociológica e histórica das ciências[1]. Segundo os autores, uma das maiores contribuições desse livro teria sido mostrar que as ciências naturais são tão sociais e históricas quanto as ciências humanas e, portanto, seriam possíveis análises (teórica, metodológica e epistemológica) das ciências naturais de maneira integrada às ciências humanas.

Comemorar os 50 anos de publicação do livro de Thomas Kuhn é interessante; mas afirmar que ele é importante porque teria “rompido as barreiras entre as Ciências Humanas e Naturais” é um exagero despropositado – e, pior, ignorante e preconceituoso. (Deixando de lado, é claro, os inúmeros problemas e inconsistências teóricos da obra de Kuhn. Mas isso não vem ao caso.)

A integração entre Ciências Humanas e Naturais ocorreu precisamente ao mesmo tempo em que a Sociologia e a História das Ciências surgiram – ou seja, quando Augusto Comte, pai do Positivismo, criava a Sociologia de uma perspectiva histórica e concentrava grande atenção no desenvolvimento histórico das ciências, vistas como produto social.

A obra mais conhecida de Comte – e, no Brasil, mais ou menos a única que se conhece, embora reduzida aos dois primeiros capítulos[2] –, o Sistema de filosofia positiva (1830-1842) tratou de realizar uma avaliação geral dos principais resultados teóricos e metodológicos das várias ciências, a fim de elaborar as bases teóricas e metodológicas da Sociologia.

Já no Sistema de política positiva (1851-1854), especialmente em seus volumes I e III (respectivamente, de 1851 e 1853), Comte dedicou-se a insistir no caráter social e histórico das ciências (naturais e humanas), investigando como os ambientes sociais facilitaram (ou dificultaram) suas constituições. Aliás, muito mais do que isso, Comte nessa obra adotou uma perspectiva radicalmente relativa, humana e  histórica – em termos atuais: transdisciplinar – a fim de examinar como cada ciência contribui para o ser humano e para a sociedade. Essa perspectiva é o que ele chamava de “método subjetivo”.

Na verdade, o método subjetivo ia ainda mais fundo, afirmando que é necessário à ciência (e à política) reconhecer o valor lógico e teórico das artes (geralmente chamadas também de “humanidades”). Nesse sentido, por exemplo, Comte afirmava que se deve ampliar o conceito de “lógica”, deixando de restringi-lo à lógica matemática (a lógica dedutiva, chamada por ele de “lógica dos sinais”), para incorporar também a lógica das emoções e a lógica das imagens. “Lógica”, nesse sentido, significa formas gerais de o ser humano entender (i. e., observar, compreender e falar a respeito de) a realidade.

Entretanto, a filosofia criada por A. Comte chama-se “Positivismo”, cuja fortuna crítica posterior modificou radicalmente o sentido originalmente concedido pelo pensador francês. Além disso, o valor dessa palavra alterou-se bastante ao longo do tempo, passando de favorável a negativo. Os preconceitos contrários ao “Positivismo”, que abrangem a obra de Comte por pura metonímia, são amplamente compartilhados pelas Ciências Humanas desde há várias décadas, incluindo aí os profissionais da História das Ciências e da Filosofia das Ciências.

Historiadores da ciência que desconhecem a obra de Comte – que precedeu em muito mais de um século a obra de Kuhn – demonstram, portanto, não apenas ignorância da história da ciência, como preconceito: afinal, como é senso comum, “todos” “sabem” que o “Positivismo” é “cientificista”, anistórico e objetivista. Pena que ninguém lê A. Comte e todos repetem: “não li e não gostei”.





[1] “A queda do muro entre ciências e humanidades”, publicada em Ciência Hoje (São Paulo, v. 50, n. 296, p. 74-75, set.). Disponível em: http://cienciahoje.uol.com.br/revista-ch/2012/296/a-queda-do-muro-entre-ciencias-e-humanidades. Acesso em: 7.jan.2013.
[2] Convém notar que apenas 5% da obra de Comte estão traduzidos para o português, o que é altamente sintomático dos problemas indicados acima.