29 abril 2024

Celebração do Dia do Trabalhador

No dia 9 de César de 170 (30.4.2024) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua undécima conferência, dedicada ao regime público.

No sermão fizemos uma pequena celebração do Dia do Trabalhador.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://l1nk.dev/Xie1E) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://encr.pw/clHMm). O sermão começou aos 54 min 30 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.

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Celebração do Dia do Trabalhador 

-        O tema desta semana refere-se ao trabalho, considerando o Dia do Trabalhador, celebrado em 1º de maio, ou melhor, neste ano (que é bissexto) em 10 de César (dia de Demóstenes, na semana de Alexandre)

o   Na verdade, seguindo o calendário positivista, que é regular e mais racional, o Dia do Trabalhador seria celebrado em 9 de César (dia de Felipe II, na semana de Alexandre)

o   No Brasil, o Dia do Trabalhador foi instituído em 26 de setembro de 1924, pelo Decreto n. 4859, do Presidente Artur Bernardes

§  O texto do decreto é realmente belo: “Artigo único – É considerado feriado nacional o dia 1 de maio, consagrado à confraternidade universal das classes operárias e à comemoração dos mártires do trabalho; revogadas as disposições em contrário”[1]

o   A data de 1º de maio foi proposta pela II Internacional Socialista em 1886, em homenagem à Revolta (ou Massacre) da Praça de Heymarket, em Chicago, em que uma manifestação sindical inicialmente pacífica transformou-se em pancadaria e repressão armada da polícia, após uma bomba explodir em meio aos policiais, já no final do encontro trabalhista

-        O trabalho e os trabalhadores, para o Positivismo, são da maior importância

o   Ao contrário do que muitos afirmam – não somente críticos (como os marxistas), mas também pessoas supostamente próximas ao Positivismo –, os valores, as concepções e as prescrições positivistas em relação ao trabalho e aos trabalhadores não são formas de enganar os trabalhadores e/ou de tapar os buracos sociais, políticos, econômicos e morais causados pelo chamado “capitalismo”

§  Devemos, mais uma vez, lembrar as duríssimas e inequívocas críticas de Augusto Comte à mesquinhez e ao egoísmo da burguesia, feitas desde o início de sua carreira

·         A importância dessas críticas aumenta quando lembramos que muitas delas foram expostas no Apelo aos conservadores (1855)

o   O Apelo foi escrito como uma exposição do Positivismo dirigida aos líderes políticos, sociais e industriais – ou seja, à “burguesia”

§  Aliás, com o necessário fracasso do marxismo e do chamado “socialismo realmente existente”, os herdeiros do marxismo agora se vêem obrigados a recuperar e a valorizar a ação dos positivistas, como no caso de Francisco Quartim de Morais[2]

§  Uma importante exceção – não por acaso brasileira – é a de Leônidas de Resende, que, em 1932, propôs um interessante, mas confuso, marxismo positivista, em seu livro A formação do capital e seu desenvolvimento[3]

o   Os elogios ao trabalho e aos trabalhadores sempre foram reiterados e consistentes da parte de Augusto Comte; não por caso, ele sempre viu nos proletários um dos sustentáculos do Positivismo e, ao mesmo tempo, sempre considerou que o Positivismo deve servir para melhorar as condições de vida dos proletários

o   Augusto Comte desde o início de sua carreira ministrou cursos populares: Astronomia, Filosofia Positiva (isto é, filosofia, ciências, história), História da Humanidade

§  Os primeiros discípulos de Augusto Comte, não por acaso, foram proletários, convencidos da doutrina a partir da audiência do curso popular de Astronomia, como foi belamente narrado por Fabien Magnin, no 21º aniversário de transformação de Augusto Comte[4]

o   Em 1848 Augusto Comte criou a Sociedade Positivista e propôs a “Associação Livre para a Instrução Positiva do Povo em todo o Ocidente Europeu”

§  Nas décadas seguintes outras associações positivistas proletárias também foram criadas, como a Sociedade Positivista para o Ensino Popular (1876) e a Sociedade Positivista para o Ensino Popular Superior (1876)

o   Também em 1848 Augusto Comte escreveu o Discurso sobre o conjuntodo Positivismo, dirigido para os proletários e com um extenso capítulo sobre os proletários

o   Vários positivistas foram sindicalistas e/ou apoiaram os sindicalistas: Frederic Harrison, Auguste Keufer, os irmãos Lagarrigues, Miguel Lemos e Teixeira Mendes

o   Rodolfo Paula Lopes, filho de também Rodolfo Paula Lopes, trabalhou na Organização Internacional do Trabalho, elaborando relatórios sociológicos e econômicos sobre o desemprego e, depois, também organizou um livro chamado O proletariado na sociedade moderna (1946), da coleção “Arquivos Positivistas” (em francês)

-        Em termos filosóficos e sociológicos, eis o que o Positivismo tem a dizer a respeito dos trabalhadores e do trabalho:

o   Os trabalhadores, ou melhor, os proletários constituem a providência geral da sociedade, no sentido de que eles são os responsáveis pelo conjunto das atividades práticas que mantêm a sociedade

§  Do ponto de vista político e moral, os proletários devem atuar como apoio do sacerdócio, fornecendo energia e força ao caráter moral do poder Espiritual

§  Os proletários também devem fiscalizar o poder Temporal, inspirados e orientados pelo sacerdócio; essa fiscalização é-lhes tão mais fácil quanto eles são os principais destinatários das ações dos patrícios

o   Os proletários, com suas famílias, correspondem na prática ao conjunto da sociedade e, dessa forma, a política positiva deve basicamente se dirigir a eles

§  Isso significa que o conjunto dos esforços sociais deve visar a satisfazer as necessidades dos proletários, em termos materiais, intelectuais e morais

·         É necessário insistir: as necessidades dos proletários não são principal nem exclusivamente materiais, mas são também intelectuais e morais

o   Embora sejam auxiliares do poder Espiritual, os proletários atuam em termos práticos no poder Temporal, correspondendo à força dispersa (cujo poder provém da sua união), em contraposição complementar com o patriciado, que corresponde à força concentrada (na forma do capital) e que é propriamente o poder Temporal

-        Temos que ter clareza de que a valorização do trabalho, e, por extensão, dos trabalhadores, é fruto de um longo desenvolvimento histórico

o   Esse desenvolvimento segue a lei dos três estados práticos, segundo a qual a atividade é inicialmente militar conquistadora, depois militar defensiva, enfim pacífica e industrial

§  Nessa evolução, as atividades produtivas são sempre realizadas pelos proletários, mas, como sabemos, nem sempre eles são valorizados

§  O que mudou ao longo do tempo, então, foi a estrutura social geral, a principal atividade da sociedade e, daí, a situação específica dos trabalhadores

o   Na Antigüidade, as atividades socialmente valorizadas eram a guerra e/ou o ócio com vistas à produção intelectual; elas eram reservadas à elite da sociedade; o trabalho era considerado degradante e, portanto, relegado aos escravos

§  Enquanto os escravos – tornados cativos devido às guerras, às dívidas e/ou a um assujeitamento “tradicional” (como no caso do mito da escravidão hebréia no Egito) – eram propriedade móvel dos seus senhores, a consolidação do sistema de conquistas (correspondente à fase imperial de Roma) conduziu à fixação dos trabalhadores nos territórios

§  Os antigos escravos tornaram-se assim servos da gleba

o   Na Idade Média, a atividade era ainda era militar, mas tinha cada vez mais um caráter defensivo; a cavalaria moderava a violência e estimulava o respeito para com os humildes; o trabalho não era mais degradante, mas continuava sendo relegado ao setor social mais baixo

§  Os servos da gleba, de qualquer maneira, embora não fossem livres e estivessem ligados aos territórios de seus senhores, tinham condições sociais superiores às dos escravos

§  Desde meados da Idade Média, os burgos mais prósperos caracterizavam-se pela atividade pacífica e produtiva e pelo trabalho livre; esses burgos, concomitantemente, passaram a buscar a libertação em relação aos grande senhores, transformando-se em cidades livres, cidades reais (isto é, sob a proteção dos reis) ou em repúblicas (como Florença, Gênova, Genebra, até mesmo Veneza)

·         O trabalho nos burgos, ou nas comunas, não se constituiu diretamente como trabalho livre: organizaram-se as guildas, que serviam como mecanismos de proteção, treinamento e reserva e controle de mercado

§  De qualquer maneira, a Idade Média legou à modernidade a valorização do trabalho produtivo e a libertação dos trabalhadores

o   Na modernidade, a atividade socialmente valorizada é a produção pacífica; os trabalhadores são livres

o   O trabalho produtivo e pacífico é a única atividade que pode ser plenamente universalizável, tanto em termos de extensão geográfica quanto em termos sociais; isso significa que só a paz garante o trabalho livre e que, inversamente, o trabalho livre exige a paz

o   Entretanto, um dos maiores sinais da “anarquia moderna” é que a emancipação dos trabalhadores não correspondeu à valorização dos trabalhadores

§  Os trabalhadores ficaram livres, mas a ausência de doutrinas socialmente compartilhadas – e de doutrinas socialmente responsáveis compartilhadas – também implicou que os trabalhadores ficariam sem amparo social (em contraposição, na Idade Média, bem ou mal os senhores feudais e a cavalaria reconheciam alguns deveres para com os servos)

§  A exploração do proletariado, ou o chamado “capitalismo”, portanto, é um dos maiores e piores sintomas da “anarquia moderna”

·         A solução da anarquia moderna não é diretamente “acabar com o capitalismo” (embora o chamado capitalismo tenha que acabar); a solução da anarquia moderna acabará também, e naturalmente, com o capitalismo

§  Um aspecto agravante da anarquia moderna, especialmente em comparação com a atividade militar, é que as qualidades necessárias para conduzir os empreendimentos industriais não são nem tão evidentes, nem tão precisas, nem tão simples quanto qualidades as militares; isso dificulta a determinação dos respectivos deveres

-        É necessário dizermo-lo com todas as letras: restabelecer valores e concepções compartilhados; reafirmar os deveres; afirmar o altruísmo; combater o egoísmo como padrão de moralidade e de relacionamento humano: essa é a única solução efetiva para a anarquia moderna e, daí, para o “capitalismo”

o   O Positivismo, portanto, não propõe os deveres sociais compartilhados como um tapa-buraco superficial para os agressivos males do capitalismo; os deveres sociais compartilhados não são uma desculpa para uma filantropia hipócrita, “alienadora” e “acrítica”

o   Os deveres sociais exigem uma alteração profunda na sensibilidade, nas idéias e, daí, nas práticas sociais

§  Isso equivale a dizer que as propostas sociais e políticas do Positivismo não podem ser apresentadas isoladamente da Religião da Humanidade, pois isoladamente elas não fazem sentido

o   Em termos de doutrinas sociais, convém considerarmos rapidamente o catolicismo

§  O catolicismo é extremamente ambíguo a respeito:

·         Sua doutrina é radicalmente egoísta, anti-humana e antissocial; a sua decadência necessária é o que alimentou diretamente a anarquia moderna e com freqüência conduz ao reforço do “capitalismo”, com ou sem a filantropia superficial e hipócrita

o   Esses traços também com freqüência são seguidos, no que têm de pior, pelos protestantes

·         Mas atualmente há algumas correntes católicas que mais ou menos deixam de lado a doutrina e seguem inspirações medievais, no que estas têm de melhor

o   É importante insistirmos neste aspecto: o caráter basicamente moral das soluções positivistas não o transforma em “moralista”

§  A esse respeito, antes de mais nada é necessário termos clareza de dois aspectos:

·         (1) Embora afirmemos com todas as letras a importância dos aspectos morais e intelectuais, nunca os positivistas deixaram de afirmar também a necessidade de propostas concretas, práticas, de curto e longo alcance, para remediar e/ou solucionar os problemas dos trabalhadores

o   Sendo mais específico: não somente não deixamos de afirmar essa necessidade como, mais importante, nunca deixamos de propor efetivamente medidas concretas

·         (2) Quem afirma que o Positivismo é “moralista” adota uma perspectiva materialista, que nega a importância da moralidade na vida humana e que reduz o ser humano e a sociedade às questões e às disputas econômicas e políticas

o   Assim, a defesa do materialismo implica a ignorância e a alienação profundas

§  O que o Positivismo faz é evidenciar que os grandes problemas econômicos atuais só admitem, no fundo, soluções morais, na medida em que esses problemas originam-se de problemas, desvios e aberrações morais

·         É evidente que as questões trabalhistas exigem soluções “econômicas”; mas o tipo de soluções varia de acordo com parâmetros morais; além disso, a própria exigência de tais soluções é de caráter moral

·         Nesta exposição não apresentaremos as propostas concretas feitas pelos positivistas (a começar por Augusto Comte!) porque são muitas e muitas propostas, feitas nos mais diferentes contextos

§  Quem nega o caráter moral dos problemas econômicos de modo geral é cego para a realidade e estimula a piora desses problemas

§  A “Economia Política” clássica reconhecia o caráter moral dos problemas econômicos: Adam Smith, David Hume, Charles Dunoyer

§  De maneira exemplar, o marxismo, sendo materialista, despreza a perspectiva moral, reduzindo a sociedade ao poder e à economia, donde ele percebe apenas conflitos

·         Contra a inspiração marxista, outras tradições socialistas anteriores, concomitantes e posteriores ao marxismo adotaram concepções morais: exemplo notável disso são as propostas atuais da chamada “economia solidária” (embora ela confusamente mantenha ideais e perspectivas marxistas)

-        Agora é necessário comentar diretamente a luta de classes:

o   A vida prática estimula por si só o egoísmo e as vistas parciais; isso significa que o poder Temporal, os patrícios e os proletários tendem a prestar atenção aos seus próprios interesses, desconsiderando (ou desprezando) a sociedade em geral e os outros grupos

§  Entretanto, o poder Temporal propriamente dito (o Estado) tem que ter vistas gerais (no espaço); de modo similar, os proletários, na medida em que não têm responsabilidades na mesma medida que os patrícios e em que sua força provém da sua união, tendem a desenvolver vistas gerais e sentimento generosos

§  O egoísmo social tende a concentrar-se no patriciado – que, assim, converte-se em (ou mantém-se como) “burguesia”

o   Os egoísmos de classe, ou mesmo os egoísmos de empresas, tendem a desenvolver-se com grande facilidade – e, daí, surgem os conflitos sociais

o   A luta de classes, portanto, não é uma característica inerente a toda e qualquer sociedade; ela consiste no sintoma da desregulação social, o que significa que no Ocidente ela é um sintoma da anarquia moderna

§  Novamente: pode-se considerar que a luta de classes é inerente à sociedade capitalista apenas no caso específico em que se considere que o capitalismo corresponde, precisamente, à sociedade desregulada, à anarquia moderna

o   Apesar de rejeitar em geral qualquer conflito, ou melhor, qualquer violência, Augusto Comte percebia na luta de classes um potencial positivo, ao indicar precisamente a desregulação social e a concomitante necessidade de regulação social (moral e intelectual)

§  Evidentemente, a luta de classes só é aceitável na medida em que se realizar pacificamente, ou seja, por meio das greves pacíficas, rejeitando-se expressamente tanto a revolução social (projeto acalentado pelos marxistas e por quase todos os socialistas) quanto a repressão ao sindicalismo

§  Deve-se notar, então, que a luta de classes não é um ideal moral, social e político, a ser acalentado, estimulado e buscado

§  Além disso, o fim da luta de classes não é o fim das classes, mas o fim da luta – e o fim da luta, quase sempre, por meio do reconhecimento da justiça das reivindicações dos proletários

o   É notável que o que a direita vê como “revolucionário” e a esquerda vê como “progressista”, para o Positivismo trata-se apenas de satisfação das condições da ordem social: o respeito aos trabalhadores, a garantia de manutenção das famílias, o auxílio na fiscalização do poder Temporal pelo poder Espiritual

-        Está subentendido no que comentamos até agora, mas vale a pena dizermos com clareza: a valorização dos proletários, dos trabalhadores, implica também a valorização do trabalho

o   No âmbito do Positivismo, isso equivale à dignificação do trabalho: trabalhar não é um castigo divino, mas fonte de valor para o ser humano: de fato, trabalhar enobrece os homens

o   Todos devem trabalhar, todos devem contribuir para a Humanidade; todos devem retribuir para a Humanidade aquilo que continuamente recebem dela: trabalhar é um dever moral

§  O trabalho livre, então, não é tornar-se livre do trabalho

§  Os mendigos devem ser objeto de respeito e de cuidados, mas é necessário entendê-los como casos extremos e excepcionais

o   Em sentido semelhante, a valorização e a dignificação do trabalho implicam não entender o trabalho como uma mercadoria

§  Não há dúvida de que o trabalho é a garantia de manutenção e continuidade da sociedade; também é a condição de aumento da riqueza

§  Mas é necessário ter clareza a respeito de um aspecto central e fundamental: o trabalho é a fonte de sustento das famílias

§  Novamente: o trabalho não é mercadoria, pois sua falta implica impossibilidade de sustento de famílias

§  A responsabilidade dos patrícios, então, é com a preservação e o aumento da riqueza social; mas isso só se dá por meio da geração de trabalho – e de trabalho de qualidade, em condições salubres, com salários adequados

§  Para o Positivismo, rigorosamente o salário não é a paga pelo trabalho executado, mas a contrapartida material pelos recursos empregados nas atividades constantes

·         Se o trabalho não é mercadoria, ele não pode ser “pago”; a retribuição pelo trabalho é a satisfação individual pelo bem prestado à coletividade e pela retribuição pela generosidade da Humanidade

o   Uma decorrência disso é que Augusto Comte adota a teoria do valor-trabalho, ou seja, a riqueza é gerada pelo trabalho realizado, pelo empenho coletivo em cada atividade

§  Essa é a concepção “econômica” decorrente da idéia de que a riqueza é socialmente produzida e, portanto, tem que ter uma destinação social

§  É bem verdade que há produtos cujo “valor” é dado por sua raridade relativa; mas a única forma de valorizar socialmente o trabalho; ou melhor, a única forma básica de entender sociologicamente a produção do “valor” é por meio do valor-trabalho: concepções que negam o valor-trabalho, como se sabe e não por acaso, postulam concepções egoísticas



[2] QUARTIM DE MORAES, F. As lutas pelos direitos trabalhistas do Positivismo. In: CONGRESSO DE HISTÓRIA ECONÔMICA, 11, São Paulo, 2020. Anais. São Paulo: USP, 2020. Disponível em: https://congressohistoriaeconomica.fflch.usp.br/sites/congressohistoriaeconomica.fflch.usp.br/files/publicacoes/XI-congresso-2020-anais-eletronicos-Francisco-Quartim-de-Moraes.pdf. Acesso em: 18.1.2023.

[3] Leônidas de Resende, A formação do capital e seu desenvolvimento, Brasília, Senado Federal, 2011. A “Apresentação” dessa edição, profundamente enviesada, é do lamentável liberal conservador Antônio Paim. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/574643/000943472_Formacao_capital_desenvolvimento.pdf.

[4] Anexo IV do Discurso sobre o espírito positivo (ed. Martins Fontes, São Paulo, 1990).

27 abril 2024

Moral pública: não mentir e não trair

O trecho abaixo, escrito por Augusto Comte (1798-1857) no início da undécima conferência do Catecismo positivista (1852), é notável.

Nele, o fundador da Sociologia indica de que maneira deve-se entender o preceito republicano de que a política deve submeter-se à moral: por meio da realização da fórmula “Viver às claras” (“vivre au grand jour”, no original em francês). Essa máxima significa basicamente que todos devemos adotar parâmetros em nossas condutas (sejam privadas, sejam públicas) que possam ser “publicamente confessáveis”, isto é, que possam ser justificadas para o grande público (e, bem entendido, aceitas pelo grande público).

Mas, enquanto no âmbito privado o “público” do “viver às claras” de modo geral corresponde à família, aos amigos e, talvez, aos colegas de trabalho, no âmbito cívico o “público” corresponde ao conjunto da sociedade e à opinião pública. Isso, por sua vez, tem duas conseqüências. No que se refere aos líderes – ou seja, tanto no que se refere aos ocupantes de cargos públicos quanto aos líderes que atuam no chamado “setor privado” –, a sua vida privada deve estar sob escrutínio público; o sentido disso não é para fofocas, intrigas etc., mas para que a sociedade saiba se, como e em que grau os líderes são honestos, são corretos etc. Por outro lado, o “viver às claras” no âmbito público implica duas regras específicas: falar a verdade e cumprir as promessas. Ou, por outra, não mentir e não trair (ou não enganar).

Viver às claras, escrutínio público moral (mas não moralista) da vida privada dos líderes, não mentir, não trair: esses princípios resumem a moral pública. Esses princípios são tão simples e tão importantes quanto são desrespeitados (ou são distorcidos). Além disso, a relevância desse trecho dá-se na medida em que Augusto Comte põe-se frontalmente contra uma certa tradição de pensamento político ocidental, iniciada com Nicolau Maquiavel [1] e que continua desde o século XVI até os dias atuais: é a tradição segundo a qual é errado aplicar parâmetros morais à política, ou, dito de outra maneira, a política não deve se submeter à moral. Sob um rótulo de “cientificidade” que, não por acaso, aproxima-se do cinismo, a proposta de que a política deve ser amoral logo se converte, ou logo se revela, em práticas francamente imorais, justificando mentiras, traições e a famosa “política do poder”, que é a aplicação cada vez mais clara da violência na política (nacional ou internacional). Para quem considera correto separar a política da moral, não deve existir nenhum problema em escândalos de corrupção, assassinatos políticos, brutalidade policial, privilégios político-sociais, parcialidade judicial etc. Para o fundador do Positivismo, tudo isso é altamente problemático e vai contra a verdadeira política republicana, na medida em que nega, ou rejeita, a submissão da política à moral.

Alguns esclarecimentos preliminares antes de citar diretamente Augusto Comte. O trecho abaixo é do Catecismo positivista, que é uma exposição do Positivismo dirigida ao povo, isto é, aos proletários e às mulheres. Essa exposição apresenta-se na forma de um diálogo, ou seja, de uma conversa com aspecto didático, em que o coração sugere as questões e a inteligência responde a elas. (Considerando o aspecto de diálogo do livro, cada capítulo é intitulado como “conferência”, a partir do francês “entretien”; mas poderíamos também traduzir por “diálogo” ou “conversa”.) A tradução que usamos é a de Miguel Lemos, fundador da Igreja e Apostolado Positivista do Brasil, em sua quarta edição, de 1934 (páginas 352 a 355) – edição divulgada na coleção “Os pensadores” –; as duas notas indicadas com asteriscos são da autoria de Miguel Lemos.

O “regime” a que se refere Comte é a parte da religião que trata das relações sociais e da vida concreta, assim como, antes, o “culto” é a parte da religião que sistematiza e estimula os sentimentos; o “dogma” é a parte que trata da inteligência.

Por fim, a “anarquia” a que se refere Augusto Comte no final do trecho corresponde à ausência de parâmetros sociais e morais amplamente compartilhados na sociedade. Para Comte, os grandes e graves conflitos sociais da atualidade têm origem, em última análise, nessa anarquia: as disputas entre revolucionários e retrógrados, as lutas de classe, as lutas de sexo, as lutas “raciais”, os conflitos internacionais. Daí a necessidade de parâmetros humanos, claros, compreensíveis, compartilhados; em outras palavras, daí a necessidade da Religião da Humanidade. 

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A MULHER – Agora, meu pai, eu quisera saber se, além da relação geral entre o regime público e o regime privado, este não suscita disposições que possam nos preparar para o outro.

O SACERDOTE – [...]

Quanto às disposições da existência doméstica, esta suscitará sobretudo a melhor aprendizagem desta regra fundamental que cada um se deverá impor livremente, como base pessoal do regime público: Viver às claras. Para esconderem suas torpezas morais, nossos metafísicos fizeram prevalecer a vergonhosa legislação que ainda nos proíbe escrutar a vida privada dos homens públicos. Mas o Positivismo, sistematizando dignamente o instinto universal, invocará sempre a escrupulosa apreciação da existência pessoal e doméstica como a melhor garantia da conduta social. Como ninguém deve aspirar senão à estima daqueles a quem também estima, não somos obrigados a dar a todos, sem distinção, conta habitual de nossas ações quaisquer. Porém, por mais restrito que possa vir a ser, em certos casos, o número de nossos juízes, basta que sempre existam alguns para que a lei de viver às claras nunca perca sua eficácia moral, impelindo-nos constantemente a nada fazer que não seja confessável. Semelhante disposição prescreve logo o respeito contínuo da verdade e o cumprimento escrupuloso de todas as promessas. Este duplo dever geral, dignamente introduzido na Idade Média, resume toda a moral pública e faz-vos sentir a profunda realidade daquela admirável sentença em que Dante, representando o verdadeiro impulso cavalheiresco, designa para os traidores o mais horrível inferno*. No meio mesmo da anarquia moderna, o melhor cantor da cavalaria proclamava dignamente a principal máxima de nossos heróicos antepassados:

La fede unqua non deve esser corratta,

O data a un solo, o data insieme a mille;

.......................

Senza giurare, o segno altro più espresso,

Basta una volta Che s’abbia promesso.**

Estes pressentimentos crescentes dos costumes sociocráticos são irrevogavelmente sistematizados pela religião positiva, que representa a mentira e a traição como diretamente incompatíveis com toda cooperação humana.

 

* Dante, Paraíso, canto último:

Senhora, tão grande és, e tão potente

Que mercês implorar sem teu auxílio

Equivale a querer voar sem asas.

Tua benignidade não sufraga

Somente a orações; mas, com freqüência,

Com generosos dons as antecipa

Em ti misericórdia, em ti piedade,

Em ti munificência se coadunam

E quanto tem mais nobre a criatura

(Tradução de Bonifácio de Abreu.)

 

** Ariosto, Orlando furioso, canto 21, 2ª estância:

A fé nunca deve ser quebrada,

Ou dada a um só ou dada a mil ao mesmo tempo

.......................

Sem jurar, ou sem qualquer outro sinal expresso,

Basta ter prometido uma vez.

 



[1] Vale a pena notar que o próprio Maquiavel (1469-1527) foi bastante ambígüo a respeito. Em O príncipe (1513) ele propôs uma política amoral ou mesmo imoral; a partir dessa obra surgiu a tradição a que nos referimos acima. Mas em Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio (1517), ele adotou uma outra perspectiva, afastando-se do amoralismo/imoralismo de O príncipe, ao defender a busca do bem comum, o republicanismo como um regime político bom etc.

23 abril 2024

Ideal vs. real: como lidar?

No dia 2 de César de 170 (23.4.2024) realizamos a prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua undécima conferência (dedicada ao regime público).

No sermão abordamos a oposição entre o ideal e o real e como agir considerando a distância entre ambos.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://encr.pw/iKkQa) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/snJFS). O sermão começou aos 48 min 30 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.

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O ideal vs. o real: como lidar? 

-        A questão desta semana é ao mesmo tempo bastante simples e extremamente importante: como lidar com a oposição entre o ideal e o real?

o   Esse tema foi sugerido pelo nosso amigo Hernani G. Costa, nos seguintes termos: “O equilíbrio entre o preenchimento do ideal e a frustração de quando não o realizamos. Como agir diante disso? Como conjugar a vida vivida em nome de um ideal, diante de uma realidade que por tantas vezes parece desmenti-lo?”

-        Essa questão apresenta muitos aspectos, vários deles à primeira vista insuspeitos:

o   Em um primeiro lugar, há o aspecto moral (“psicológico”), em relação a como lidar com a distância entre o que se deseja e o que se obtém

o   Mas o aspecto moral implica o conhecimento da realidade (científico)

o   Também há as questões relativas à idealização da realidade, ou seja, são aspectos artísticos

o   Há também a idealização no sentido do que é bom, ou seja, é um outro aspecto moral

o   Tudo isso se reúne nas leis da filosofia primeira, em particular na primeira lei, a chamada “lei-mãe”

-        Comecemos pela oposição entre o real e o ideal, isto é, a oposição entre a realidade vivida e o que gostaríamos que ocorresse

o   Duas ou três observações iniciais:

§  Trata-se verdadeiramente de uma oposição entre o real e o ideal

§  Os comentários abaixo concentrar-se-ão no comportamento individual de cada um de nós

§  Além disso, concentrar-nos-emos nas dificuldades enfrentadas e, ainda mais, nos fracassos que por vezes temos que enfrentar

o   Todos vivemos enfrentando os desafios da vida; esses desafios são “desafios” porque nos impõem dificuldades, que devem ser enfrentadas, ou seja, que têm que ser enfrentadas: todos temos contas para pagar, por isso todos temos que trabalhar; temos contas para pagar porque temos necessidades que têm que ser satisfeitas: alimentação, moradia, saúde, transporte, relacionamentos, previdência, divertimentos

o   Os desafios que indiquei acima são todos eles materiais; mas é claro que viver é muito mais que só se preocupar com questões materiais; como sabemos, sem negar a importância desses aspectos, viver significa acima de tudo ter ideais, planos, projetos; significa viver orientado por valores e concepções do que é bom e belo

§  É importante dizê-lo com todas as letras para termos clareza a respeito: a vida orientada por valores e idéias existe por si só, independentemente das preocupações materiais e, na verdade, com freqüência até em oposição a elas

§  Citamos inicialmente as preocupações materiais apenas porque elas são fáceis de entender e porque elas realmente se impõem a todos

§  Mas é claro que há toda uma série de outras dificuldades na vida: entendimento falho da realidade; necessidade de cooperação com outras pessoas; disposições pessoais; acidentes tecnológicos; desastres naturais etc.

o   O que se apresenta, então, é uma oposição entre o que nós, como seres humanos, desejamos e aquilo que, enfrentando os desafios e as dificuldades, conseguimos realizar: às vezes conseguimos, às vezes fracassamos

o   Como se diz, o sucesso tem muitos pais e mães, mas o fracasso é sempre órfão: ninguém gosta de fracassar, seja porque evidentemente o fracasso conduz a um sentimento muito desagradável, seja porque ninguém gosta de assumir a responsabilidade pelo fracasso

§  O fracasso é desagradável; com freqüência sentimos a sensação de derrota, de incompetência, de incapacidade, até mesmo de merecimento no fracasso

o   Para lidarmos com isso e, de qualquer maneira, para obtermos o sucesso, temos que nos preparar das mais diferentes maneiras:

§  Temos que lembrar que cada pessoa é uma pessoa, cada empreendimento é um empreendimento diferente, cada situação é uma situação específica

§  É necessário conhecer a realidade, (1) para sabermos se nosso projeto é realizável; em seguida, (2.1) para sabermos quais as condições e as possibilidades de sucesso; (2.2) inversamente, quais as condições e as possibilidades de fracasso)

§  Assim, a partir do conhecimento da realidade e, de qualquer maneira, é necessário estarmos preparados, antecipadamente, para maiores dificuldades ou mesmo para um eventual fracasso

·         Essa preparação é tanto material quanto emocional

§  Caso fracassemos, é sempre bom e sempre importante lembrarmos a ótima observação de Winston Churchill: “O sucesso nunca é definitivo e o fracasso nunca é fatal”; em outras palavras, devemos estar sempre preparados para reerguer-nos, ou seja, devemos ter a resiliência

§  Todos podemos, e até devemos, lamentar a derrota durante um certo período de tempo; quanto mais importante essa derrota, maior o tempo despendido; mas o luto não pode durar para sempre e, no final das contas, trata-se de uma questão de amadurecimento: quem é mais maduro passa mais rapidamente pelo luto

·         Na verdade, inversamente, em certo sentido o amadurecimento consiste na capacidade de cada um de lidar com as dificuldades e com os fracassos, não se deixando abalar em demasia com eles, sabendo olhar para os fracassos com serenidade (o que não equivale a olhá-los com satisfação), superando-os com maior facilidade e seguindo em frente

§  Quando acontece o fracasso, ele pode ter ocorrido devido a muitos motivos: falta de preparo intelectual, falta de preparo moral, falta de preparo técnico, falta de cooperação, eventos inesperados

§  É sempre importante avaliar cuidadosamente cada uma dessas possibilidades, para (1) determinar os diversos fatores que conduziram ao fracasso: com isso, (2) é possível determinar as responsabilidades; (3) em uma eventual nova tentativa, esses fatores têm que receber mais atenção; finalmente, (4) conseguir determinar as diversas responsabilidades integra o processo de luto e, daí, o de resiliência e amadurecimento

-        Em suma, do ponto de vista estritamente individual, na oposição entre o ideal e o real, o problema que nos conduz a considerar o “como lidar?” é como lidar com as dificuldades e, em particular, com o fracasso

o   A resposta para isso é tão simples de enunciar quanto difícil de executar: preparar-se o máximo possível com antecedência em termos morais (“psicológicos”), intelectuais e práticos e, no caso do fracasso, saber avaliar os fatores que conduziram ao fracasso

o   O entendimento intelectual ajuda na preparação moral prévia e, depois, no caso de fracasso, auxilia na resiliência

-        Como sugerimos no início, os comentários acima apresentam parte da questão; modestamente fizemos observações que seriam um começo de apoio: mas foi apenas um começo

o   Vejamos agora outros aspectos do tema – aspectos que são fundamentais de serem afirmados em conjunto com as observações acima, a fim de lidar-se de maneira adequada (digna, madura, eficiente) com as dificuldades e os fracassos na vida

o   Esses outros aspectos são: (1) aspectos intelectuais e científicos; (2) questões de moralidade; (3) aspectos artísticos

-        Qualquer projeto exige que conheçamos a realidade:

o   O conhecimento da realidade, seja abstrato, seja concreto, é condição fundamental para qualquer atividade e, bem vistas as coisas, para a vida

o   A realidade, nesse caso, consiste principalmente nas condições objetivas do mundo, ou seja, aquelas que não dependem da vontade humana (e que, com freqüência, opõem-se à vontade humana)

§  Para evitar confusões e mal-entendidos: as condições sociológicas gerais e também as morais integram, no presente caso, as condições objetivas

o   Como vimos antes, é necessário conhecer a realidade para podermos determinar as possibilidades de êxito de qualquer projeto e, inversamente, as suas possibilidades de fracasso; com isso, podemos preparar-nos em termos práticos (reunindo os elementos necessários para o sucesso do empreendimento) e em termos morais (ficando de sobreaviso para as dificuldades e, ainda mais, para um eventual fracasso – e, assim, criando uma espécie de “almofada” moral)

o   O conhecimento abstrato da realidade consiste nas leis naturais, isto é, das relações necessárias de sucessão ou coexistência dos fenômenos

§  O conhecimento da realidade (abstrato e concreto) conduz a uma idealização da realidade, basicamente em termos apenas intelectuais: o “ideal”, aí, é uma elaboração intelectual e simplificada da realidade

o   Esse conhecimento tem que estar ligado sempre a uma regra prática de sabedoria, que consiste em determinar o que podemos e o que não podemos fazer; ou, dito de outra forma, o que podemos e o que não podemos mudar

§  Na verdade, a determinação do que podemos e do que não podemos mudar antecede sempre a proposição de qualquer projeto

§  Em relação ao que podemos mudar, seguindo as leis naturais, é necessário avaliar se é moralmente correto; no que se refere ao que não podemos mudar, a única possibilidade é a digna resignação

·         Em outras palavras, a digna submissão (a digna aceitação) é sempre o único caminho possível tendo em vista as leis naturais, seja reconhecendo as possibilidades de atuação, seja reconhecimento a impossibilidade de ação

§  Inversamente, não faz sentido desejar algo que vai contra as leis naturais: desejar algo francamente impossível implica uma vontade caprichosa e o fracasso certo

·         A “resiliência” nesse caso consiste não em retomar o projeto, mas em abandoná-lo e retomar a vida com outros objetivos

·         A maturidade, nesse caso, consiste em reconhecer a inutilidade dos esforços e a necessidade de mudar de objetivos: não há dúvida de que isso pode exigir maiores esforços, que, por sua vez, aumentarão o “grau” de maturidade

-        Também há os vários aspectos relativos à moralidade dos ideais

o   Tudo o que comentamos acima pressupõe que os nossos objetivos são moralmente corretos

o   Mas é claro que a avaliação moral deve sempre ser feita – e, além disso, deve sempre ser feita antes de qualquer outra avaliação

o   A moralidade das ações é sempre dada pelo altruísmo: melhorará o bem-estar? Não prejudicará? Estimulará o altruísmo? Não estimulará o egoísmo?

§  Vale notar que a “bondade”, aí, consiste no altruísmo e que a “maldade” consiste no estímulo direto e único do egoísmo (incluindo o sadismo); não há que falar em “bondade” e “maldade” como se elas existissem por si sós, como abstrações personificadas (ou seja, metafísicas)

o   Os valores e as idéias que são moralmente corretos – ou seja, que estimulam e/ou realizam o altruísmo – podem tornar-se “ideais”, ou seja, concepções (1) abstratas da realidade que (2) indicam os bons caminhos a seguir

§  É importante insistir: não é porque algo é factível que também é moralmente desejável e que, portanto, deve ser feito

o   É igualmente importante lembrar que, no caso de projetos moralmente corretos, com freqüência um fracasso momentâneo não pode impedir a continuidade dos esforços: em outros termos, um fracasso momentâneo não nega nem invalida o ideal

§  Isso se aplica às dificuldades, aos desastres e também às injustiças da vida

§  A palavra “momentâneo” é central aqui: por vezes, um ideal factível não se realiza devido a dificuldades materiais, a dificuldades sociais amplas, a dificuldades políticas; mas cumpre perceber que, se em um determinado momento algo não é possível, em outro momento, e/ou com outros esforços, esse projeto pode vir a realizar-se

o   Ainda no que se refere a moral e à oposição entre o ideal e o real:

§  Como “agimos por afeição”, todas as nossas ações são moralmente motivadas – daí a necessidade de que essa motivação seja altruísta

§  Mas é claro que os sentimentos não dão apenas a partida nas ações: são os sentimentos que nos mantêm atuantes, mesmo (e até principalmente) em face das adversidades

·         Os bons sentimentos de nossos familiares e nossos amigos confortam-nos e apóiam-nos, seja durante as dificuldades, seja no fracasso

·         Assim, é importante lembrar: não existimos no vazio, ou melhor, não existem indivíduos, mas apenas agentes da Humanidade; todas as nossas ações são propostas, elaboradas e levadas a cabo na, pela e para a Humanidade

§  Além dos sentimentos e das idéias, a natureza humana atua por meio dos instintos práticos: a coragem, a prudência e a perseverança

·         A coragem leva-nos a agir; é o impulso para a frente

·         A prudência são os cuidados que tomamos, para evitar problemas (ou problemas excessivos, ou problemas desnecessários, ou problemas inesperados)

·         A perseverança é o que nos mantêm em atividade, ao longo do tempo e a despeito das dificuldades

o   Assim, a resiliência é uma forma de perseverança, em que temos que retomar nossas atividades quaisquer e, se for o caso, retomarmos os esforços das ações que anteriormente fracassaram

-        Há ainda outros aspectos a considerar na oposição entre o ideal e o real; todavia, esses outros aspectos serão somente citados aqui

o   As observações acima se concentram nos indivíduos, nas dificuldades morais que cada um enfrenta ao realizar seus projetos e, em particular, ao fracassar: mas, como Augusto Comte afirmava desde o início de sua carreira e como consagrou na Religião da Humanidade, de real só existe a Humanidade

§  Isso significa que todos os projetos só podem realizar-se pela Humanidade, devido aos inúmeros fatores envolvidos:

·         O altruísmo realiza diretamente a Humanidade

·         Os projetos construtivos (não violentos, não destruidores) desenvolveram-se ao longo da história

·         Da mesma forma, nossas concepções sobre a realidade também se desenvolveram ao longo da história

·         Qualquer projeto implica, sempre, a coletividade, seja nas idéias, seja nas palavras, seja na necessária colaboração de qualquer atividade

·         Por fim – e de maneira central para esta prédica –, no caso de maiores dificuldades e/ou de fracasso, o amparo é sempre dado pela Humanidade, seja com o afeto que nossos amigos e familiares dão, seja com as idéias e os valores que nos confortam

o   Como vimos e como todos sabemos, a palavra “ideal” apresenta uma importante ambigüidade:

§  Ela pode ser uma concepção abstrata da realidade e/ou pode ser u’a meta considerada correta

·         Temos aí as partes que cabem ao cérebro e ao coração

·         Vale lembrarmos a bela frase de Vauvenargues: “os grandes pensamentos provêm do coração”

§  Além disso, há o espaço para a imaginação e, portanto, para as artes

·         Não podemos esquecer que as artes idealizam a realidade, ou seja, descrevem um cenário que simplifica o mundo e que, ao mesmo tempo, é desejável

·         As artes, então, ajudam a inspirar-nos e a ter coragem; enquanto enfrentamos dificuldades, elas confortam-nos, de modo que apóiam a perseverança; por fim, no caso do fracasso, é fora de dúvida a importância que elas apresentam para o conforto moral, para a resiliência e para o nosso amadurecimento

o   O papel da idealização – considerando todos os aspectos indicados acima, incluindo suas relações com a realidade – é resumido, sintetizado e/ou pressuposto na primeira lei da filosofia primeira, cuja importância é tão grande que é chamada de “lei-mãe”: “Formar a hipótese mais simples e mais simpática que comporta o conjunto dos dados a representar”