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23 abril 2024

Ideal vs. real: como lidar?

No dia 2 de César de 170 (23.4.2024) realizamos a prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua undécima conferência (dedicada ao regime público).

No sermão abordamos a oposição entre o ideal e o real e como agir considerando a distância entre ambos.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://encr.pw/iKkQa) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/snJFS). O sermão começou aos 48 min 30 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.

*   *   *

O ideal vs. o real: como lidar? 

-        A questão desta semana é ao mesmo tempo bastante simples e extremamente importante: como lidar com a oposição entre o ideal e o real?

o   Esse tema foi sugerido pelo nosso amigo Hernani G. Costa, nos seguintes termos: “O equilíbrio entre o preenchimento do ideal e a frustração de quando não o realizamos. Como agir diante disso? Como conjugar a vida vivida em nome de um ideal, diante de uma realidade que por tantas vezes parece desmenti-lo?”

-        Essa questão apresenta muitos aspectos, vários deles à primeira vista insuspeitos:

o   Em um primeiro lugar, há o aspecto moral (“psicológico”), em relação a como lidar com a distância entre o que se deseja e o que se obtém

o   Mas o aspecto moral implica o conhecimento da realidade (científico)

o   Também há as questões relativas à idealização da realidade, ou seja, são aspectos artísticos

o   Há também a idealização no sentido do que é bom, ou seja, é um outro aspecto moral

o   Tudo isso se reúne nas leis da filosofia primeira, em particular na primeira lei, a chamada “lei-mãe”

-        Comecemos pela oposição entre o real e o ideal, isto é, a oposição entre a realidade vivida e o que gostaríamos que ocorresse

o   Duas ou três observações iniciais:

§  Trata-se verdadeiramente de uma oposição entre o real e o ideal

§  Os comentários abaixo concentrar-se-ão no comportamento individual de cada um de nós

§  Além disso, concentrar-nos-emos nas dificuldades enfrentadas e, ainda mais, nos fracassos que por vezes temos que enfrentar

o   Todos vivemos enfrentando os desafios da vida; esses desafios são “desafios” porque nos impõem dificuldades, que devem ser enfrentadas, ou seja, que têm que ser enfrentadas: todos temos contas para pagar, por isso todos temos que trabalhar; temos contas para pagar porque temos necessidades que têm que ser satisfeitas: alimentação, moradia, saúde, transporte, relacionamentos, previdência, divertimentos

o   Os desafios que indiquei acima são todos eles materiais; mas é claro que viver é muito mais que só se preocupar com questões materiais; como sabemos, sem negar a importância desses aspectos, viver significa acima de tudo ter ideais, planos, projetos; significa viver orientado por valores e concepções do que é bom e belo

§  É importante dizê-lo com todas as letras para termos clareza a respeito: a vida orientada por valores e idéias existe por si só, independentemente das preocupações materiais e, na verdade, com freqüência até em oposição a elas

§  Citamos inicialmente as preocupações materiais apenas porque elas são fáceis de entender e porque elas realmente se impõem a todos

§  Mas é claro que há toda uma série de outras dificuldades na vida: entendimento falho da realidade; necessidade de cooperação com outras pessoas; disposições pessoais; acidentes tecnológicos; desastres naturais etc.

o   O que se apresenta, então, é uma oposição entre o que nós, como seres humanos, desejamos e aquilo que, enfrentando os desafios e as dificuldades, conseguimos realizar: às vezes conseguimos, às vezes fracassamos

o   Como se diz, o sucesso tem muitos pais e mães, mas o fracasso é sempre órfão: ninguém gosta de fracassar, seja porque evidentemente o fracasso conduz a um sentimento muito desagradável, seja porque ninguém gosta de assumir a responsabilidade pelo fracasso

§  O fracasso é desagradável; com freqüência sentimos a sensação de derrota, de incompetência, de incapacidade, até mesmo de merecimento no fracasso

o   Para lidarmos com isso e, de qualquer maneira, para obtermos o sucesso, temos que nos preparar das mais diferentes maneiras:

§  Temos que lembrar que cada pessoa é uma pessoa, cada empreendimento é um empreendimento diferente, cada situação é uma situação específica

§  É necessário conhecer a realidade, (1) para sabermos se nosso projeto é realizável; em seguida, (2.1) para sabermos quais as condições e as possibilidades de sucesso; (2.2) inversamente, quais as condições e as possibilidades de fracasso)

§  Assim, a partir do conhecimento da realidade e, de qualquer maneira, é necessário estarmos preparados, antecipadamente, para maiores dificuldades ou mesmo para um eventual fracasso

·         Essa preparação é tanto material quanto emocional

§  Caso fracassemos, é sempre bom e sempre importante lembrarmos a ótima observação de Winston Churchill: “O sucesso nunca é definitivo e o fracasso nunca é fatal”; em outras palavras, devemos estar sempre preparados para reerguer-nos, ou seja, devemos ter a resiliência

§  Todos podemos, e até devemos, lamentar a derrota durante um certo período de tempo; quanto mais importante essa derrota, maior o tempo despendido; mas o luto não pode durar para sempre e, no final das contas, trata-se de uma questão de amadurecimento: quem é mais maduro passa mais rapidamente pelo luto

·         Na verdade, inversamente, em certo sentido o amadurecimento consiste na capacidade de cada um de lidar com as dificuldades e com os fracassos, não se deixando abalar em demasia com eles, sabendo olhar para os fracassos com serenidade (o que não equivale a olhá-los com satisfação), superando-os com maior facilidade e seguindo em frente

§  Quando acontece o fracasso, ele pode ter ocorrido devido a muitos motivos: falta de preparo intelectual, falta de preparo moral, falta de preparo técnico, falta de cooperação, eventos inesperados

§  É sempre importante avaliar cuidadosamente cada uma dessas possibilidades, para (1) determinar os diversos fatores que conduziram ao fracasso: com isso, (2) é possível determinar as responsabilidades; (3) em uma eventual nova tentativa, esses fatores têm que receber mais atenção; finalmente, (4) conseguir determinar as diversas responsabilidades integra o processo de luto e, daí, o de resiliência e amadurecimento

-        Em suma, do ponto de vista estritamente individual, na oposição entre o ideal e o real, o problema que nos conduz a considerar o “como lidar?” é como lidar com as dificuldades e, em particular, com o fracasso

o   A resposta para isso é tão simples de enunciar quanto difícil de executar: preparar-se o máximo possível com antecedência em termos morais (“psicológicos”), intelectuais e práticos e, no caso do fracasso, saber avaliar os fatores que conduziram ao fracasso

o   O entendimento intelectual ajuda na preparação moral prévia e, depois, no caso de fracasso, auxilia na resiliência

-        Como sugerimos no início, os comentários acima apresentam parte da questão; modestamente fizemos observações que seriam um começo de apoio: mas foi apenas um começo

o   Vejamos agora outros aspectos do tema – aspectos que são fundamentais de serem afirmados em conjunto com as observações acima, a fim de lidar-se de maneira adequada (digna, madura, eficiente) com as dificuldades e os fracassos na vida

o   Esses outros aspectos são: (1) aspectos intelectuais e científicos; (2) questões de moralidade; (3) aspectos artísticos

-        Qualquer projeto exige que conheçamos a realidade:

o   O conhecimento da realidade, seja abstrato, seja concreto, é condição fundamental para qualquer atividade e, bem vistas as coisas, para a vida

o   A realidade, nesse caso, consiste principalmente nas condições objetivas do mundo, ou seja, aquelas que não dependem da vontade humana (e que, com freqüência, opõem-se à vontade humana)

§  Para evitar confusões e mal-entendidos: as condições sociológicas gerais e também as morais integram, no presente caso, as condições objetivas

o   Como vimos antes, é necessário conhecer a realidade para podermos determinar as possibilidades de êxito de qualquer projeto e, inversamente, as suas possibilidades de fracasso; com isso, podemos preparar-nos em termos práticos (reunindo os elementos necessários para o sucesso do empreendimento) e em termos morais (ficando de sobreaviso para as dificuldades e, ainda mais, para um eventual fracasso – e, assim, criando uma espécie de “almofada” moral)

o   O conhecimento abstrato da realidade consiste nas leis naturais, isto é, das relações necessárias de sucessão ou coexistência dos fenômenos

§  O conhecimento da realidade (abstrato e concreto) conduz a uma idealização da realidade, basicamente em termos apenas intelectuais: o “ideal”, aí, é uma elaboração intelectual e simplificada da realidade

o   Esse conhecimento tem que estar ligado sempre a uma regra prática de sabedoria, que consiste em determinar o que podemos e o que não podemos fazer; ou, dito de outra forma, o que podemos e o que não podemos mudar

§  Na verdade, a determinação do que podemos e do que não podemos mudar antecede sempre a proposição de qualquer projeto

§  Em relação ao que podemos mudar, seguindo as leis naturais, é necessário avaliar se é moralmente correto; no que se refere ao que não podemos mudar, a única possibilidade é a digna resignação

·         Em outras palavras, a digna submissão (a digna aceitação) é sempre o único caminho possível tendo em vista as leis naturais, seja reconhecendo as possibilidades de atuação, seja reconhecimento a impossibilidade de ação

§  Inversamente, não faz sentido desejar algo que vai contra as leis naturais: desejar algo francamente impossível implica uma vontade caprichosa e o fracasso certo

·         A “resiliência” nesse caso consiste não em retomar o projeto, mas em abandoná-lo e retomar a vida com outros objetivos

·         A maturidade, nesse caso, consiste em reconhecer a inutilidade dos esforços e a necessidade de mudar de objetivos: não há dúvida de que isso pode exigir maiores esforços, que, por sua vez, aumentarão o “grau” de maturidade

-        Também há os vários aspectos relativos à moralidade dos ideais

o   Tudo o que comentamos acima pressupõe que os nossos objetivos são moralmente corretos

o   Mas é claro que a avaliação moral deve sempre ser feita – e, além disso, deve sempre ser feita antes de qualquer outra avaliação

o   A moralidade das ações é sempre dada pelo altruísmo: melhorará o bem-estar? Não prejudicará? Estimulará o altruísmo? Não estimulará o egoísmo?

§  Vale notar que a “bondade”, aí, consiste no altruísmo e que a “maldade” consiste no estímulo direto e único do egoísmo (incluindo o sadismo); não há que falar em “bondade” e “maldade” como se elas existissem por si sós, como abstrações personificadas (ou seja, metafísicas)

o   Os valores e as idéias que são moralmente corretos – ou seja, que estimulam e/ou realizam o altruísmo – podem tornar-se “ideais”, ou seja, concepções (1) abstratas da realidade que (2) indicam os bons caminhos a seguir

§  É importante insistir: não é porque algo é factível que também é moralmente desejável e que, portanto, deve ser feito

o   É igualmente importante lembrar que, no caso de projetos moralmente corretos, com freqüência um fracasso momentâneo não pode impedir a continuidade dos esforços: em outros termos, um fracasso momentâneo não nega nem invalida o ideal

§  Isso se aplica às dificuldades, aos desastres e também às injustiças da vida

§  A palavra “momentâneo” é central aqui: por vezes, um ideal factível não se realiza devido a dificuldades materiais, a dificuldades sociais amplas, a dificuldades políticas; mas cumpre perceber que, se em um determinado momento algo não é possível, em outro momento, e/ou com outros esforços, esse projeto pode vir a realizar-se

o   Ainda no que se refere a moral e à oposição entre o ideal e o real:

§  Como “agimos por afeição”, todas as nossas ações são moralmente motivadas – daí a necessidade de que essa motivação seja altruísta

§  Mas é claro que os sentimentos não dão apenas a partida nas ações: são os sentimentos que nos mantêm atuantes, mesmo (e até principalmente) em face das adversidades

·         Os bons sentimentos de nossos familiares e nossos amigos confortam-nos e apóiam-nos, seja durante as dificuldades, seja no fracasso

·         Assim, é importante lembrar: não existimos no vazio, ou melhor, não existem indivíduos, mas apenas agentes da Humanidade; todas as nossas ações são propostas, elaboradas e levadas a cabo na, pela e para a Humanidade

§  Além dos sentimentos e das idéias, a natureza humana atua por meio dos instintos práticos: a coragem, a prudência e a perseverança

·         A coragem leva-nos a agir; é o impulso para a frente

·         A prudência são os cuidados que tomamos, para evitar problemas (ou problemas excessivos, ou problemas desnecessários, ou problemas inesperados)

·         A perseverança é o que nos mantêm em atividade, ao longo do tempo e a despeito das dificuldades

o   Assim, a resiliência é uma forma de perseverança, em que temos que retomar nossas atividades quaisquer e, se for o caso, retomarmos os esforços das ações que anteriormente fracassaram

-        Há ainda outros aspectos a considerar na oposição entre o ideal e o real; todavia, esses outros aspectos serão somente citados aqui

o   As observações acima se concentram nos indivíduos, nas dificuldades morais que cada um enfrenta ao realizar seus projetos e, em particular, ao fracassar: mas, como Augusto Comte afirmava desde o início de sua carreira e como consagrou na Religião da Humanidade, de real só existe a Humanidade

§  Isso significa que todos os projetos só podem realizar-se pela Humanidade, devido aos inúmeros fatores envolvidos:

·         O altruísmo realiza diretamente a Humanidade

·         Os projetos construtivos (não violentos, não destruidores) desenvolveram-se ao longo da história

·         Da mesma forma, nossas concepções sobre a realidade também se desenvolveram ao longo da história

·         Qualquer projeto implica, sempre, a coletividade, seja nas idéias, seja nas palavras, seja na necessária colaboração de qualquer atividade

·         Por fim – e de maneira central para esta prédica –, no caso de maiores dificuldades e/ou de fracasso, o amparo é sempre dado pela Humanidade, seja com o afeto que nossos amigos e familiares dão, seja com as idéias e os valores que nos confortam

o   Como vimos e como todos sabemos, a palavra “ideal” apresenta uma importante ambigüidade:

§  Ela pode ser uma concepção abstrata da realidade e/ou pode ser u’a meta considerada correta

·         Temos aí as partes que cabem ao cérebro e ao coração

·         Vale lembrarmos a bela frase de Vauvenargues: “os grandes pensamentos provêm do coração”

§  Além disso, há o espaço para a imaginação e, portanto, para as artes

·         Não podemos esquecer que as artes idealizam a realidade, ou seja, descrevem um cenário que simplifica o mundo e que, ao mesmo tempo, é desejável

·         As artes, então, ajudam a inspirar-nos e a ter coragem; enquanto enfrentamos dificuldades, elas confortam-nos, de modo que apóiam a perseverança; por fim, no caso do fracasso, é fora de dúvida a importância que elas apresentam para o conforto moral, para a resiliência e para o nosso amadurecimento

o   O papel da idealização – considerando todos os aspectos indicados acima, incluindo suas relações com a realidade – é resumido, sintetizado e/ou pressuposto na primeira lei da filosofia primeira, cuja importância é tão grande que é chamada de “lei-mãe”: “Formar a hipótese mais simples e mais simpática que comporta o conjunto dos dados a representar”        

13 abril 2024

"Profilaxia da neurose (Imitação de Cristo para humanistas)": sumário

Apresentamos abaixo o sumário do livro Profilaxia da neurose (Imitação de Cristo para humanistas), elaborado pelo psiquiatra e psicólogo positivista Paulo de Tarso Monte Serrat em 1980 e publicado em 1983.

Essa versão, que, devido a diversos motivos, é um enorme desafio para qualquer pessoa que o empreenda, foi recomendada por Augusto Comte como fonte de reflexões morais. O livro original, A imitação de Cristo, foi escrita por Tomás de Kempis (1380-1472) em 1424. Ele é composto por quatro livros:

- Livro I: Avisos úteis à vida espiritual (25 capítulos)

- Livro II: Avisos concernentes à vida interior (12 capítulos)

- Livro III: Da consolação interior (59 capítulos)

- Livro IV: Exortação à vida interior (18 capítulos)

Desses quatro livros, o dr. Paulo de Tarso elaborou a versão humanista dos dois primeiros.




LIVRO I – AVISOS ÚTEIS PARA A VIDA ESPIRITUAL

Capítulo I – Da imitação dos santos e do desapego das vaidades

Capítulo II – Do humilde sentir de si mesmo

Capítulo III – Dos ensinamentos da verdade

Capítulo IV – Da prudência nas ações  

Capítulo V – A verdade como mensagem da Humanidade é superior ao indivíduo que a proclama

Capítulo VI – Das afeições desordenadas

Capítulo VII – Como se deve fugir à vã esperança e presunção

Capítulo VIII – Como se deve evitar a excessiva intimidade

Capítulo IX – Da obediência e submissão

Capítulo X – Como devemos evitar as palavras inúteis

Capítulo XI – Como devemos adquirir a paz e desejar o progresso na virtude

Capítulo XII – Do proveito das adversidades

Capítulo XIII – Da resistência às tentações

Capítulo XIV – Como se deve evitar o julgamento apressado

Capítulo XV – Das obras que procedem do altruísmo

Capítulo XVI – Como aturar os defeitos alheios

Capítulo XVII – Da vida religiosa

Capítulo XVIII – Dos exemplos dos santos

Capítulo XIX – Dos exercícios da pessoa sociável

Capítulo XX – Do amor, da solidão e do silêncio

Capítulo XXI – Da humildade do coração

Capítulo XXII – Da consideração da miséria humana

Capítulo XXIII – Da meditação da morte

Capítulo XXIV – Do julgamento e dos sofrimentos das pessoas anti-sociais

Capítulo XXV – Da fervorosa emenda de toda a nossa vida

 

LIVRO II – EXORTAÇÕES À VIDA INTERIOR

Capítulo I – Da vida interior

Capítulo II – Da humilde submissão aos valores da Humanidade

Capítulo III – Do homem bom e pacífico

Capítulo IV – Da pureza da mente e da intenção reta

Capítulo V – Da consideração de si mesmo

Capítulo VI – Da alegria da boa consciência

Capítulo VII – Do amor à Humanidade sobre todas as coisas

Capítulo VIII – Da amizade familiar com os bons

Capítulo IX – Da privação de todo conforto

Capítulo X – Do agradecimento pelos benefícios da Humanidade

Capítulo XI – Dos poucos que aceitam o sofrimento como fonte maturadora

Capítulo XII – O verdadeiro caminho da dedicação

09 abril 2024

O que é o patriciado?

No dia 16 de Arquimedes de 170 (9.4.2024) fizemos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua décima conferência, dedicada ao regime privado.

Na parte do sermão, abordamos o conceito de "patriciado" no âmbito do Positivismo.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://encr.pw/CCHo6) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/HEMrz). O sermão começou aos 51 min 11 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral do sermão encontram-se reproduzidas abaixo.

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O que é o patriciado? 

-        Há algumas semanas um novo adepto do Positivismo, que se tem mostrado interessado em aspectos práticos da doutrina, pediu que eu abordasse a concepção de “patriciado”: daí esta prédica

o   Como veremos, a teoria do patriciado é simples em seus termos gerais, embora guarde relações com muitos aspectos da Religião da Humanidade

o   Dessa forma, diversos aspectos desta exposição serão comentados inicialmente em um momento e serão concluídos em outro momento: não se trata de fragmentar o raciocínio, mas de juntar aos poucos os vários elementos para que eles constituam um todo orgânico

-        O conceito de “patriciado” acaba surgindo no cruzamento de diversas teorias específicas de Augusto Comte

o   Essas teorias são: a teoria religiosa e da regulação moral da sociedade (é a teoria do sacerdócio); a teoria da política positiva (é a sociocracia e os poderes Temporal e Espiritual); a teoria das atividades práticas (a teoria da indústria)

o   Como sabemos, as teorias do sacerdócio e da sociocracia foram expostas e desenvolvidas no Sistema de política positiva e nas obras assessórias (Catecismo positivista, Apelo aos conservadores, correspondência)

o   Mas a teoria da indústria foi apenas projetada: ela seria exposta e desenvolvida no tomo IV da Síntese subjetiva, previsto para a década de 1860

o   De qualquer maneira, como ficará evidente ao longo desta exposição e como uma decorrência natural das teorias do sacerdócio e da sociocracia, a proposta positivista do patriciado não faz nenhum sentido fora dos quadros da Religião da Humanidade e da respectiva regeneração por via religiosa

§  Em particular, isso significa (1) que o patriciado não é um conceito apenas político-econômico e (2) que o patriciado não é uma palavra diferente para tratar da burguesia (e justificá-la)

-        Indo diretamente ao ponto: os patrícios são os líderes, ou melhor, os chefes econômicos

o   O nome “patrício” vem da Antigüidade romana, homenageando os líderes políticos e chefes das famílias da República romana

§  Essa homenagem indica o quanto Augusto Comte respeitava e valorizava os romanos

§  Da mesma forma, a palavra “proletariado”, também adotada por Augusto Comte, tem origem nos plebeus romanos

o   Os patrícios – cujo conjunto constitui o patriciado – representam a providência material da Humanidade

o   Os patrícios são os responsáveis pela produção material da Humanidade, decidindo o que deve ser produzido, em qual quantidade, com qual tecnologia, empregando quantos trabalhadores, visando a qual mercado específico etc.

§  Augusto Comte determina quatro tipos gerais de atividades produtivas: a agricultura, a indústria, o comércio e, estimulando cada um deles, os bancos

o   Os empreendimentos devem limitar-se pela capacidade de responsabilizarem-se pessoalmente por suas atividades

§  Augusto Comte não chegou a desenvolver estes aspectos, mas parece-nos que a responsabilização deve ser avaliada por seus efeitos concretos, o que abrange a geração de empregos, os salários pagos, as condições de trabalho e a qualidade e a quantidade da produção

·         A máxima prática – “a riqueza é social em sua origem e deve ter uma destinação social” – impõe-se com toda a clareza aqui

o   Vale lembrar que essa máxima é positivista e que só o Positivismo elaborou-a

·         Há espaço para o lucro, mas este deve ser entendido como a condição para o crescimento econômico e para os investimentos produtivos; o lucro não pode ser visto como um fim em si mesmo nem como a satisfação da ganância

o   Nesse sentido, o lucro não é único nem, de longe, é o principal parâmetro para avaliar o “sucesso” de algum empreendimento

o   O sucesso de um empreendimento é a sua capacidade de satisfazer as necessidades sociais: como já indicamos, geração de empregos de qualidade, produção de produtos úteis e de qualidade

§  Além disso, no aspecto da responsabilização pessoal há um aspecto de conhecimento pessoal entre o patrão e os empregados, com relações afetivas desenvolvendo-se entre eles

·         Não apenas se trata de relações afetivas (altruístas) entre patrão e empregados, mas também do desenvolvimento de verdadeira confiança mútua

o   Como o capital é social em origem e destinação, os patrícios devem ser vistos – e, acima de tudo, eles devem ver a si mesmos – como os administradores do capital material humano em favor da sociedade, não como “donos” da riqueza

§  A administração do capital é responsabilidade pessoal intransferível de cada patrício

§  Como gestores, eles devem ter a capacidade para isso, ou seja, eles devem ter poderes para isso

·         Suas amplas (ou melhor, suas pesadas) responsabilidades exigem que eles tenham amplos poderes

§  Mais do que outros, os patrícios devem entender e aplicar a noção de deveres mútuos

·         Todos têm deveres para com todos; mas, dependendo da situação de cada um, alguns têm maiores deveres que outros: no caso dos patrícios, seus deveres são realmente maiores que os dos demais

-        A atuação dos patrícios pode, e deve, ser contraposta à atuação das outras forças sociais:

o   Em relação ao proletariado, os patrícios são a força concentrada; o proletariado é a força dispersa

§  Augusto Comte lembra que o proletariado tem poder por meio da união; já os patrícios são poderosos devido aos meios de que dispõem – e, por isso, seus desvios são muito mais graves

o   Em relação ao sacerdócio, os patrícios representam o poder temporal; o sacerdócio é o poder espiritual

o   Em relação às mulheres, os patrícios representam a força física; as mulheres constituem o aconselhamento moral

-        Os patrícios são os servidores da Humanidade mais diretamente expostos ao egoísmo individualista e às perspectivas de detalhe

o   Os patrícios são os responsáveis pela conservação, pela reprodução e pelo aumento das riquezas materiais

§  As riquezas materiais são temporárias, no sentido de que, com o passar do tempo, todas elas degradam-se (é claro que algumas degradam-se mais rapidamente que outras); da mesma forma, há muitos tipos de riquezas materiais e os resultados de uma atividade são os insumos de outras atividades: o resultado desses aspectos é que são necessários muitos chefes práticos para muitas atividades contínuas

§  Essas atividades são egoístas e particularistas por si sós

o   Assim, os patrícios são os mais expostos às piores condições mentais e morais: embora sacerdotes, proletários e mulheres corram determinados riscos morais, intelectuais e práticos, conforme suas situações e suas atividades, o fato é que são os patrícios os que mais se sujeitam ao egoísmo

§  A conseqüência disso é que os chefes práticos são aqueles que mais dificilmente aceitaram a Religião da Humanidade e sua disciplina moral

§  Essa maior dificuldade, ou melhor, essa maior resistência (que não é necessariamente passiva) implica até mesmo conflitos entre os chefes práticos e as demais forças sociais (orientadas pelo sacerdócio)

·         De qualquer maneira, importa lembrar: o poder Temporal pertence aos chefes práticos; caso as outras forças sociais (sacerdotes, proletariado, mulheres) assumam o poder Temporal, essas outras forças necessariamente se degradarão

-        Os marxistas, com seu desprezo geral por tudo que não é marxista, consideram que o conceito positivista de “patriciado” é uma forma diferente de falar “burguesia”

o   Evidentemente, essa forma de pensar dos marxistas está errada e consiste em um preconceito desprezível, que em todos os sentidos só piora as coisas

o   Esse preconceito marxista é um preconceito e não é aceitável; entretanto, de uma forma bastante oblíqua, podemos considerar que esse preconceito marxista ajuda a entender o valor do patriciado: o patriciado consiste nos chefes práticos que não são burgueses

o   Ao contrário do que os preconceitos marxistas difundiram, os próprios marxistas não têm o monopólio das concepções críticas sobre a burguesia: Augusto Comte era extremamente severo contra a burguesia, entendendo-a como mesquinha, egoísta, frívola, oportunista, dinheirista

§  Além de criticar a burguesia, Augusto Comte também criticava a “burguesocracia” – o que deveria encerrar toda e qualquer discussão a respeito do suposto caráter “burguês” do Positivismo

§  Frederic Harrison – que, aliás, como muitos outros positivistas no mundo todo, na Inglaterra fundou sindicados e confederações de sindicados – punha-se contra a “plutonomia”, isto é, contra a regulação social estipulada pelos ricos[1]

o   Considerando os problemas morais e práticos a que os patrícios estão expostos, uma forma bastante direta de evidenciar o grau de difusão do Positivismo, de aceitação da Religião da Humanidade e de implantação da sociocracia é verificar quantos burgueses tornaram-se patrícios e, de qualquer maneira, quantos patrícios há na sociedade

§  Inversamente, pode-se determinar o quanto uma sociedade está distante da sociocracia por meio da rejeição dos chefes práticos dos ideais sociocráticos e do patriciado

-        Embora evidentemente fosse contra os conflitos, Augusto Comte reconhecia um valor prático na chamada “luta de classes”

o   Para Augusto Comte a luta de classes não tem as características que os marxistas definem para ela; ou seja, para o Positivismo, a luta de classes não é um ideal moral-social; não é a força motora da história; não é a condição para o fim das “contradições sociais”; não pode nunca assumir o aspecto de guerra de classes

§  Vale notar que todos os elementos da noção marxista de “luta de classes” distorcem o entendimento da realidade e pioram muito os problemas sociais

o   Rejeitado todo o conteúdo revolucionário, destruidor e violento da luta de classes, o valor que Augusto Comte percebia nela era, por um lado, o de evidenciar as necessidades do proletariado e, por outro lado, evidenciar a necessidade de regulação social e moral das relações sociais

-        Passando para o âmbito propriamente político, o poder Temporal deve ser chefiado por patrícios

o   Esse aspecto é decorrente do caráter industrial das sociedades positivas: o poder cabe a quem realmente é o responsável pelas principais atividades sociais (o sacerdócio nas teocracias, os chefes militares na Antigüidade e na Idade Média)

o   O poder Temporal é mais restrito que o poder Espiritual, mas, de qualquer maneira, ele não pode ser ocupado por pessoas concentradas em seus egoísmos

§  A noção de que os patrícios correspondem aos chefes práticos regenerados pela Religião da Humanidade já indica alguns de seus atributos

§  Ainda assim, as atividades e as exigências políticas são diferentes das econômicas: isso Augusto Comte não chegou a tratar

§  Não deixa de ser notável que, no calendário positivista, exista um mês para a política moderna (Frederico, o duodécimo mês), com indivíduos com atividades claramente discerníveis, mas que o mês da indústria moderna (Gutenberg, o nono mês) não haja propriamente líderes, no sentido do patriciado

§  De qualquer maneira, a exigência de que os chefes políticos tenham perspectivas gerais e sejam efetivamente dotados de um sentimento social levou Augusto Comte a recomendar que, extraordinariamente, o poder Temporal seja ocupado por um proletário em vez de por patrícios

-        Por fim: com a idade de 63 anos deve ocorrer a aposentadoria, por meio do sacramento do retiro: Augusto Comte recomendava que os patrícios retirados constituíssem uma corporação – por mais informal que fosse – da “cavalaria patrícia”, dedicada a afirmar e difundir os valores e as práticas da Religião da Humanidade entre os patrícios atuantes e também a corrigir injustiças e desvios

-        Em suma:

o   Os patrícios consistem nos chefes práticos (“empreendedores econômicos”) regenerados pela Religião da Humanidade

§  Essa “regeneração” consiste na aceitação e, mais ainda, na aplicação dos parâmetros positivistas

·         Em um sentido afirmativo, esses parâmetros são a responsabilidade pessoal por suas ações e decisões; a preocupação com o bem comum; o entendimento de que o capital é social em sua origem e destinação e que os chefes práticos são gestores da riqueza, não seus donos absolutos

·         Em um sentido negativo, esses parâmetros são a rejeição do comportamento mesquinho, egoísta, frívolo próprio à burguesia e à burguesocracia



[1] Citamos Harrison porque há alguns anos um artigo de sua autoria foi recuperado por um antropólogo francês (disponível aqui: https://www.cairn.info/revue-du-mauss-2014-1-page-309.htm&wt.src=pdf); mas é claro que não foi apenas ele que se manifestou contra a burguesia e a burguesocracia e, mais importante que isso, que se manifestaram a favor da fraternidade e da sociocracia. Um pouco ao acaso, podemos citar os seguintes nomes: os irmãos Lagarrigues no Chile; Fabien Magnin e seus amigos proletários na França; ainda na França, o sindicalista e criador de uma confederação sindical Auguste Keufer; evidentemente, também Miguel Lemos, Teixeira Mendes e os positivistas ortodoxos brasileiros.