07 abril 2007

Anotações sobre o "Discurso..." - II

Comentários sobre a parte I do "Discurso sobre o espírito positivo" (a partir da divisão estabelecida por Paul Arbousse-Bastide, na edição da editora Martins Fontes).

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Esse livrinho é a introdução ao Curso filosófico de Astronomia popular, que Augusto Comte lecionou durante quase 20 anos para o proletariado parisiense (embora, conforme assinalaram o próprio Comte e alguns de seus discípulos proletários, em sua assistência houvesse grande número de idosos e de desocupados). O curioso é que essa introdução filosófica progressivamente aumentou de tamanho, a cada ano que passava, assumindo mais e mais lições, indicando não apenas o caráter do “espírito positivo” mas do próprio Positivismo e do seu programa filosófico e político. Em 1848, Augusto Comte decidiu encerrar o curso de Astronomia e dedicar-se apenas à exposição da nova doutrina; o Discurso sobre o espírito positivo tornou-se, em 1851, a introdução geral ao Sistema de política positiva, chamado Discurso sobre o conjunto do Positivismo.

A edição que sugeri é a da Martins Fontes, anotada por Paul Arbousse-Bastide, sociólogo francês que, se não era positivista, era “positivófilo”. É de Arbousse-Bastide a divisão geral do livro em três seções, em que nos baseamos para fazer este estudo[1].

- A obra é rica e densa; cada palavra tem um significado específico, que deve ser compreendido no contexto do pensamento de Comte; de modo geral, ele usava muitos adjetivos, que qualificavam a realidade a que ele referia-se, ao invés de apenas a descrever. Uma crítica muito usual, portanto, já não faz sentido: o Positivismo não se limita a colecionar fatos e descrições, de maneira seca e estéril, mas avalia e julga o conhecimento e a realidade. Não bastassem as expressas indicações de Comte nessa obra (em que, por exemplo, critica a imperfeição da realidade – que, por sinal, é o que permite e justifica a intervenção humana, racional, na realidade), os inúmeros adjetivos por ele empregados deveriam desfazer esse estúpido preconceito.

- Muito se fala que o Positivismo quer conhecer toda a realidade em todos os seus aspectos: esse tipo de crítica fácil, por exemplo, é comum nas Ciências Sociais e é uma das principais objeções de Max Weber a Comte[2]. Todavia, essa objeção é tola, quando não má-intencionada. Em primeiro lugar, porque Comte reconhece que os nossos conhecimentos são sempre relativos à realidade humana (p. 15-16); em seguida, porque, como o conhecimento é sempre humano, tem as limitações impostas pelo ser humano e nada garante que conheçamos “tudo” – aliás, “[...] a maior parte talvez deva nos escapar totalmente” (p. 16); finalmente, embora devamos procurar representações da realidade cada vez mais acuradas, essas representações variam de acordo com as necessidades e as possibilidades humanas (p. 17).

- No Discurso torna-se claro como a lei dos três estados não é apenas a negação da teologia e a apologia da ciência – uma combinação de ateísmo, materialismo e cientificismo, portanto – mas a afirmação de uma síntese filosófica geral, humanista e de caráter histórico. Esse humanismo revela-se de diversas formas: centralidade das preocupações humanas, critérios “humanistas” para disciplinar e regrar a ciência; respeito geral ao ser humano (em si e em contraposição à teologia).

- A busca de leis é o procedimento científico por excelência e, assim, é o que distingue a ciência da teologia. Os limites das leis naturais são os limites do próprio conhecimento científico; reconhecê-lo não é a fraqueza da ciência, mas sua força, na medida em que aceita (e, antes, reconhece) seus limites.

A busca das leis naturais é a garantia contra a teologia; negá-las é permitir, historicamente, a teologia. A afirmação das leis naturais, portanto, não deve ser vista, em Comte, de maneira instrumental, mas de modo filosófico, com seu valor para a unidade “espiritual” humana (individual e coletiva).

Além disso, a busca de leis naturais rejeita a mera coleção de fatos: o Positivismo não é um “empirismo”, no sentido grosseiro que se dá a essa palavra atualmente! Veja-se a seguinte passagem: “[...] a pura erudição, [segundo a qual] os conhecimentos reais, mas incoerentes, consistem em fatos e não em leis, evidentemente não poderia bastar para dirigir a nossa atividade” (p. 30).

Uma citação longa que resolve de vez essa falsa polêmica: “Desde que a subordinação constante da imaginação à observação foi unanimemente reconhecida como a primeira condição fundamental de toda sã especulação científica, uma viciosa interpretação levou muitas vezes a abusar muito deste grande princípio lógico para fazer a ciência real degenerar numa espécie de estéril acumulação de fatos incoerentes, que não poderiam oferecer outro mérito essencial além da exatidão parcial. Importa, pois, perceber bem que o verdadeiro espírito positivo no fundo não está menos afastado do empirismo do que do misticismo; é entre estas duas aberrações, igualmente funestas, que ele deve sempre caminhar. A necessidade de tal reserva contínua, tão difícil como importante, bastaria, aliás, para verificar, em conformidade com as nossas explicações iniciais, quanto a verdadeira positividade deve ser maduramente preparada, de maneira a não poder de modo algum convir ao estado nascente da Humanidade. É nas leis dos fenômenos que consiste realmente a ciência, à qual os fatos propriamente ditos, por mais exatos e numerosos que possam ser, nunca fornecem senão materiais indispensáveis. [...] A verdadeira ciência, muito longe de ser formada por simples observações, tende sempre a prescindir, tanto quanto possível, da exploração direta, substituindo-a por essa previsão racional que constitui, sob todos os aspectos, o principal caráter do espírito positivo [...]” (p. 18).

- Uma certa oposição entre “humanismo” e “cientificismo”, estranhamente tradicional (e própria a católicos, protestantes e os “críticos”), nega o valor da ciência e dos estudos da natureza para o ser humano. Subjacente a essa desvalorização está a crença de que a ciência degrada o ser humano, que, por outro lado, deve ser “convenientemente valorizado”[3]. Essa dicotomia, para o Positivismo, é falsa, pois pode apenas haver humanismo de base científica: como valorizar o ser humano se não se o conhece, se não se sabe como ele é, como foi e como poderá ser?[4]

- O Positivismo pretende constituir uma síntese filosófica, ou seja, um sistema coerente de idéias e valores, que sistematize, além dos resultados intelectuais, também as condutas afetivas e práticas do ser humano. Essa é uma conseqüência direta da lei dos três estados: as sínteses filosóficas são, sucessivamente, teológica, metafísica e deve ser, agora, positiva. Por quê uma síntese? Aliás, para que uma síntese? Porque o ser humano precisa de coerência em sua vida, em seus valores; precisa de harmonia interna e externa: seus valores têm que ser compatíveis entre si e ele deve estar em harmonia com seus semelhantes: é nesse sentido preciso que o Positivismo é uma religião, pois religa cada ser humano: primeiro a si mesmo e depois aos demais. “Essa tendência espontânea para constituir diretamente uma inteira harmonia entre a vida especulativa e a vida ativa deve ser finalmente encarada como o mais feliz privilégio do espírito positivo” (p. 32).

- A síntese positivista é humana e subjetiva, isto é, ela é feita pelo próprio ser humano. Isso lhe permite ser homogênea no método, mas não lhe permite uma unicidade de teorias e de resultados, pois estes referem-se ao objeto, que não se reduz a um único (ou a uma única lei) (p. 25).

- Novamente: a síntese é subjetiva, isto é, feita pelo ser humano. Isso quer dizer, por um lado, que a síntese objetiva é impossível: não se obtém do exterior do ser humano nenhum princípio que lhe permita organizar seus conhecimentos e sua “visão de mundo”; por outro lado, isso quer dizer que é a partir das preocupações humanas que a síntese é constituída: não há nada de “objetivista” ou de “materialista” ou de “cientificista” ou de “antifilosófico” aí.

- A síntese humana é social, o que equivale a dizer, em termos de Positivismo, que é histórica. Deixando de lado questões sociológicas ou políticas, se somarmos a historicidade da síntese com a impossibilidade de uma única lei e com a subjetividade do conhecimento, o resultado é que as interpretações “objetivistas” do Positivismo caem por terra; ou, por outra, teríamos que o Positivismo também é “interpretativo”, na medida em que é subjetivo, histórico e social; o que ocorre é que esse interpretativismo é de fato científico, anti-irracionalista, antiteológico e antimetafísico[5].

- A defesa que Augusto Comte faz do espírito positivo, além disso, indica outro fator, menosprezado atualmente, seja pela Sociologia, seja pelos “Estudos sobre a ciência”: a ciência justifica-se por suas propriedades intelectuais, que, por si, são superiores às da teologia ou às da metafísica. Justificar o êxito ou a importância da ciência por seu caráter técnico ou econômico é ser, da maneira mais grosseira e idiota, materialista.

- Uma observação geral sobre a realidade ilustra bem como o Positivismo baseia seu humanismo na ciência: a realidade é imperfeita e pode ser melhorada. Apenas em uma tal realidade a ação humana seria possível; por outro lado, apenas o conhecimento dessa realidade, de suas leis e das possibilidades de intervenção humana nela é que permitem que essa ação tenha sucesso. Por outro lado, a ação humana exige esforço: o “otimismo providencialista” da teologia não leva a lugar algum (p. 34).

- Embora em uma discussão posterior a respeito da origem lógica e histórica do Positivismo (a partir da reação da realidade sobre a inteligência humana), indicarei aqui algumas considerações de Comte sobre as relações entre o método e a teoria – e suas histórias. Para Augusto Comte, não é possível separar o método da doutrina, de modo que somente se pode julgar um método por meio dos procedimentos efetivamente realizados – e, claro, em perspectiva, isto é, após um certo tempo e em comparação com outros métodos, aplicados a casos semelhantes. Tentar separar teoria e método, no fundo, é um procedimento do espírito absoluto, isto é, teológico ou metafísico (p. 47).

- Uma citação que, a despeito de longa, vale ser feita: [...] importa sobretudo bem reconhecer, a este respeito, que a relação fundamental entre a ciência e a arte não pôde até agora ser convenientemente concebida, mesmo pelos melhores espíritos, por conseqüência necessária da insuficiente extensão da filosofia natural, que ainda permanece alheia às pesquisas mais importantes e mais difíceis que envolvem diretamente a sociedade humana. De fato, a concepção racional da ação do homem sobre a natureza ficou assim essencialmente limitada ao mundo inorgânico, do que resultaria uma excitação científica por demais imperfeita. Quando esta imensa lacuna tiver sido suficientemente preenchida, como começa a ser hoje, poder-se-á perceber a importância fundamental desta grande destinação prática para estimular habitualmente, e muitas vezes até para melhor dirigir, as mais eminentes especulações, com a única condição normal de uma constante positividade. Pois a arte já não será então unicamente geométrica, mecânica ou química etc., mas também, e sobretudo, política e moral, devendo a principal ação exercida pela Humanidade consistir, em todos os aspectos, no melhoramente contínuo de sua própria natureza individual ou coletiva, entre os limites indicados, assim como em todos os outros casos, pelo conjunto das leis reais. Quando esta solidariedade espontânea da ciência com a arte puder ser convientemente organizada, não de pode duvidar de que, bem longe de tender a restringir de algum modo as sãs especulações filosóficas, ela lhes destinará, ao contrário, uma tarefa final muito superior a seu alcance efetivo. Isso se de antemão não se tiver reconhecido, como princípio geral, a impossibilidade de um dia tornar a arte puramente racional, isto é, de elevar as nossas previsões teóricas ao verdadeiro nível de nossas necessidades práticas. Mesmo nas artes mais simples e mais perfeitas, um desenvolvimento direto e espontâneo permanece constantemente indispensável, sem que as indicações científicas possam, em caso algum, supri-las completamente. Por mais satisfatórias, por exemplo, que se tenham tornado as nossas previsões astronômicas, sua precisão ainda é, e provavelmente semmpre será, inferior a nossas justas exigências práticas [...]” (p. 31-32).

- Augusto Comte desenvolve então uma série de considerações sobre o caráter da positividade em contraposição ao da teologia (p. 33-41), indicando o papel de transição que teve, aí, a metafísica. Essas indicações são importantes porque caracterizam, no fundo, o próprio Positivismo (indicando, em particular, sua relatividade).

- Nas páginas 41 a 45 Comte apresenta as características da palavra “positivo”, justificando-as: real, útil, certo, preciso, relativo e orgânico (em comparação com o Apelo aos conservadores, falta o sétimo sentido, o “simpático”).

O Positivismo mantém relações com o senso comum: na verdade, é a partir do senso comum que surge o Positivismo. Mas o que é esse senso comum, como eles relacionam-se? É o espírito de conhecimento da realidade, de preocupações práticas, de busca do que é real e útil, de estabelecimento de relações entre fenômenos que possa ser proveitoso para o ser humano; em termos mais diretos, é “ter os pés no chão”. “Têm, de ambas as partes, o mesmo ponto de partida experimental, o mesmo objetivo de ligar e de prever, a mesma preocupação contínua com a realidade, a mesma intenção final de utilidade. Toda a diferença essencial consiste na generalidade sistemática de um, proveniente de sua abstração necessária, oposta à incoerente especialidade do outro, sempre ocupado com o concreto. [...] Apesar de sua afinidade necessária, o bom senso propriamente dito deve permanecer preocupado sobretudo com a realidade e com a utilidade, ao passo que o espírito especialmente filosófico tende a apreciar mais a generalidade e a ligação, de sorte que a sua dupla reação cotidiana se torna igualmente favorável a ambos, consolidando-lhes as qualidades fundamentais que naturalmente se alterariam” (p. 45-46)[6]. Além disso, a origem do Positivismo no senso comum revela-se, ainda, por outro caminho, agora mais abstrato: é o da reação da “razão prática” sobre a “razão teórica” (p. 47).


[1] Da mesma forma, é de Arbousse-Bastide o estudo introdutório da edição, que apresenta em linhas gerais o Positivismo e o Discurso sobre o espírito positivo. Como esta leitura é do Discurso, deixei de lado o estudo introdutório.

[2] No caso específico de Weber, a leitura atenta de suas (poucas) críticas a Comte e suas várias críticas a Marx e ao que ele chamava de “positivismo” e de “cientificismo” revela que ele, Weber, não distinguia o conhecimento abstrato característico da ciência do conhecimento concreto das técnicas. É certo que Weber também tinha suas próprias abstrações – os tipos ideais – mas isso não muda o fato de que ele não entendeu os procedimentos científicos propostos por Augusto Comte – e até certo ponto porque não quis, para não ter que concordar com uma visão oposta à sua.

[3] Ressaltemos: essa valorização é de caráter metafísico, como se pode perceber em vários autores alemães.

[4] Dois comentários aí:

1. Embora o Positivismo afirme a indissociabilidade entre humanismo e ciência, é importante notar que nem toda prática científica propicia, ou permite, um humanismo: basta pensar nas ciências nazista e comunista.

2. A dicotomia entre ciência e humanismo, para Comte, é falsa, mas ele estabeleceu uma dicotomia, de caráter lógico e doutrinário, entre o homem e o mundo, entre os estudos cosmológicos e os estudos humanos (cf. Catecismo positivista).

[5] Se pensarmos em algumas escolas clássicas do interpretativismo, isto é, da Hermenêutica (Dilthey, Gadamer, Habermas), veremos que sobram teologia e metafísica nelas, para afirmarem-se “anticientíficas” e “filosóficas”. Esse tipo de “interpretação” das palavras “interpretação”, “filosofia”, “ciência” é que permitem que se afirme que o Positivismo não é filosófico ou que ele não realiza “interpretações”.

[6] Como se vê, Augusto Comte estabelece uma íntima relação entre o Positivismo e o senso comum, indicando que o Positivismo não surge como que por milagre na cabeça de iluminados ou por acidente na história humana; desde sempre ele está inscrito no ser humano, bastante apenas que haja tempo suficiente para que se desenvolva. Todavia, é importante notar que o bom senso é empírico, faltando-lhe espírito de conjunto e de sistema, faltando-lhe, em particular, a preocupação com a ligação entre os fenômenos gerais para tornar-se o Positivismo. Esse tipo de ressalva é importante por dois motivos: em primeiro lugar, porque já se afirmou vezes demais que o Positivismo é meramente um empirismo; em segundo lugar, e de maneira mais interessante, alguns autores do século XX (Bachelard; Bourdieu) insistiram na necessidade de ruptura com o senso comum para o procedimento científico; não vem ao caso estabelecer as possíveis relações entre o pensamento desses autores com o de Comte, mas é importante notar a visão positiva, isto é, generosa, que Comte tem do senso comum e que, ainda assim, há evidentes diferenças entre o senso comum e o procedimento científico (pelo que não se pode confundir um com o outro).

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