07 novembro 2017

Casa de Benjamin Constant: resenha do livro "Laicidade na I República"

Há cerca de um ano, o Museu Casa de Benjamin Constant publicou uma pequena resenha do meu livro Laicidade na I República brasileira: os positivistas ortodoxos (Curitiba: Appris, 2016), da autoria de Murilo Haither, aproveitando a efemérida da Proclamação da República.

Aproveito que estamos prestes a comemorar novamente essa importante data e reproduzo abaixo a resenha. O original pode ser lido aqui.

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segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Semana da República 2016: 15 a 19 de novembro

Estado e Igreja: um divórcio republicano 
Por Murilo Haither

Mais uma vez, como acontece anualmente, inicia-se mais uma Semana da República. Já vivemos, por 126 vezes, estes dias de efemérides. Não é só o 15 de novembro, dia da Proclamação da República que, em 1889, já era pensada e esperada por alguns. Foram criados também símbolos, como a Bandeira Nacional, celebrada no dia 19, as Armas Nacionais, o Hino Nacional e o Selo Nacional.

A Bandeira Nacional, um dos símbolos da República - versão em arte contemporânea.
Os Positivistas talvez tenham sido o grupo que mais prezou pelos cultos cívicos da República. Os arquivos de Benjamin Constant e de sua família estão recheados de cartas, telegramas e bilhetes que, a cada 15 de novembro, eram enviados parabenizando Benjamin por sua atuação em 1889. Entretanto, para que esses símbolos fossem incorporados à vida dos novos cidadãos, não bastava serem celebrados no círculo fechado dos positivistas ou republicanos declarados. Fez-se necessário criar verdadeiros movimentos cívicos e populares e símbolo algum parece ter recebido maior ênfase que a Bandeira Nacional. Entretanto, a República abriu as portas para algumas discussões que, nas tradições e celebrações, foram deixadas em segundo plano, mas que hoje se mostram centrais e mesmo urgentes. Na 127ª Semana da República, daremos destaque à separação entre a Igreja e o Estado, conhecida também como a laicidade da República. O tema foi tratado pelo sociólogo Gustavo Biscaia de Lacerda, professor da Universidade Federal do Paraná, da perspectiva da ortodoxia positivista, e aproveitamos a semana da República e o recente lançamento de seu livro, Laicidade na I República Brasileira: Os positivistas ortodoxos, para oferecer uma resenha aos nossos leitores.

O autor analisa parte da teoria política do filósofo francês, Augusto Comte, desenvolvida na obra Sistema de política positivista (1851 – 1854). Neste conjunto de livros, o elaborador do Positivismo analisa os cinco aspectos característicos, em sua concepção, de todas as sociedades: família, propriedade, linguagem, governo e religião. Para sua pesquisa, Gustavo Lacerda se detém apenas nos dois últimos termos, governo e religião – essenciais para o que Comte identifica como o processo necessário para o desenvolvimento civilizatório: a separação entre o Poder Espiritual e o Poder Temporal. O autor francês, segundo Lacerda, identifica o Poder Espiritual como permanente, teórico, geral, subjetivo e atemporal. Por outro lado, o Poder Temporal seria constituído por uma transitoriedade, praticidade, localidade e especialidade. Nesse sentido, podemos correlacionar o último Poder com as instituições que regulamentam e dão alicerce para a sociedade – como o Congresso ou Tribunais, por exemplo -, e o primeiro com a mentalidade – cabe notar que o Poder Espiritual não é limitado apenas ao Catolicismo, Protestantismo ou demais religiões, mas também à Metafísica, abrangendo, portanto, outras ideologias políticas. Ainda aqui, Lacerda reconhece que ambos os poderes sempre foram distintos – lembra-se das divisões na sociedade feudal entre os guerreiros e sacerdotes – e que, portanto, quando concentrados compõem um “corpo doutrinário que faz valer-se pela violência física” (p. 42). Deste modo, a separação do Poder Espiritual e do Poder Temporal constitui um processo de transição para a sociocracia de Augusto Comte, ou seja, transição para o Estado de tipo ideal, passando, portanto, de um absolutismo ideológico para um relativismo ideológico, como coloca Lacerda. Ainda em Comte, Lacerda observa a necessidade de não se ocorrer, na sociedade, um sistema hipócrita, onde uma religião oficial do Estado obriga os políticos e demais cidadãos a professarem uma determinada fé, sendo que “(...) o Positivismo não deve constituir um monopólio espiritual opressivo” e, portanto, “... não busca extinguir as crenças teológicas” (p. 57).

A capa do recém lançado livro de Gustavo Biscaia de Lacerda:
"Laicidade na I República Brasileira: Os positivistas ortodoxos"

Dois pontos abordados pelo autor, que nos ajudam a compreender a atuação dos positivistas na transição do Império para a Primeira República, bem como a complexidade dos conflitos ligados à questão da laicidade no Brasil, são o processo de secularização dos cemitérios e a questão dos símbolos religiosos nos estabelecimentos do Estado.

Até então tomado como espaços de domínio da Igreja Católica, os cemitérios foram tema de debate entre os republicanos e positivistas já na década de 1870. Os pontos levantados questionavam o privilégio dado aos católicos em detrimento de adeptos de outras religiões. Também questionava o privilégio dado pela Igreja Católica – única administradora oficial de cemitérios públicos na época - tornando os cemitérios civis como uma solução que pudesse dar respeito à pluralidade religiosa do país, ainda que os católicos fossem a maioria da população.

O filósofo francês, Augusto Comte.

O segundo aspecto tomado por Lacerda – sobre os símbolos religiosos em estabelecimentos do Estado - nos coloca ante situações apontadas por Teixeira Mendes, então vice-diretor da Igreja Positivista do Brasil, relacionadas ao uso de símbolos religiosos em instituições do Estado republicano. Um dos casos abordados por Teixeira Mendes e que, aos nossos olhos, talvez possa nos dar um panorama da disputa pela laicidade do espaço público, é o caso de Domingos Eleodoro Pereira que, em 25 de março de 1892, arrancou um crucifixo que estava pendurado em um Tribunal de Júri na cidade do Rio de Janeiro.

Estes dois aspectos trabalhados nos folhetos da Igreja Positivista e analisados na obra de Lacerda nos mostram que a laicidade fazia parte de um projeto positivista que, ao garantir a liberdade religiosa somada a outros fatores, pudesse criar alicerces para o Estado ideal, ou sociocracia, na concepção comtiana, que garantiria a pluralidade religiosa e ideológica, alimentada pela fraternidade e altruísmo entre os homens. Tal Estado impediria abusos que resultariam da combinação entre o Poder Espiritual e Poder Temporal

O diretor da Igreja Positivista, Raimundo Teixeira Mendes.
Nota-se, ainda aqui, a importância dada pelos positivistas à memória dos mortos, pela valorização dos cemitérios como espaços de culto cívico, onde as pessoas pudessem lembrar-se dos feitos de outros cidadãos e relembrar os ideais defendidos pelos mesmos, sejam católicos, protestantes, judeus, ou de outras religiões. Mostram-nos também que o processo de laicização da República, mesmo com a Constituição de 1891 garantindo a separação entre Igreja e Estado, não foi realizado por completo e de imediato, sofrendo conflitos entre diversos setores da sociedade. Lacerda ressalta esse último ponto como um processo que, desde a Proclamação da República, sofreu avanços e retrocessos, encontrando-se ainda incompleto: observa que, por exemplo, a primeira Constituição republicana retirou o Ensino Religioso do currículo escolar público, sendo retomado na Constituição de 1934. Isso nos mostra que o Estado é um espaço de disputa entre os agentes da sociedade, onde, se em dado momento, algumas pautas avançam em detrimento das demais, em outro momento podemos observar a aspiração de outras demandas e o esforço para a retomada de velhas formas de organização social.

Gustavo Lacerda, em seu livro, permite-nos refletir sobre os problemas que enfrentamos na Primeira República referentes à Laicidade. Mas, em tempos em que vemos o avanço religioso sobre as instituições do Estado Republicano, também nos dá ferramentas para podermos pensar as fronteiras dessa questão tão cara para a sociedade ocidental em nossa contemporaneidade.

2 comentários:

  1. Olá. Gosto muito de ler seus posts. Aprendo bastante sobre o positivismo e republicanismo. Gostaria de fazer uma pergunta relacionada à laicidade e religião.

    Há quem diga que a religião é um fenômeno cultural, no sentido de ela ter valores, condutas, ritos próprios influencia o modus vivendi de uma sociedade. Não duvido disso, porque isso é autoevidente.

    Mas vemos que esse é o argumento preferidos dos que são contra a laicidade do Estado quando argumentam que a religião x é tradicional e que portanto merece ter a proteção do Estado ou a preferência do Estado na vida pública. Vemos isso em feriados religiosos, ícones religiosos nas paredes de tribunais, placas de estrada de municípios etc.

    Esse argumento de que a religião é um fenômeno cultural não dá espaço para que o enfraquecimento da laicidade e do secularismo?

    Obrigado.

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  2. Caro Tiago:

    Essa é uma questão interessante.

    Veja, argumentar que, por serem "culturais", determinadas religiões deveriam gozar da proteção do Estado é um sofisma e que vai justamente contra a idéia da laicidade. Por que é um sofisma? Porque todas as religiões são "culturais" e a laicidade refere-se a essa questões "culturais". Se uma "cultura" é viva e pujante, ela não precisa do apoio do Estado para manter-se; se essa cultura não é viva nem pujante, que ela solicite o apoio do Estado a título de "valor histórico" - mas, nesse caso, quando se fala em "valor histórico", dá-se a entender que essa cultura já vira uma peça de museu.

    Se entendi corretamente a sua pergunta, o sentido que se dá à "cultura", nesses casos a que você refere-se, é próximo do que valor que se dá a práticas "tradicionais". Ora, não é porque algo é "tradicional" que merece ser celebrado, preservado e/ou protegido. Exemplos banais disso: a extirpação do clitóris, o trote violento nas universidades, a cultura do machismo e por aí vai.

    Cumpre lembrar o conceito de "laicidade": é a separação entre igreja e Estado, em que as igrejas não se utilizam do Estado para difundirem suas crenças e, por outro lado, o Estado não mantém, protege, subvenciona ou dificulta a ação das igrejas. Assim, igrejas que se afirmam "culturas" e que, por isso, pleiteiam o apoio do Estado vão justamente contra a laicidade. Essa é a justificativa final de porque esse argumento cultural é um sofisma - e, bem vistas as coisas, não há dúvida de que, no Brasil, esse sofisma não se aplica somente às teologias cristãs.

    Quanto aos feriados, o problema é semelhante. Apenas se deve notar que os feriados são comemorações coletivas sancionadas pelo Estado; considerando a laicidade, os únicos feriados aceitáveis são os cívicos (1º de janeiro, 21 e 22 de abril, 13 de maio etc.).

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