04 janeiro 2007

Luta de classes e senso comum

Luta de classes e senso comum[1]

Quem ler qualquer revista ou jornal, ou livros acadêmicos, ou vir o vestibular (da usp, da UFPR, da Unicamp) não demorará muito até encontrar frases do tipo “a exploração dos trabalhadores pelos capitalistas” ou “o capitalismo baseia-se na exploração de uns pelos outros”. Essas idéias, que infelizmente já se incorporaram ao senso comum, são, apesar disso, extremamente danosas.

Não é difícil vermos os conflitos de classe como integrantes da sociedade. A todo instante percebemos negociações entre patrões e empregados, vemos como a taxa de desemprego é alta, que muitos – demais, até – empresários não se preocupam com o corpo de empregados, visando apenas ao lucro etc. A partir daí aceitamos, quase como conseqüência natural, que não é possível a sociedade sem a “luta de classes”.

Essa perspectiva, contudo, é errada. É lógico que há esses problemas sociais, que são, de fato, problemas, e que quem está desempregado não vai trabalhar apenas por mudar de ponto de vista: mas não se trata disso. A questão é outra: de fato a sociedade baseia-se em um pequeno grupo de ricos explorando o trabalho de muitos outros? Essa visão é correta, isto é, a sociedade é efetivamente assim e nossa vida em comum torna-se melhor se a percebermos dessa forma? Mais precisamente: a descrição científica corresponde à realidade e os postulados éticos são corretos?

Na verdade, quem faz profissão de fé em que a luta de classes é básica e fundamental para a sociedade não entende o mínimo do ser humano, especialmente no que se refere à importância dos valores para nossa existência coletiva. Nenhum grupo mantém-se sem valores que regulem sua conduta, isto é, que evitem os excessos de uns e que protejam a fraqueza de outros. Enfatizo: nenhum grupo fica sem tais valores. Querer afirmar que a nossa sociedade, tachada de “capitalista”, é desregrada e que alguns podem explorar a grande massa a seu bel-prazer é adotar um cinismo suicida, tanto em termos econômicos quanto políticos. Além disso, tais concepções só são aceitáveis porque há grupos que os defendem – e não são os “capitalistas”.

O sociólogo alemão Max Weber argumentou com sucesso, em 1904, que o “capitalismo”, assim como o conhecemos, só é possível porque algumas seitas protestantes, nos séculos XVI e XVII, buscando realizar a vontade divina na terra, tornaram correto o individualismo econômico mais brutal, em que cada pessoa deve satisfações apenas a seu Deus, ao invés de preocupar-se com os demais. Weber afirmou que esse padrão de conduta teve um sucesso enorme – como é evidente – em virtude dos seus resultados econômicos, difundiu-se e tornou-se dominante. Ou seja: o capitalismo foi antes de tudo um valor moral praticado por certos grupos.

É simplesmente errado afirmar que “a classe dominante sempre busca explorar a classe dominada”. As coisas não são assim, tão simplistas e tolas. É lógico que, por exemplo, nos dias atuais, um capitalista busca o lucro, da mesma forma como é evidente que há capitalistas que adotam comportamentos predatórios (basta pensarmos no trabalho semi-escravo ainda existente no Brasil), assim como, inversamente, a incorporação do proletariado à sociedade é a tarefa social mais urgente, em nosso país e no mundo.

Onde está o erro? Está na generalização brutal e violenta, ao afirmar que “todos os que estão no poder (os capitalistas) querem a exploração”.

Essa forma de pensar é típica das teorias da conspiração: “há alguém querendo nos dominar”, “todos ‘eles’ são maus”, “os de cima não prestam”. Divide-se o mundo em dois campos, “nós” e “eles”, sendo que nós, a maioria, somos bons, sinceros e corretos, mas temos sido enganados até agora; eles são a minoria, má, hipócrita e desonesta, que manipula, engana e pensa apenas em si própria. O mundo será um lugar melhor apenas se eles deixarem o poder; mas como nós não os conhecemos, devemos “duvidar de tudo” e adotar uma atitude de “resistência”, mantendo uma “luta” sem cessar, uma “guerra sem trincheiras”, até o dia em que mostraremos ao mundo quem são eles e tomaremos o poder, “fazendo a revolução”; além disso, todo o discurso “de cima” é uma enganação que serve para “dominar”, isto é, é “ideologia”.

Esse esquema, que lembra a série de televisão Arquivo X, resume o programa político do marxismo e da esquerda em geral, apenas substituindo “eles” por “neoliberais”, “capitalistas” ou coisa que o valha.

Isso é senso comum e do pior tipo, pois é o mais daninho, o mais destrutivo, o mais cínico. Ele mina completamente a possibilidade de confiança de uns nos outros, além de proclamar que a revolta e a rebelião são o estado normal da sociedade. Dessa forma, sempre que alguma coisa nos desagradar, diremos que “é uma conspiração dos fortes (ou da burguesia) contra nós”, e poderemos agir como quisermos.

Por exemplo: com base no discurso acima, posso afirmar – como diversos “acadêmicos” de esquerda dizem – que a eleição de Luís Inácio Lula da Silva é boa para o capitalismo, pois a exploração aumentará e a massa de trabalhadores (transformada em boiada) aceitará melhor tudo. Como as coisas passam-se assim, não preciso respeitar nenhuma instituição, nem devo a mínima lealdade ao Presidente da República; aliás, como ele é o “traidor da classe”, pois vendeu-se para “eles” (para a burguesia), não há nada que me impeça de ir a Brasília cometer um atentado (desculpem-se: um ato de desagravo)...

Dirão alguns que isso é radicalismo. Não: é honestidade e coerência, admitindo as conseqüências lógicas da maneira de pensar da esquerda e de seu senso comum. A esquerda, que adora dizer que “devemos policiar nossas idéias, em virtude de suas conseqüências políticas”, deveria prestar maior atenção às tais “conseqüências políticas de suas idéias” (ou ser mais honesta e coerente).

Para concluir, duas observações. Em primeiro lugar, esse senso comum da luta de classes, apesar de parecer natural, é o resultado de um esforço consciente de diversos grupos, há décadas – de modo geral os partidos políticos de esquerda, cuja influência é enorme, refletindo-se nos meios de comunicação, nos currículos escolares, na produção artística, na direção do Estado (basta lermos os escritos do comunista italiano Antônio Gramsci – que, não por acaso, há tempos são algumas das principais leituras da esquerda).

Em segundo lugar, creio estar claro que não defendo a irresponsabilidade de inúmeros capitalistas, nem a farra financeira internacional, muito menos a hipocrisia de vários grupos que pregam a “caridade” para explorar melhor (ou mesmo escravizar) os trabalhadores – tudo isso é revoltante. A irresponsabilidade e a hipocrisia têm que ser condenadas e combatidas com energia, e temos todos que buscar vigorosamente soluções para esses problemas sociais. O que não se pode aceitar, de maneira alguma, é que a revolta moral contra injustiças sirva de justificativa para uma forma de pensar cínica, tão nociva à sociedade quanto os próprios abusos dos capitalistas.



[1] Artigo publicado no jornal O Estado do Paraná em 16 de fevereiro de 2003.

Um comentário: