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03 julho 2020

Positivismo, teorias da conspiração e covid-19



No Brasil, a despeito das crescentes taxas de infecção e de morte pela covid-19, ainda há gente que nega a realidade do problema e, ao mesmo tempo, atribui as medidas de isolamento social e uso de máscara facial a mitos como os “comunistas” e o “globalismo”, estejam eles dispersos no Brasil por meio do “marxismo cultural”, estejam eles concentrados em malvadas instituições como a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Essa insistência é a face afirmativa de uma evidente teoria da conspiração: os problemas sociais e políticos ocorrem não devido à dinâmica da realidade, que em grandes linhas é rebelde ao controle humano, mas, justamente ao contrário, eles devem-se à ação intencional e coordenada de alguns poucos indivíduos, localizados em agências-chave e que, por isso, conseguem controlar a sociedade (e até o meio ambiente) como se possuíssem barbantes que controlam títeres. Aliás, nem é necessário que o grupo dos “poderosos” e “dominadores” ocupe de fato postos-chave em órgãos-chave; é até melhor que esses “poderosos” fiquem ocultos e que atuem nas sombras, às escondidas, de tal sorte que os ocupantes de cargos importantes seriam, eles mesmos, meros joguetes nas mãos desses poderosos. Os meios utilizados pelos “poderosos” para controlar seus títeres seriam igualmente secretos e ignorados pelo grande público; podemos apenas supor que devem incluir a subordinação servil, canina, dos dignitários aos “poderosos”; a constituição de redes secretas de amizades e compadrio, que atuariam como canais insuspeitos da transmissão de ordens; a chantagem; a corrupção.

Além disso, as teorias da conspiração levam até as últimas consequências a suspeita sistemática e total contra todos os aspectos públicos e visíveis da sociedade e da política, considerando que os argumentos expressos em discursos e documentos públicos são falsos ou, pelo menos, que eles simplesmente correspondem a idéias gerais utilizadas para o controle e a manipulação do que ingenuamente se chamaria de “grande público”. As “verdadeiras” idéias não seriam públicas e, por isso mesmo, sendo reservadas ao pequeno e secreto grupo dos “verdadeiros” “poderosos”, seriam egoístas, dissimuladoras, maléficas – em uma palavra, seriam “malvadas”.

Os adeptos das teorias da conspiração caracterizam-se, portanto, por uma dúvida não “sistemática” (como a preconizada pelo grande René Descartes), mas por uma dúvida patológica: nada é o que se diz, tudo é falso e manipulado. O curioso é que as únicas pessoas que “sabem” que tudo é assim são alguns indivíduos que, heroicamente, por acaso têm esse conhecimento todo. Não sou psicólogo, mas com certeza os adeptos das teorias da conspiração devem caracterizar-se por algum desvio de caráter, além de, evidentemente, desvios cognitivos.

O problema é que os adeptos das teorias da conspiração de verdade não “sabem” de nada; no máximo eles têm apenas um violento e invencível ceticismo generalizado. Por que eles não “sabem” de nada? Porque, além das suspeitas sistemáticas e das acusações de manipulação e conspiração, eles não são capazes de afirmar nada sobre nada. Seja devido à sua estrutura moral-intelectual (que rejeita a concepção e a prática da confiança generalizada, própria aos indivíduos sãos), seja devido à constituição específica de suas crenças, os adeptos das teorias da conspiração são incapazes de apresentar provas e fatos de suas afirmações. Em outras palavras, eles são sempre e necessariamente incapazes de ter, ou de produzir, conhecimentos científicos; eles têm apenas puras crenças.

Como há mais de 200 anos dizia Augusto Comte – o fundador da Sociologia, da Moral Positiva, da História das Ciências e da Religião da Humanidade –, a política moderna tem que ser uma política “positiva”, ou uma política “científica”. Com isso ele não queria dizer que a política deve ser feita, por exemplo, a partir de programas de computador, ou que os indivíduos devem agir como autômatos; bem ao contrário, a concepção positivista de política científica consiste em a política basear-se nos conhecimentos positivos (científicos), mas não se reduzir a eles; em outras palavras, realizando com clareza meridiana a separação entre a teoria (científica) e a prática (político-social). Nesses termos, as investigações sociais são distintas da ação política e cada uma dessas atividades tem suas próprias particularidades, que devem ser respeitadas mutuamente.

O objetivo da política positiva é abandonar a situação prévia à fundação da Sociologia, em que se desenvolvia o que Augusto Comte chamava de “política empírica”. “Empírico”, nessa expressão particular, não significa o conhecimento factual e teórico da realidade, mas a ação que se realiza às cegas, sem parâmetros sociais, políticos, técnicos e morais para guiá-la, mas apenas o entrechoque das paixões e dos interesses dos vários grupos sociais. A roupagem contemporânea da necessária política científica afirmada por Augusto Comte consiste largamente no que se chama de “políticas públicas”, que são ações realizadas e/ou coordenadas pelo Estado, com ou sem apoio ou auxílio da sociedade civil, com vistas a orientar o desenvolvimento social em direções julgadas necessárias e corretas. Essas políticas públicas, além disso, caracterizam-se por outro aspecto estabelecido pelo fundador do Positivismo: a publicidade de todas as decisões, a que se associa a moralidade delas.

A proposta de política científica do Positivismo, portanto, rejeita liminarmente as teorias conspiratórias – seja porque exige o conhecimento da realidade cósmica, social e humana, seja porque ela deve ser feitas às claras (com a indicação expressa de quem são os seus responsáveis, quais as metas, quais os procedimentos adotados etc.), seja porque ela baseia-se sempre no assentimento e na confiança públicos.

Feitas essas considerações todas, podemos voltar às fatigantes suspeitas sistemáticas das teorias conspiratórias contra os procedimentos de isolamento social recomendadas para o combate à covid-19. Os adeptos das teorias da conspiração afirmam que a covid-19 não é tão perigosa quanto parece; que há um falseamento nos dados de infecção e de morte; que as medidas de isolamento social, de restrição de movimentação nos espaços públicos e de uso das máscaras faciais são no mínimo exageradas (quando não “totalitárias”); que todos esses erros e exageros são propositalmente difundidos pelos “comunistas”; que essas medidas estão a serviço do “globalismo”; que esse “globalismo” seria a versão para consumo internacional do que o “marxismo cultural” seria a versão para consumo interno; que instituições como a OMS são agentes do “comunismo globalista”.

Como observamos acima, todas essas suspeitas baseiam-se na rejeição sistemática da confiança pública. Entretanto, deixando de lado o aspecto moral, ou melhor, o aspecto psicopatológico dessa disposição, cabe avaliar se elas correspondem à realidade; em outras palavras, é necessário transformar as suspeitas (ou melhor, as certezas) acima em hipóteses de pesquisa. Os instrumentos intelectuais e físicos para realizar tais investigações existem há muito, muito tempo e a cada dia que passa são mais desenvolvidos e refinados; eles envolvem investigações biológicas, clínicas e epidemiológicas, por um lado, e históricas, antropológicas, políticas e sociológicas, por outro lado.

Vejamos:

-        quais as taxas “reais” de infecção do coronavírus-2 e de letalidade da covid-19?

-        Se os dados “reais” de infecção e letalidade são falseados, quem realiza tal falseamento e com quais objetivos?

-        Se os dados “reais” de infecção e letalidade são falseados, quais são os dados “reais” e como os obter?

-        Se os procedimentos recomendados para o combate à covid-19 são inadequados, quais seriam as alternativas? Adicionalmente: com base em quais estudos essas alternativas foram propostas e testadas?

-        Se os procedimentos recomendados para o combate à covid-19 são “totalitários”, quais seriam os procedimentos de combate que respeitariam as liberdades? Adicionalmente: como é que os países efetivamente totalitários estão lidando com a covid-19? Como é que os países não-totalitários estão lidando com a covid-19?

-        Se os problemas anteriores são difundidos pelos “comunistas”, quem seriam esses “comunistas”? Por quais meios? Com quais objetivos? Quais os seus valores? Onde eles reúnem-se? Desde quando o “comunismo” está em operação?

-        Se os problemas anteriores estão a serviço do “globalismo”: qual a relação do “globalismo” com o “comunismo”? Quem seriam os defensores e os promotores do “globalismo”? Desde quando o “globalismo” está em operação? Por que o “globalismo” seria a versão internacional do que o “marxismo cultural” seria a versão nacional? Como o “globalismo” é capaz de ser “comunista” mas enganar todos, urbi et orbi, travestindo-se de “capitalista”? Como e por que os “verdadeiros” “capitalistas” deixam-se enganar pelo “globalismo”?

-        Se as instituições internacionais estão a serviço do “globalismo”: por que somente a OMS aparece como “globalista”? Quem são, efetivamente, os aderentes e os promotores do globalismo nas instituições internacionais, começando pela OMS mas incluindo necessariamente aí a ONU, a OEA, o FMI, o BIRD, o BID, a OTAN, a OPEP etc.?

-        Por fim, mas de maneira central: se tudo isso é apenas fachada para os “verdadeiros” poderosos: nominalmente, quem são esses “verdadeiros” poderosos? Por quais meios eles agem? Quais os seus interesses? Como se dá a relação entre os “verdadeiros” poderosos e os títeres que aparecem em público?

-        Se os “verdadeiros” poderosos não se apresentam em público, como é que os adeptos das teorias conspiracionistas chegaram a conhecê-los e a seus projetos?

-        Se os “verdadeiros” poderosos não se apresentam em público e controlam os agentes públicos como títeres, qual a efetiva relevância desses agentes públicos? Não seriam tais agentes públicos, mesmo os adeptos das teorias conspiratórias, simples títeres dos “verdadeiros” poderosos?

A investigação das hipóteses acima não é algo simples nem fácil; por isso, muitas respostas podem ser obtidas por meios indiretos (por meio de variáveis proxy), o que torna as respostas menos satisfatórias e, portanto, deveria tornar as próprias assunções conspiracionistas mais suaves. Mas o que importa notar, de qualquer maneira, é que ao transformar as assunções conspiracionistas em hipóteses a serem testadas, a completa vagueza das conspirações tem que, necessariamente, ceder lugar para descrições concretas e feitas com objetividade, em todo o universo sob análise (isto é, todos os países do mundo), a partir da aplicação coerente e sistemática de procedimentos que sejam sujeitos à avaliação pública.

Por outro lado, embora não seja tão evidente à primeira vista, o fato é que a investigação das hipóteses acima constitui apenas o passo inicial da pesquisa; o passo seguinte consiste em que se deve avaliar se a realidade criticada pelos conspiracionistas seria de fato inferior ao que eles subrepticiamente defendem em seu lugar; em outras palavras, trata-se de uma avaliação moral das críticas dos conspiracionistas. Para ficarmos em um exemplo simples, fácil e fundamental: se o “globalismo” é prejudicial, por acaso a revalorização do nacionalismo unilateralista seria benéfica? A chamada globalização, em curso acelerado desde os anos 1990, aumentou a interdependência de todos os países uns com os outros: mesmo que fosse possível reverter esse processo (o que dificilmente seria factível), será que ele beneficiaria as pessoas? Problemas transnacionais como as mudanças climáticas, as migrações internacionais, os fluxos financeiros especulativos e – é impossível não nos referirmos a isto – a pandemia podem efetivamente ser tratados isoladamente pelas centenas de países do mundo, cada qual com seus recursos limitados, com a sobreposição brutal de atividades e a total falta de coordenação? Além disso, é claro que também fica em aberto a questão sobre quem seria beneficiado pela reversão do mundo integrado à colcha de retalhos nacionalista: por certo que em um primeiro momento alguns países seriam bastante beneficiados (em particular os grandes países, isto é, as nações mais ricas), mas esse benefício com certeza declinaria com o passar do tempo e, no final das contas, o conjunto da Humanidade sairia perdendo, devido à difusão da miséria e do sofrimento. Questões e raciocínios semelhantes podem e devem ser aplicados a todas as suspeições conspiracionistas indicadas acima; os seus resultados morais devem ser igualmente desastrosos.

Estas longas reflexões servem apenas para evidenciar o quanto as teorias da conspiração são intelectual e moralmente defeituosas; na verdade, elas são verdadeiras patologias morais. Enquanto escrevemos, o mundo está literalmente em meio à pandemia de covid-19; as teorias conspiratórias não somente não fazem nada para ajudar a combater essa pandemia, como pioram ativamente o ambiente social e moral e minam, também ativamente, os esforços envidados mundo afora para resolver essa gravíssima crise.

Augusto Comte definia a palavra “positivo” como tendo sete sentidos: real, útil, certo, preciso, relativo, orgânico e simpático; o conjunto desses atributos constitui o verdadeiro espírito positivo. Tanto as teorias da conspiração como as crises vinculadas à covid-19 (moral, sanitária, política e econômica) somente podem ser solucionadas com espírito positivo.

24 fevereiro 2020

Hernani Gomes da Costa: "Comentários a 'O momento comtiano'"

Comentários a O momento comtiano – República e Política no Pensamento de Augusto Comte, de Gustavo Biscaia de Lacerda

Hernani Gomes da Costa 

Desejo expressar aqui toda a minha satisfação pela recente leitura que fiz d’O momento comtiano, elaborado pelo meu amigo Gustavo Biscaia de Lacerda (e por ele defendido inicialmente como tese de doutorado há uma década) em 2010.



Se algum valor especial deve-se dar aos comentários de quem por cinco anos realizou as conferências dominicais no Templo da Humanidade (e de quem por 14 anos – desde 1986 até 2000 – envolveu-se nas alegrias e sobretudo nos dissabores daqueles que vieram a ser os últimos anos de vida do movimento positivista no Rio de Janeiro) então, não parecerão deslocados os meus esforços para, de novo tentar sorrir em gratidão àquilo que eu só posso chamar de um verdadeiro ACONTECIMENTO.

Com efeito, por tudo quanto me foi dado compreender do ideário político do positivismo, eu penso que seja a partir dessa obra, que o exame de tal programa alcançou enfim – entre nós e no resto do mundo – sua plena maturidade; com toda a liberdade e responsabilidade que tal maturidade encerra.

Ela alcançará, estou certo, um merecido lugar de destaque junto às seletas produções intelectuais que, embora vindas do meio acadêmico e a ele destinadas, obtiveram pela força irresistível de seu encanto, de sua verdade, de sua utilidade – e mesmo de sua incidental beleza – um destino bem maior que o comportável por aquelas estreitas e, por vezes, tão mesquinhas fronteiras.

Eu diria mesmo que tornou-se hoje IMPOSSÍVEL realizar-se um exame vasto e profundo da TOTALIDADE das concepções políticas do fundador da sociologia[1] sem uma longa estadia em suas páginas. Mais do que uma obra de referência ela se firmará, pois, como uma sorte de crivo para discernir – dentre a nova safra de comentadores do positivismo – os honestos e competentes, dos que não o são. E a julgar pela felicidade com que o autor soube esgotar seu tema, eu acrescentaria que ele conseguiu – decerto sem o desejar e disso suspeitar – não só tornar por muito tempo desnecessárias quaisquer outras produções que no mesmo sentido ainda venham a ser tentadas; quanto – ousaria dizê-lo – permitir ao leitor dispensar-se (se assim o desejar) de um contato direto com a grande obra sociológica de Comte, ao menos para tudo quanto refira-se especificamente aos ideais políticos do positivismo.

Até aqui, os comentários sobre as idéias de Comte padeceram sob o jugo de dois graves estorvos: considerando-se que sua obra capital (A Política Positiva) ainda não existe em português, os pretendentes a comentadores que não dominam seu idioma original (mas que ainda assim insistem em tomar o positivismo como alvo de suas especulações) acabarão cedo ou tarde frente a um dilema. Ou eles necessitarão buscar como fontes primárias, textos que por sua ortodoxia estejam a salvo de qualquer suspeita quanto a não espelharem o mais fielmente os reais pontos de vista de Comte – e então NÃO HAVERÁ ALTERNATIVA senão destilarem – das mais de quinhentas publicações do Apostolado Positivista do Brasil – a quintessência da doutrina; ou, então – se renunciarem a isto – precisarão adentrar, sem muito critério e mesmo sem maiores escrúpulos, num verdadeiro dédalo (por vezes sedutor, diga-se) de sinopses superficiais, condenatórias e truncadas, vindas das mais variadas linhas de pensamento, e de autores que estiveram bem longe de VIVER tudo quanto pretenderam criticar. Perdidos nesse labirinto e embriagados pelos muitos brilhos, matizes e contrastes de tais obras, os estudiosos não disporão de outro meio de se situar, senão guiando seu caminho por entre aquelas ditas “mais consagradas” o que, na verdade, seria o pior que poderiam fazer: longe de constituírem-se no que há de mais seguro sobre a vida e os escritos de Comte, elas costumam representar apenas um farto e desconexo lote de preconceitos e de mal entendidos a partir dos quais seus autores lançam-se a arrojadas extrapolações tanto mais desembaraçadas quanto mais inconsequentes, o que (além das graças naturais de um estilo brilhante) é tudo quanto basta para erguerem-se mais alto que suas congêneres mais modestas e menos desonestas.

Mas antes que me acusem de “vitimizar” o positivismo frente ao julgamento desses intérpretes oficiais do pensamento universal, apresso-me em dizer que tal situação não se restringe às idéias comtianas. Longe disso, confusões dessa natureza parecem ferir em maior ou menor grau a todos os filósofos, muito particularmente aos criadores de grandes sistemas largamente fundamentados em informações históricas e em fatos colhidos das ciências naturais. Assim, por exemplo (e apenas para citar um antagonista – igualmente sistemático – de Comte) eu estou certo de que a recente edição em cinquenta volumes, da obra completa de Marx haverá de deslindar outras tantas distorções semelhantes às ocorridas com o positivismo; distorções que não raro determinaram o pesado fardo de adesões a este (e ao materialismo dialético) por motivos opostos aos de tudo quanto uma e outra destas duas doutrinas sempre se propuseram como mais fundamental; e tendo como implicação direta disto a aproximação maciça a elas, de pessoas que apenas vieram desmentir na prática seus princípios em nome deles, e tanto mais, quanto mais prontificaram-se em louvá-los, justificá-los e aplicá-los à vida. Esta me parece, sobretudo hoje, uma dificuldade grave e generalizada; que inclusive ameaça abalar a estrutura do próprio ensino da filosofia, da história, da sociologia e da psicologia como um todo; dificuldade que tanto mais se aprofunda quanto mais fácil torna-se em aparência a comunicação humana, mediante os recursos que a internet quase nos obriga a utilizar.

Acrescente-se que a opção por comentar uma obra tomando-se por matéria-prima outros comentários (ao invés dos textos do próprio autor) não se deve apenas àqueles inconvenientes citados, mas a certos hábitos intelectuais que, por assim dizer, imperam no mundo acadêmico os quais persistiriam mesmo se todas as facilidades ao acesso dos textos originais lhes fossem oferecidas[2].

Chegamos até a pensar que não se deseja nunca aí, a que nós leitores fiquemos em igualdade de condições com os comentadores; e que, bem ao contrário, eles fazem de tudo para deixar claro o quanto julgam-se dispensados de nos fornecer os mais amplos trechos de suas vítimas, em abono ao que contra elas nos mostram como peças de acusação. E tudo quanto, na falta disso, nos oferecem por magra indenização é apenas uma fastidiosa bibliografia (que a rigor poderia desdobrar-se indefinidamente não nos dando, aliás, segurança alguma de haver sido lida) na qual as obras do autor apenas mereceram, quando muito, o duvidoso privilégio de aí constarem à parte e em primeiro lugar. Eis como é que a leitura de um comentário acadêmico vem se tornando cada vez mais o exercício de uma fé tão ingênua quanto mal investida.

E se completarmos esse quadro com o fato de que a tendência aí é a de só depositar confiança, e a de só creditar imparcialidade a opiniões oferecidas sob uma ótica desfavorável, teremos compreendido como foi que tantos trabalhos sem o menor valor teórico puderam impunemente ganhar fama e mesmo um número maior de edições que a própria obra original que souberam explorar, conquanto apresentassem críticas que um mero cotejo com estas tê-las-ia inutilizado. Tal é (para citar um exemplo típico disso que entre nós se tornou quase um gênero de literatura filosófica) um dos mais detestáveis livrecos já escritos sobre (?) as doutrinas comtianas e que consta de nada menos de dez edições: o volume 72 da coleção Primeiros Passos O que é o Positivismo, de João Ribeiro Jr.

Ora, da mesma forma como procedemos quando nos vemos acusados injustamente (quando então de pronto cobramos pelas devidas comprovações do que nos está sendo imputado) deveríamos também agir requerendo e mesmo EXIGINDO de um comentarista filosófico as provas cabais do que afirma; sob pena de cairmos vítimas (ou de nos entretermos) com calúnias. E que outra evidência maior poderia haver, nesse sentido, que uma boa coleção de trechos do próprio autor cujo pensamento se intenta apresentar? E como não ver como incompleto (para dizer o mínimo) um exame sem o próprio objeto do que é examinado?

No entanto, parece que a lógica torna-se bem outra quando o caso não nos toca diretamente e quando aquelas afirmações gratuitas são de uma natureza mais intelectual que moral: desde que não nos sejam oferecidas no calor das discussões (mas sob a distante e respeitável forma de livros, teses e comentários) e desde que os autores já tenham há muito falecido (como é o caso da maioria daqueles sobre os quais a crítica acadêmica recai) não podendo reivindicar direito algum de resposta, mesmo judicial; então não há limites à covardia, tudo torna-se válido e o crime perfeito. Descortina-se o campo da boataria inteiramente livre e desimpedido como em nenhum outro setor[3].

Eu devi insistir tanto sobre esse único ponto, tendo em vista que uma das diferenças mais flagrantes a quem apenas folheie O momento comtiano é o grande número de citações que o autor faz ao filósofo[4] fora e dentro do texto. Não há praticamente uma só página onde, para nosso conforto e segurança, não sejamos brindados com elas. Ora, se APENAS nesse único bom exemplo – se apenas nessa única lição – pudesse residir todo o legado desta obra, somente isso bastaria para muito elevar-se o nível geral dos textos acadêmicos no Brasil.

Aliás, com a exceção de um trabalho de natureza introdutória – A república positivista– do meu amigo Arthur Virmond de Lacerda; O momento comtiano, insisto, oferece COMO NENHUMA OUTRA obra sobre o ideário político de Comte essa preciosa garantia teórica: a de não haver JAMAIS resvalado em concluir algo que já não estivesse contido na generosa coleção de passagens do filósofo, num constante e tocante escrúpulo a que ambos os autores ativeram-se, a fim de não trair o pensamento de seu mestre comum, aplicando – já à elaboração mesma dos textos – a máxima positivista de que “todo progresso é o desenvolvimento da ordem correspondente”. Ora, são estas constantes citações que revestem – tanto O momento comtiano quanto (o que acabou por se tornar o seu natural prelúdio) A república positivista – dessa autoridade única; impossível, aliás, sob quaisquer outras circunstâncias.

Mas eu não devo limitar-me apenas ao impacto d’O momento comtiano junto ao mundo letrado. Se como exposição geral e teórica ele já se faz oportuno; são, por outro lado, esses nossos tempos nada comtianos que o tornaram, por assim dizer, indispensável. E se a exigência dos espíritos preocupados com os destinos humanos deve incliná-los a uma especial atenção aos grandes quadros de referência concebidos para o entendimento dos fenômenos sociais (e se é, inclusive, por conta dessas angústias, que devemos a invasão por vezes irritante às prateleiras das livrarias, de uma avalanche de todo tipo de obras de discussão político-ideológica) O momento comtiano oferecerá para além daqueles quadros teóricos mais difundidos – mas sempre como consequência da consistente adoção de UM deles – e para além daquelas apreensões e daquele caos de opiniões desencontradas; uma singular, enérgica e otimista resposta frente a urgências práticas de toda sorte.

Com estas páginas, o Brasil acha-se, enfim, munido de um instrumento (quase ia dizendo de uma arma) com a qual tornamo-nos capazes de entrar na arena desses confusos debates, confiantes do sucesso junto à tarefa tornada imperiosa de apresentar o positivismo pelo que ele verdadeiramente é; e COM ISSO desnudar todo o cinismo de um governo que profana as cores e a divisa da bandeira nacional até pervertê-las no seu exato inverso, invocando-as como se estas pudessem representar – ou ter alguma vez representado – uma espécie de subliminar convite à tirania.

Ora, se como eu espero, O momento comtiano alcançar a tempo todo o sucesso que merece (o que dependerá apenas de uma boa difusão) isso determinará inclusive a que esses fascistas vejam-se forçados doravante a combater o positivismo comtiano com uma ferocidade igual – senão maior – àquela com a qual dedicam-se a combater o que confusamente denominam “comunismo”, para maior honra de ambos os sistemas. Nós veremos então, como é que estes mesmos fascistas que tão camaleonicamente travestem-se de verde-e-amarelo e cujos discursos estão sempre tão transbordantes de “ordem e progresso” ver-se-ão forçados – tão logo sintam-se seguros de sua ALIANÇA PELO BRASIL – a arrancar da bandeira aquele lema, em prol de algum malsoante dístico teológico de última hora, ou mesmo de algum versículo bíblico ostensivamente teocrático; coisa que (eu não duvidaria) talvez já conste de um dos secretos itens da pauta desse “novo” partido.

Mas se uma obra tão inocente como O momento comtiano (inocente no sentido de não haver sido concebida para fins de polêmica) pode nos servir de modo tão eficaz como meio de luta, isso é algo a que devemos atribuir antes de tudo à sua natural universalidade. De fato, dentre seus muitos méritos paralelos, está o de nos oferecer a mais completa relação dos erros até hoje já alinhados contra o positivismo. Ora, são exatamente esses erros que, uma vez trazidos à luz e destruídos, desfazem de vez qualquer tentativa ignorante ou malévola de ressuscitar a falsa afinidade e o falso vínculo que se forjou entre o golpe de 1964 e o positivismo. Decerto O momento comtiano haverá de complicar bastante o ofício de todos que ainda imputam ao ideário comtiano o desastre político em que chafurdamos, o qual segundo nos querem fazer crer, não passaria de um híbrido teratológico entre o oportunismo evangélico da criatura que hoje habita o Palácio do Planalto – última dejeção gestada por aquele golpe – com o positivismo, representado iconograficamente pelas cores e pelo lema sociológico inscrito na bandeira nacional.

Assim, O momento comtiano é essa obra por excelência que nos ajudará como povo, a arrancar o véu verde-e-amarelo desse tenebroso personagem e de seu séquito, a fim de revelar quais são as suas verdadeiras cores, que aliás ninguém – talvez, no fundo, nem eles mesmos – saibam.

O momento comtiano auxiliará pois, não só a aprofundarem-se as opiniões dos simpatizantes da doutrina positivista (e dos que desejam estuda-la a sério) como a robustecer os ideais de todos que, fora dela, prezam a justiça histórica, a liberdade de ensino, as liberdades civis e de expressão, a laicidade do estado, a transparência da administração da coisa pública, a defesa das tradições, crenças, cultura e territórios indígenas, o internacionalismo, a fraternidade inter-racial, o congraçamento universal de todas as pátrias em torno da Humanidade (ao invés do “Brasil Acima de Tudo”, simples transposição do Deutschland Über Alles) a igualdade de oportunidades, a condenação do trabalho infantil e juvenil; dentre tantas outras grandes causas – todas, diga-se, tornadas em tempo real, tema de intervenção dos apóstolos positivistas Miguel Lemos e Teixeira Mendes – e todas, agora, sistematicamente afrontadas e ameaçadas pelo atual governo fascista.

Tendo sido vista a importância teórica e prática d’O momento comtiano, cumpre ainda uma última observação antes de comentarmos O momento comtiano capítulo a capítulo.

Será preciso agora tentar compreender as razões e o significado de não haver disposto o Brasil, até aqui, de textos dessa envergadura, embora a carência por algo assim já devesse ter sido sentida há muito. De fato, como entender essa lacuna, decerto involuntária, que acabou por se tornar desde a morte de Teixeira Mendes em 1927, um longo mutismo?

Penso que seria preciso ir buscar as raízes de tal fenômeno no próprio perfil psicológico de uma organização religiosa, e nas dificuldades especiais que estas encontram diante do NOVO, ou mesmo do simplesmente DIFERENTE.

Lembremo-nos que nem Miguel Lemos nem Teixeira Mendes desejaram realizar nada além de simples comentários episódicos sobre a doutrina que professavam. Tudo quanto propuseram-se a oferecer por escrito, resumiu-se a tentativas de aplicá-la (sem criticá-la ou mesmo aperfeiçoá-la) como articulistas atentos que eram da realidade nacional; ilustrando-a com fatos de seu próprio tempo e lugar considerados como de maior peso e repercussão social e política.

Outrossim, o que eles desejaram ACIMA DE TUDO com isso, foi estimular a que seus leitores voltassem suas atenções PARA A OBRA DE COMTE; obra que então, diga-se, ainda conseguia corresponder a algo mais legível do que hoje, quer devido às peculiaridades do estilo do filósofo (tornado cada vez mais distante daquele que acabou prevalecendo) quer à então maior popularidade da língua francesa entre nós.

Foi assim que – bem ou mal a propósito – os apóstolos decidiram-se POR PRINCÍPIO a evitar audaciosas expedições teóricas, na forma de longas TESES ou TRATADOS; coisa que seria, segundo criam, a usurpação de um trabalho genuinamente reservado aos efetivos críticos e aperfeiçoadores da doutrina (os sacerdotes da Humanidade). Duas únicas exceções a isso foram a Filosofia Química e as Últimas Concepções de Augusto Comte, ambas de autoria de Teixeira Mendes, correspondendo às duas únicas ocasiões em que optou-se por aquilo que, tornado frequente, teria de fato correspondido a uma verdadeira “tentação” a ser religiosamente evitada... Tentação a qual o meu amigo Gustavo teve o bom senso de sucumbir...

Assim quando os apóstolos faleceram, tudo quanto restou à Igreja além do vazio pela perda de dois dedicadíssimos propagadores, foi de um lado, uma tentativa canhestra de manter aquela tradição em apenas compor pequenos folhetos de ocasião e, de outro, uma espécie de preconceito contra quem sonhasse mais alto: “se NEM MESMO os apóstolos julgaram-se capazes de escrever tratados sociológicos... que diremos nós”...

Mas apesar de todo o virulento contágio com o qual aqueles limites auto impostos por Lemos e Mendes acabaram por involuntariamente paralisar a produção teórica de todo o grêmio da igreja, pode-se dizer que há mais aparência que verdade na afirmação de que jamais houve um tratado sociológico positivista entre nós: de fato, se rastrearmos com paciência o conjunto daquela vasta coleção apostólica decerto reaveremos (e mesmo recomporemos) a totalidade das teorias políticas do positivismo, representadas de pleno, e em seu mais puro estado; coisa que, porém, não se obterá jamais a não ser como o prêmio de contínuos, complicados e demorados esforços; aqueles mesmos, diga-se, que o PRIMEIRO TRATADO BRASILEIRO DE SOCIOLOCIA POSITIVA, o nosso MO(NU)MENTO COMTIANO vem hoje (afinal!) tornar inúteis...

Isto posto, passemos agora ao exame detido de cada um de seus capítulos.

(Continua.)



[1] Há uma crítica renitente, injusta e no fundo tola segundo a qual Comte não teria fundado a Sociologia porque não teria feito pesquisas sociológicas... evidentemente, para nós, isso é tolo, mas o que está subjacente é que Comte não teria feito pesquisa “com pranchetinha”, surveys. Ora, bastaria que se lesse os volumes 4 a 6 do Sistema de filosofia positiva ou 2 e 3 do Sistema de política positiva para saber-se o quanto isso é tolo; mas, ainda assim, esse preconceito existe e é largamente difundido. Uma caracterização (sem maiores esclarecimentos) de Comte como o criador de um sistema “abstrato” subrepticiamente pareceria apoiar essa tolice.

[2] Entre esses hábitos temos o excessivo espírito de detalhe e a cisão entre “científico” e “empírico”, de um lado, e o “filosófico” e “abstrato”, de outro. Ora, em Comte científico e empírico andam de mãos dadas com o filosófico e o abstrato, sem que seu sistema recaia em um desprezível “empiricismo”. Essa é, aliás, uma das suas principais características que o distanciam do academicismo e o tornam tão estranho aos hábitos acadêmicos. Quanto ao excessivo espírito de detalhe, vale notar que a Sociologia de Comte é a ciência geral da sociedade; as divisões acadêmicas atuais, tão sofregamente buscadas, entre Sociologia da Religião, da Política, Política, da Linguagem, histórica, institucional etc. etc. etc., além da Antropologia (vista como ciência à parte da Sociologia!) e da Ciência Política (vista como se tivesse existência autônoma em relação à Sociologia!) – todas essas divisões são vistas exatamente como divisões, em que o espírito analítico desenvolve-se sem freios e em que o caráter ao mesmo tempo social e histórico do ser humano perde-se radicalmente. A falta de eficácia social da Sociologia, entendida como ciência geral da sociedade, deve-se, aliás, em larga medida à sua fragmentação, à ciosa divisão acadêmica em dezenas de especializações. Desenvolvida por esse mesmo espírito analítico encontra-se também a Ciência Política cindida em “Ciência Política”, destinada à política interna, e “Relações Internacionais”, dedicada à política internacional. Aí é necessário criar modelos que consigam restabelecer a unidade da política e da sociedade, entre os âmbitos interno e externo. Ora, isso foi exatamente essa cisão o que Comte procurou evitar.

[3] Começamos mesmo a ver hoje, no cenário das discussões políticas, o reflexo direto de tal situação. Na prática a boataria filosófica e seus verdadeiros institutos para a produção e desenvolvimento de fofocas oficiais tornaram-se hoje um problema insolúvel. O contra-ataque a essas forças tão rápidas e numerosas exigiria não só um contingente semelhante de defensores, como o uso de estratégias eticamente questionáveis. À era dos falsos argumentos, representados pelos antigos sofistas, sucede-se hoje a era ainda mais odiosa e estúpida dos falsos fatos representados por robôs replicantes de Fake News.

[4] Embora em diversos momentos desses comentários eu devesse observar que Comte foi um filósofo, e que sua obra é filosófica, isso EM ABSOLUTO deve ser interpretado como uma forma de diminuir ou obscurecer o caráter sociológico e político de suas contribuições teóricas. Aliás, a universalidade do conhecimento teve em Comte o seu último verdadeiro cultor. E embora em sua época a separação entre “cientistas” e “filósofos” já estivesse bastante consagrada (não à toa Miguel Lemos criou em português a palavra “cientista”, na tradução do Apelo aos Conservadores), Comte faz considerações filosóficas sobre afirmações científicas tanto quanto, inversamente, considera do ponto de vista científico afirmações filosóficas. 

29 junho 2018

Burrice acadêmica e materiais didáticos de Ciência Política


Para ver-se como o sistema de avaliação da produção científica brasileira pode ser profundamente BURRO:

Nos últimos anos eu tive a honra e a felicidade de redigir dois livros didáticos (para a editora Intersaberes):

- um deles, Introdução à Sociologia Política, é um volume enorme, com 412 páginas e o mais completo manual de introdução à Sociologia Política existente em língua portuguesa;

- o outro, Pensamento Social e Político Brasileiro, é um manual de introdução à teoria política elaborada no Brasil, organizando-a em três grandes “famílias” intelectuais (de acordo com a relação que os autores estudados indicam entre o Estado e a sociedade).

Tenho muito orgulho desses livros, não somente porque são realizações intelectuais importantes por si sós, mas porque são livros que sistematizam temas e discussões que, no Brasil, costumam ser muito dispersos. Assim, são convites, portas de entrada e guias para todos os interessados - e por “todos os interessados” quero dizer exatamente isso: público em geral, estudantes de graduação, estudantes de especialização, estudantes de mestrado, estudantes de doutorado, professores, gente de outras áreas.

Pois bem. A avaliação científica no Brasil ocorre sob a coordenação da Capes, que é um órgão vinculado ao MEC. A Capes tem em seu interior inúmeros comitês de área: Medicina tem pelo menos três comitês (devido à quantidade de especializações), as Engenharias têm também pelo menos três comitês e assim por diante.

Gozando de uma necessária e correta autonomia intelectual, cada comitê elabora e aplica os próprios critérios para avaliação da produção científica. Esses critérios referem-se a classificações gerais elaboradas pela Capes para avaliar revistas científicas e também livros. No caso dos livros, a hierarquia vai de L1 (livros ruins) até L4 (livros de excelência).

Entre os vários comitês, há o de Ciência Política e Relações Internacionais. Esse comitê decidiu que os livros didáticos de Ciência Política e Relações Internacionais, bem como os de áreas vinculadas, como Sociologia Política e Pensamento Político Brasileiro, devem todos eles ter notas L1 e L2.

O que isso quer dizer? Quer dizer que, para o comitê da área de Ciência Política e Relações Internacionais que avalia a produção nacional de Ciência Política e Relações Internacionais (e campos relacionados), a produção de material didático não é importante.

Em outras palavras, para o dito comitê, produzir livros que visem a educar a população brasileira, que visem a sistematizar o conhecimento da área (extremamente disperso e fragmentado, diga-se de passagem), que visem a auxiliar o grosso da população a entender um pouco o que é a política brasileira; enfim, produzir livros que tenham uma certa utilidade social mais ampla não é importante nem é relevante. Sendo mais direto: para o dito comitê, produzir livros didáticos é perda de tempo.

Para mim, isso é escandaloso. E, claro, mostra o quanto a avaliação da produção científica pode ser burra - mesmo a avaliação da produção científica daqueles que querem palpitar sobre as políticas públicas, incluindo aí as políticas (alheias) de produção científica.

No exterior (Estados Unidos e Europa), a produção de livros didáticos é imensa - mesmo que sob a forma de “enciclopédias” e de “manuais”: todas as principais editoras (comerciais e universitárias) têm suas próprias enciclopédias e seus manuais das mais diversas áreas do conhecimento.

Um exemplo banal da importância dos livros didáticos de Ciência Política, para além das salas de aula: a utilidade de livros didáticos sobre Sociologia Política, História Política, Idéias Políticas etc. em uma época que se caracteriza pelas fake news está, ou deveria estar, fora de questão.

Por fim, mas não menos importante, convém notar que, supostamente, ninguém deseja que a Sociologia saia do currículo do Ensino Médio nem, por extensão, dos vestibulares. Mas, ainda assim, a produção dos recursos didáticos adequados a esse ensino e que, de qualquer maneira, sistematize a fragmentação e a dispersão das Ciências Sociais - isso é visto como perda de tempo. Não é necessário ter o título de doutor para perceber que há alguma coisa muito errada aí.

Outros comitês de área avaliam a produção de materiais didáticos de outras formas. Felizmente há quem leve a sério a educação, a qualidade dos debates públicos e o futuro do país.

04 setembro 2017

O Positivismo não é um otimismo providencialista

Na longa passagem abaixo Augusto Comte afirma com todas as letras que o Positivismo não é um otimismo providencialista; dito de outra maneira, o Positivismo considera que postular a naturalidade da ordem não é o mesmo que dizer que essa ordem é perfeita e impassível de alterações (em termos técnicos e morais). Isso se aplica à ordem natural e - Comte di-lo explicitamente - aplica-se ainda mais à ordem social: as sociedades, por serem extremamente complexas, são também mais imperfeitas. A maior complexidade aumenta também a possibilidade de modificação - o que, para Comte, está longe de ser uma compensação por suas imperfeições.

Logo após a citação textual há a tradução, de minha autoria.

*   *   *

« Une semblable philosophie pourrait, sans doute, quelquefois conduire momentanément à un dangereux optimisme, comme j’en ai déjà franchement averti; mais cette aberration passagère ne pourrait avoir lieu que chez des esprits peu scientifiques, qu’un défaut naturel de précision, aggravé par une vicieuse éducation intellectuelle, doit rendre radicalement impropres à cultiver, avec aucun succès réel, une science aussi profondément difficile [la Sociologie]. Toute intelligence convenablement organisée et rationnellement préparée, digne, en un mot, d’une telle destination, saura bien éviter scrupuleusement de jamais confondre, en ce genre de phénomènes, pas plus qu’en aucun autre, cette notion scientifique d’un ordre spontané avec l’apologie systématique de tout ordre existant. Envers des phénomènes quelconques, la philosophie positive, d’après son principe fondamental des conditions d’existence, enseigne toujours, comme je l’ai souvent expliqué dans les volumes précédents [du Système de philosophie positive, t. I-III], que, dans leurs relations à l’homme, il s’établit spontanément, d’après leurs lois naturelles, un certain ordre nécessaire; mais sans jamais prétendre que cet ordre ne présente point, sous cet aspect, de graves et nombreux inconvénients, modifiables, à un certain degré, par une sage intervention humaine. Plus les phénomènes se compliquent en se spécialisant davantage, plus ces imperfections s’aggravent et se multiplient inévitablement; en sorte que les phénomènes biologiques sont surtout inférieurs, à cet égard, aux phénomènes de la nature inorganique. En vertu de leur complication supérieure, les phénomènes sociaux doivent donc être nécessairement les plus subordonnés de tous, en même temps qu’ils en sont aussi les plus modifiables, ce qui est loin de faire compensation. Si donc on considère, en général, la notion des lois naturelles, elle entraîne aussitôt l’idée correspondante d’un certain ordre spontané, toujours liée à toute conception d’harmonie quelconque. Mais cette conséquence n’est pas plus absolue que le principe d’où elle dérive. En le complétant par l’indispensable considération de la complication croissante des phénomènes, suivant la hiérarchie scientifique fondamentale établie au début de ce Traité, on complète aussi la conception de cet ordre, d’après l’accroissement simultané de son inévitable imperfection. Tel est, à cet égard, le véritable esprit caractéristique de la philosophie positive, sommairement rappelé ici dans son ensemble. On voit aisément combien il diffère profondément de cette tendance systématique à l’optimisme, dont l’origine est évidemment théologique, puisque l’hypothèse d’une direction providentielle, continuellement active dans la marche générale des événements, peut seule naturellement conduire à l’idée de la perfection nécessaire de leur accomplissement graduel. Il faut cependant reconnaître que, dans le développement fondamental de la raison humaine, la conception positive est primitivement dérivée du dogme théologique lui-même, dont elle constitue la régénération finale, comme pourrait le confirmer une exacte analyse historique: mais c’est essentiellement de la même manière que le principe des conditions d’existence découle originairement de l’hypothèse des causes finales, et que la notion philosophique des lois mathématiques était antérieurement issue du mysticisme métaphysique sur la puissance des nombres; l’analogie est pleinement identique en tous ces cas divers. Elle tient toujours à cette tendance nécessaire de notre intelligence à conserver indéfiniment ses moyens généraux de raisonnement, à quelque âge qu’ils aient été découverts, en les appropriant ensuite graduellement à ses nouveaux modes d’activité, d’après certaines transformations convenables, qui conservent à ces précieuses inspirations primitives du génie humain toute leur valeur essentielle, en l’augmentant même radicalement par une indispensable épuration, comme je l’ai indiqué, il y a longtemps, dans l’écrit [Plan des travaux scientifiques nécessaires pour réorganiser la société, de 1822] auquel j’ai déjà fait plusieurs allusions depuis le commencement de ce volume. Mais, en un cas quelconque, la moindre sagacité philosophique suffira pour faire aussitôt sentir les différences caractéristiques qui désormais séparent profondément le principe nouveau [i. e., l’esprit positive et relative] du dogme ancien [i. e., l’esprit téologique-métaphysique et absolut]. Au cas spécial que nous considérons ici, il est très clair que la philosophie positive, en indiquant la conformité spontanée de chaque régime politique effectif à la civilisation correspondante, afin que ce régime ait pu s’établir et surtout durer, enseigne aussi, d’une manière non moins nécessaire, que cet ordre naturel doit être le plus souvent fort imparfait, par suite de l’extrême complication des phénomènes. Bien loin donc de repousser, en ce genre, l’intervention humaine, une telle philosophie en provoque, au contraire, éminemment la sage et active application, à un plus haut degré que pour tous les autres phénomènes possibles, en représentant directement les phénomènes sociaux comme étant, par leur nature, à la fois les plus modifiables de tous, et ceux qui ont le plus besoin d’être utilement modifiés d’après les rationnelles indications de la science. Elle se réserve seulement la direction intellectuelle de cette indispensable intervention, dont elle circonscrit d’abord les limites nécessaires, soit générales, soit spéciales: sans en exagérer l’efficacité réelle, elle n’en interdit jamais l’usage que dans les seuls cas où il ne pourrait certainement constituer qu’une inutile consommation de forces suivant la même économie fondamentale qu’envers tous les autres phénomènes naturels, et surtout indépendamment de tout vain prestige quelconque, soit divin, soit humain. » 

(Augusto Comte, 1831, Système de philosophie positive, v. IV, 48è leçon, p. 273-276.)


“Uma semelhante filosofia poderia, sem dúvida, algumas vezes conduzir momentaneamente a um perigoso otimismo, como já francamente adverti; mas essa aberração passageira não poderia ter lugar senão entre espíritos pouco científicos, que uma falha natural de precisão, agravada por uma viciosa educação intelectual, deve tornar radicalmente impróprios para cultivar, com qualquer sucesso real, uma ciência tão profundamente difícil [a Sociologia]. Toda inteligência convenientemente organizada e racionalmente preparada, digna, em uma palavra, de uma tal destinação, saberá bem evitar escrupulosamente não confundir nunca, nesse gênero de fenômenos, não menos que em qualquer outro, essa noção científica de uma ordem espontânea com a apologia sistemática de toda ordem existente. A respeito de fenômenos quaisquer, a filosofia positiva, de acordo com seu princípio fundamental das condições de existência, ensina sempre, como com freqüência expliquei nos volumes precedentes [do Sistema de filosofia positiva, tomos I-III], que, em suas relações com o homem, estabelece-se espontaneamente, de acordo com suas próprias leis naturais, uma certa ordem necessária; mas sem nunca pretender que essa ordem não apresente, sob esse aspecto, graves e numerosos inconvenientes, modificáveis, em um certo grau, por uma sábia intervenção humana. Quanto mais os fenômenos complicam-se ao especializarem mais, mais essas imperfeições agravam-se e multiplicam-se inevitavelmente; de tal sorte que os fenômenos biológicos são sobretudo inferiores, a esse respeito, aos fenômenos da natureza inorgânica[1]. Em virtude de sua complicação superior, os fenômenos sociais devem então ser necessariamente os mais subordinados de todos, ao mesmo tempo que eles são também os mais modificáveis, o que está longe de ser uma compensação. Se, então, considera-se em geral a noção das leis naturais, ela implica também a idéia correspondente de uma certa ordem espontânea, sempre ligada a toda concepção de harmonia qualquer. Mas essa conseqüência não é mais absoluta que o princípio de que ela deriva. Ao completá-la pela indispensável consideração da complicação crescente dos fenômenos, seguindo a hierarquia científica fundamental estabelecida no início deste Tratado, completa-se também a concepção dessa ordem, de acordo com o crescimento simultâneo de sua inevitável imperfeição. Tal é, a esse respeito, o verdadeiro espírito característico da filosofia positiva, sumariamente evocado aqui em seu conjunto. Vê-se facilmente quanto ele difere profundamente dessa tendência sistemática ao otimismo, cuja origem é evidentemente teológica, pois somente a hipótese de uma direção providencial, continuamente ativa na marcha geral dos eventos, pode naturalmente conduzir à idéia da perfeição necessária de sua realização gradual. É necessário, todavia, reconhecer que, no desenvolvimento fundamental da razão humana, a concepção positiva é primitivamente derivada do próprio dogma teológico, de que ele constitui a regeneração final, como poderia confirmar uma exata análise histórica: mas é essencialmente da mesma forma que o princípio das condições de existência resulta originariamente da hipótese das causas finais e que a noção filosófica das leis matemáticas era anteriormente oriunda do misticismo metafísico sobre o poder dos números; a analogia é plenamente idêntica em todos esses casos diversos. Ela tem sempre essa tendência necessária de nossa inteligência a conservar indefinidamente seus meios gerais de raciocínio, em qualquer idade que eles tenham sido descobertos, ao apropriá-los em seguida gradualmente de seus novos modos de atividade, seguindo certas transformações convenientes, que conservam dessas preciosas inspirações primitivas do gênio humano todo o seu valor essencial, ao aumentá-lo mesmo radicalmente por uma indispensável depuração, como já indiquei, faz tempo, no escrito [Plano dos trabalhos científicos necessários para reorganizar a sociedade, de 1822] ao qual já fiz diversas alusões desde o começo deste volume. Mas, em um caso qualquer, a menor sagacidade filosófica bastará para fazer logo sentir as diferenças características que doravante separam profundamente o princípio novo [o espírito positivo, relativo e histórico] do dogma antigo [o espírito teológico-metafísico e absoluto]. No caso especial que consideramos aqui, é bastante claro que a filosofia positiva, ao indicar a conformidade espontânea de cada regime político efetivo com a civilização correspondente, a fim de que esse regime possa ter-se estabelecido e sobretudo durado, ensina também de uma forma não menos necessária, que essa ordem natural deve ser o mais freqüentemente muito imperfeita, em decorrência da extrema complicação dos fenômenos. Bem longe, então, de repelir, nesse gênero, a intervenção humana, uma tal filosofia provoca, ao contrário, eminentemente a sábia e ativa aplicação, em um mais alto grau que para todos os outros fenômenos possíveis, ao representar diretamente os fenômenos sociais como estando, por sua natureza, ao mesmo tempo como os mais modificáveis de todos e aqueles que têm mais necessidade de serem utilmente modificados de acordo com as racionais indicações da ciência. Ela reserva-se unicamente a direção intelectual dessa indispensável intervenção, de que ela circunscreve inicialmente os limites necessários, seja gerais, seja especiais: sem exagerar a sua eficácia real, ela não interdita nunca o uso senão nos únicos casos em que não poderia certamente constituir senão um inútil consumo de forças de acordo com a mesma economia fundamental que a respeito de todos os outros fenômenos, sobretudo independentemente de todo vão prestígio qualquer, seja divino, seja humano”.

(Augusto Comte, 1831, Système de philosophie positive, v. IV, 48è leçon, p. 273-276.)



[1] A “complicação superior” e as idéias próximas a ela referem-se à escala das ciências abstratas estabelecidas por Augusto Comte desde o início de sua carreira. Essa escala é a seguinte: Matemática, Astronomia, Física, Química, Biologia, Sociologia e Moral. Da Matemática à Moral há um aumento progressivo de complexidade, uma diminuição progressiva de generalidade objetiva e um aumento progressivo de generalidade subjetiva. Entre 1822 e 1851 Augusto Comte parava a escala na Sociologia, que tinha, portanto, apenas seis degraus; a partir de 1852, no v. II do Sistema de política positiva, Comte acrescentou a Moral (que, por sua vez, dividia-se em duas ciências, a Moral Teórica e a Moral Prática), de tal sorte que a escala enciclopédica passou a ter sete degraus.

03 fevereiro 2017

Livro à venda: "Introdução à Sociologia Política"



Finalmente está disponível para venda o livro Introdução à Sociologia Política

Publicado pela Editora Intersaberes, ele pode ser comprado aqui.

Essa obra destina-se ao público em geral, a estudantes de graduação, de especialização, de mestrado e de doutorado das mais variadas áreas do conhecimento!
É uma obra que apresenta os principais conceitos, as discussões fundamentais e a história da Sociologia Política. É o livro mais completo de introdução à Sociologia Política no Brasil.
Além das discussões históricas e teóricas, cada capítulo tem uma sessão didático-pedagógica e extensas indicações de leitura adicional.
Para ter-se uma idéia do conteúdo - e da qualidade! - do livro, o seu sumário é este:


1. INTRODUÇÃO

2. O CONTEXTO HISTÓRICO: COMO FOI POSSÍVEL SURGIR A SOCIOLOGIA POLÍTICA?

2.1. Alguns precursores intelectuais
2.1.1. Aristóteles
2.1.2. Tucídides
2.1.3. Nicolau Maquiavel
2.1.4. Thomas Hobbes
2.1.5. Montesquieu
2.2. Três revoluções
2.2.1. A Revolução Científica
2.2.2. A Revolução Industrial
2.2.3. A Revolução Francesa
2.3. A fundação da Sociologia: Augusto Comte
2.4. Dois autores básicos da Sociologia Política
2.4.1. Karl Marx
2.4.2. Max Weber
Exercícios do capítulo 2
Questões de auto-avaliação
Questões para reflexão

3. OBJETO E MÉTODO DA SOCIOLOGIA POLÍTICA: QUAL SUA IDENTIDADE?

3.1. Definindo o objeto
3.1.1. Ciência, “religião”, filosofia
3.1.2. Ciência Política, Filosofia Política, política prática
3.1.3. Ciência Política, Sociologia Política, Sociologia da Política
3.1.4. Ciência Política e Relações Internacionais
3.2. Definindo o método
3.2.1. A querela Ciências Naturais vs. “Ciências do Espírito”
3.2.2. Métodos quantitativos e métodos qualitativos; a lógica da inferência
3.2.3. Teorias “empíricas” vs. teorias normativas
Exercícios do capítulo 3
Questões de auto-avaliação
Questões para reflexão

4. ALGUNS CONCEITOS FUNDAMENTAIS

4.1. Poder
4.1.1. Características básicas
4.1.2. Concepções subjetivistas do poder
4.1.3. Concepções objetivistas do poder
4.1.4. Concepções do poder nas Relações Internacionais
4.1.5. Outras abordagens: Michel Foucault
4.1.6. Outras abordagens: Hannah Arendt
4.1.7. Outras abordagens: Augusto Comte
4.1.8. Alguns métodos de pesquisa: posicional, decisional e reputacional
4.2. Estado
4.2.1. Definição básica
4.2.2. Algumas características da burocracia
4.2.3. Legitimidade, dominação e autoridade
4.2.4. Evolução histórica do Estado: da Antigüidade à globalização
4.3. Governo
4.3.1. República vs. monarquia
4.3.2. Presidencialismo vs. parlamentarismo
4.4. Regimes políticos
4.4.1. Democracia
4.4.2. Totalitarismo
4.4.2. Autoritarismo
4.5. Partidos políticos
4.5.1. "Partidos" na história e funções dos partidos políticos
4.5.2. Condições sociais dos partidos políticos
Exercícios do capítulo 4
Questões de auto-avaliação
Questões para reflexão

5. PALAVRAS FINAIS

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BIBLIOGRAFIA COMENTADA

RESPOSTAS DOS EXERCÍCIOS

Capítulo 2 – O contexto histórico
Questões de auto-avaliação
Questões para reflexão
Capítulo 3 – Objeto e método da Sociologia Política
Questões de auto-avaliação
Questões para reflexão
Capítulo 4 – Alguns conceitos fundamentais
Questões de auto-avaliação
Questões para reflexão

NOTA SOBRE O AUTOR