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05 dezembro 2023

Sobre razão e fé para o Positivismo

No dia 3 de Bichat de 169 (5.12.2023) fizemos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista (agora em sua nona conferência, dedicada ao conjunto do regime).

No sermão abordamos a famosa oposição, de origem teológica, entre "fé" e "razão".

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://acesse.dev/A7KaN) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/U4ucH). O sermão começou em 45 min 31 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral do sermão estão reproduzidas abaixo.

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N. B.: nas anotações originais e, daí, na exposição oral fizemos duas pequenas confusões. Augusto Comte retoma a oposição entre fé e razão, mas sua abordagem muda a razão pelo amor; além disso, no que se refere ao Catecismo positivista, essa oposição encontra-se na terceira conferência, dedicada ao conjunto do culto, e não na segunda conferência (dedicada à teoria da Humanidade), como sugerimos ao vivo. Esses dois lamentáveis equívocos ocorreram porque os sermões são, quase sempre, elaborados  sem consulta direta às obras de Augusto Comte para as citações: como é comum a memória trair-nos, tivemos esses problemas no presente caso. Apesar desses dois equívocos, a argumentação apresentada não sofreu grande alteração, sendo necessário fazer apenas algumas modificações tópicas. Por fim, incluímos também os interessantes comentários que nosso amigo Hernani Gomes da Costa teceu logo após a prédica, em caráter privado, via Facebook.

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Sobre razão e fé 

-        Um dos temas mais abordados quando falamos de “religião” é a famosa oposição entre “razão” e “fé”

o   Essa dicotomia opõe a inteligência, o raciocínio, à crença em alguma coisa

§  No âmbito da “razão” também entra o conhecimento empírico (embora a razão, por si só, seja apenas o raciocínio, isto é, a atividade cerebral)

o   Essa dicotomia foi elaborada já nos primórdios do catolicismo (Santo Agostinho empregou-a), mas foi retomada e assumiu maior importância após a Idade Média, na decadência do catolicismo, e representa o caráter cada vez mais inaceitável dos dogmas teológicos

o   No âmbito da teologia, especialmente do monoteísmo, na medida em que, fatalmente, instala-se o conflito entre fé e razão, apenas duas soluções são possíveis:

§  (1) ou a razão é sacrificada pela fé, instaurando-se às claras o irracionalismo

§  (2) ou postula-se que fé e razão têm “domínios separados” e que seria possível pensar de maneira positiva e “crer” de maneira teológica

·         Esta segunda possibilidade instaura também um irracionalismo, mas disfarçado de solução filosoficamente aceitável

·          De qualquer maneira, a “solução” dos dois domínios rompe claramente com qualquer possibilidade unidade cerebral e, portanto, de harmonia humana

-        De uma perspectiva positiva, considerando os termos propostos pela teologia, a dicotomia entre razão e fé não faz sentido e não é aceitável:

o   A “fé”, ou seja, o ato da crença não pode ser desvinculado do conteúdo da crença, ou seja, da “razão”

o   Dessa forma, a fé tem que ser compatível com a razão: isso só é possível se a razão prover o conteúdo da fé

-        Augusto Comte retoma parcialmente essa dicotomia (por exemplo, na terceira conferência do Catecismo positivista, dedicada ao conjunto do culto):

o   Ao retomar essa dicotomia, Augusto Comte muda os termos, de razão e fé para amor e fé

o   A. Comte considera que a fé consiste na inteligência (o que, portanto, incorpora a razão na dicotomia anterior); por sua vez, o amor desdobra-se em amor propriamente dito e nas ações práticas

§  A conseqüência da incorporação da razão à fé é evidenciar aquilo que, em qualquer outra situação, torna-se claro com pouco esforço para qualquer pessoa de boa vontade que considere a questão: que a fé consiste em crenças e que, como tais, elas consistem em idéias (e, portanto, na razão)

§  Uma outra conseqüência da incorporação da razão à fé é que a fé distingue-se da razão propriamente dita por um elemento de confiança nas concepções (e, portanto, na razão) alheia

o   Assim, temos os três elementos da religião: sentimentos (amor propriamente dito), inteligência (razão/fé) e ações práticas (segundo elemento do amor)

o   Augusto Comte observa que nos estados normais a razão deve subordinar-se à fé e que as necessidades sociais com freqüência permitem tal subordinação (por exemplo, durante a Idade Média)

o   A plena subordinação da razão à fé só é possível com a positividade, em que ambas são relativas e que, portanto: (1) a fé (ou melhor, o amor) inspira e orienta a razão; (2) em que a razão é conselheira (nem mestra nem escrava) da fé; (3) em que a fé (ou melhor, o amor e as atividades práticas) é a reguladora da razão, ao estabelecer a fonte e os objetivos da razão

-        A incompatibilidade entre fé e razão indica que há um problema, seja com a “fé”, seja com a “razão”, seja com ambas:

o   A fé, no caso, consiste na fé teológica, isto é, na crença na divindade; a razão, por outro lado, consiste tanto no racionalismo quanto no conhecimento empírico e, portanto, pode ser tomada grosso modo e para os presentes propósitos como equivalente ao conhecimento científico

o   À medida que o método objetivo desenvolve-se, a fé torna-se cada vez mais acuada pela razão, pois os conhecimentos positivos paulatinamente expulsam da realidade humana as concepções absolutas, em particular as teológicas

o   Quando a positividade avança até a ciência da Moral, a antiga fé fica totalmente expurgada do teologismo, mas, ainda assim, não se garante a positividade dos conhecimentos humanos

o   Assim, após a conclusão do método objetivo, em que a razão expurga a fé de seus elementos teológicos, é necessário que a fé seja plenamente renovada, o que ocorre com a renovação preliminar do método subjetivo

§  Importa lembrar: o método subjetivo consiste na aplicação da perspectiva de conjunto, do relativismo e do subjetivismo às várias concepções humanas

o   Com a renovação do método subjetivo, a fé revê e renova o conjunto dos conhecimentos humanos, ajustando então a razão à fé

-        A dificuldade e, portanto, a importância da renovação da fé na forma do método subjetivo pode ser exemplificada pela existência dos chamados “positivistas heterodoxos”

o   Os chamados “positivistas heterodoxos” são os positivistas incompletos, ou cientificistas, que apresentam um caráter mais anticlerical que positivo

o   Os “positivistas heterodoxos” aceitam que a fé seja acuada pela razão, mas rejeitam a efetiva renovação da fé pelo espírito positivo e, a partir daí, a renovação da razão pela fé positiva

o   É interessante notar que os “positivistas heterodoxos” raciocinam por meio da adição de “blocos”, como no brinquedo Lego: esse procedimento é adequado ao racionalismo cientificista, mas é inadequado à renovação da fé e à aplicação da fé positivida-subjetivada à razão

o   Inversamente, a efetiva aceitação da unidade da carreira de Augusto Comte – que, nominalmente, é o ponto que separa os positivistas completos dos incompletos – implica a efetiva aceitação da Religião da Humanidade e do método subjetivo (subentendendo-se aí a aplicação do último ao conjunto dos conhecimentos humanos)

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Comentários do meu amigo Hernani Gomes da Costa, feitos privadamente via Facebook, logo após a prédica, na noite do dia 3.Bichat.169 (5.12.2023). (Versão editada para divulgação pública.)

Muito boa noite, Gustavo! Como sempre, é um imenso prazer ver a realização de mais um passo dado nessa sua longa e perseverante jornada da leitura comentada do Catecismo Positivista. Não sei se você se deu conta, mas foi possível em seu sermão realizar uma interessante e nova “costura” ao tratar da questão entre a razão e a fé.

 Digo isso pelo seguinte: há um uso corrente da palavra fé que é diferente do uso que o Positivismo faz dessa expressão. E em seu sermão você conseguiu com muita habilidade “surfar” entre esse conceito usual e o nosso, ora se expressando nos termos de um desses usos, ora no outro.

Em geral, como você bem notou, a oposição que o teologismo estabelece entre a razão e a fé refere-se à antítese radical fixada entre o que se supõe serem os frágeis recursos da razão humana quando confrontada com a necessidade de uma fé absoluta em um ser que já é definido a princípio como estando além de toda capacidade de compreensão.

Postas as coisas nesses termos pelo teologismo, a fé deve poder justificar-se plenamente por si mesma e por si mesma existir, não só dispensando a razão, como vendo na necessidade de recorrer a ela em seu socorro como o produto de uma fraqueza que denuncia tibieza e excesso de prudência – e, portanto, “pouca fé”.

O exemplo clássico que se invoca em apoio a essa perspectiva é o episódio em que Jesus diz a Tomé que ele acreditou na sua ressurreição apenas por Tomé ter tocado Jesus ressurrecto, sendo que mais bem aventurados seriam aqueles que puderem crer sem a necessidade de tais evidências.

A fé teológica é pois necessariamente passional, tanto no sentido afetivo de “paixão” quanto no sentido intelectual e mesmo prático de “passividade”.

Porém, o sentido constante da idéia de fé em Augusto Comte não se refere diretamente ao sentimento.

Um teólogo pode supor sua fé assim. Mas um positivista não. O dogma teológico, conquanto pretenda oferecer um sentido às coisas e dessa forma prover-nos de bases intelectivas para compreender o mundo e a nossa situação nele, só o faz ao preço de complicar ainda mais as coisas, interpondo entre o homem e o mundo toda sorte de mitos e mistérios que se chocam com a razão.

Um positivista, porém, não vê o que em que consistiria efetivamente a afirmada divisão entre fé e razão.

Tanto isso é assim que no Catecismo positivista o que temos não é uma divisão da religião fundamentada no binômio fé e razão, mas no binômio amor e fé.

Vê-se por aí que no Positivismo a questão da compatibilidade entre a fé e a razão é uma questão que se desenvolve toda ela no âmbito da própria fé.

É no interior da própria fé que se chega a julgar se ela é mais ou menos compatível com a razão e nunca mediante uma oposição a priori, segundo a qual uma e outra já seriam dadas como necessariamente incompatíveis e correspondendo a domínios distintos.

Assim, (1) podemos ter uma fé inteiramente sustentada pela razão quando suas evidências são claras; (2) podemos ter uma fé mais ou menos sustentada pela razão, caso em que essas evidências sejam então, por qualquer motivo, obscuras e duvidosas; (3) podemos ter, por fim, uma fé diretamente antitética à razão, ou seja, a célebre fé no que é impossível, a fé de Tertuliano, do credo quia absurdum est.

Mas o que cabe notar aí é que, independentemente do resultado a que se chegue a respeito de saber qual tipo de fé tem-se diante de si, o exame inteiro da questão da racionalidade maior, menor ou nula da fé, é algo que só se pode dar no campo da fé, no âmbito da fé, no interior da fé.

Assim, o modo pelo qual o Positivismo chega a superar o que se entende usualmente por conflito entre razão e fé não se desenvolve por intermédio de uma conciliação propriamente dita entre dois campos tomados por distintos, mas por meio de uma crítica ao próprio critério que foi estabelecido para justificar uma divisão que na verdade é bastante equívoca.

Nunca se trata realmente, no fundo, de conciliar razão e fé, mas de reconhecer que uma fé pode ser mais (ou menos) racional que outra fé.

Você foi particularmente hábil em servir-se tanto da definição teológica de fé, quanto de sua definição positiva, apenas me parecendo que nessa apresentação de seu sermão você referiu-se à fé como algo que corresponde ao campo do amor, quando em termos positivos a fé – tanto teológica quanto a nossa – é compreendida igualmente como uma tentativa de racionalizar as coisas, de compreender o mundo exterior e de situarmo-nos melhor nele, sendo portanto a fé sempre um aspecto intelectual da religião.

É assim que chegamos a ver, por fim, que o caráter passional da fé teológica, conquanto pareça fundamentar-lhe, não é senão um dos resultados colaterais de sua falta de sustentação teórica, ao passo que a nossa fé, a nossa crença, corresponde à fé na existência geral de leis naturais constatáveis, bem como na fé que depositamos na Humanidade, que as descobre e aplica-as para o nosso bem.

A fé positiva vai, pois, além da razão, sem, no entanto, contrapor-se-lhe, visto como o universo inteiro não nos será jamais inteiramente conhecido e visto também que não fomos nós pessoalmente que descobrimos e demonstramos as leis naturais que tomamos por verdadeiras. Ora, se nós aceitamos as leis naturais nessa condição, fazemo-lo por uma questão de confiança; em outras palavras, aceitando as leis naturais como um dos aspectos de nossa na Humanidade.

Temo que, talvez, eu não tenha sido claro.

Afirmar que o Positivismo concilia razão e fé subentende pelo menos duas coisas: (1) que existam de fato esses dois campos; (2) que eles sejam ou tenham sido postos em oposição.

Porém, desde que se compreende que o conflito não é – nunca foi! – exatamente entre razão e fé, mas um conflito entre a racionalidade maior ou menor que pode ser atribuída a diferentes fés, então a questão inteira de examinar a compatibilidade entre razão e fé cessa de existir, não encontrando mais justificativa para ser sequer colocada.

23 julho 2023

Hernani Gomes da Costa: "A bandeira nacional - mitos e verdades"

No dia 28 de Carlos Magno de 169 (15.7.2023), no curso do evento I Ciclo de Palestras do Centro Positivista do Lavradio - que, alías, marcou a inauguração da instituição -, nosso amigo Hernani Gomes da Costa proferiu a conferência "A bandeira nacional - mitos e verdades".

Para auxiliar a divulgação dessa interessantíssima, densa e profunda conferência, reproduzimos abaixo o texto lido por Hernani na ocasião.

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A Bandeira Nacional: Verdades e Mitos

Hernani Gomes da Costa

 

Caras irmãs e irmãos na Humanidade:

 

Uma prédica sistemática sobre a teoria positiva das bandeiras – sim, creiam, isso existe! – deveria incluir muitos e variados aspectos que nos levariam a assuntos por vezes afastados de nossos objetivos mais diretos; até que só ao fim da exposição, fosse-nos possível mostrar para onde tais elementos haveriam de confluir, bem como a importância do conjunto total daquelas informações.

Ao invés disso selecionamos apenas um único e grande tópico, justamente o que nos pareceu o mais grave, à vista das atuais circunstâncias políticas e sociais de nosso país e mesmo do mundo.

O desinteresse pelas festividades cívicas – sobretudo as engendradas pelos nossos diversos governos, parece-nos algo que dispensa comentários.

Porém as dificuldades de que padecem hoje tais comemorações não podem continuar ignoradas ou mal caracterizadas como mera “frivolidade” e “falta de patriotismo” das novas gerações.

Essas pretendidas lacunas – ousamos apostar – não existem; haja vista como – bem ou mal a propósito – é nas mobilizações mais populares que – embora nem sempre de modo salutar – vemos a marcante presença dos símbolos nacionais erguerem-se e serem invocados (ou mesmo imolados) em auxílio das mais variadas reivindicações.

Boa parte da responsabilidade por aquele desinteresse deve antes caber a uma insuficiência cultual característica e mesmo inerente a tudo quanto nesse sentido possa oferecer um governo temporal qualquer.

Investigaremos quais são os fatores associáveis a isso, a fim de que tal interesse não se perca irremediavelmente, ou, o que talvez ainda seja pior, torne-se tal gostosura cívica restrita justo àquelas pessoas e grupos que menos saberiam fruir de sua pacífica sentimentalidade.

No fundo as cerimônias ditas oficiais em louvor à bandeira realizaram-se sempre sob o peso de um dilema cujas tentativas de solução jamais chegaram a compor uma idéia nítida que guiasse governantes e governados ao que seria um real e inovador experimento estético que conviesse e interessasse diretamente a ambos.

Com efeito, das duas uma: ou os símbolos máximos a que tais festas se referem tornam-se usurpados pela camarilha do partido hegemônico do momento (e então o que deveria corresponder a uma cerimônia de todos, com todos e para todos, perverte-se numa panfletagem partidária ou classista) ou então ao invés, o governo haverá de empregar seus maiores escrúpulos no sentido de evitar tal situação, tudo porém às custas de diluir a presença do símbolo máximo da pátria, mesclando-o a um sem-número de outros, e assim descaracterizando (quase até o limite do irreconhecível) uma cerimônia que deveria, ao invés, poder concentrar as nossas emoções, já a partir da concentração do nosso próprio olhar sobre um alvo único.

É a tais insuficiências que nós associamos isso que obriga aos diversos governos, a manterem suas festividades confinadas a retrógrados ou, (na menos ruim das hipóteses) a inócuos limites determinados por simples lembranças mais ou menos vagas de episódios da história nacional, carregadas em cores militarescas e teológicas.

E é também a insuficiências como estas que nós devemos a tão freqüente e sinistra associação da idéia de pátria a uma ruminação ufanista que faz parecer óbvio que uma pátria – coincidentemente sempre a nossa – só possa ser bem comemorada quando nós a consideramos acima das demais; ainda que apenas por suas belezas naturais, ou seja segundo a fórmula de um nacionalismo que quando não completado e retificado pela voz ainda maior do culto à Humanidade, jamais chega a extrair dos fatos em que se pretende baseá-lo, o que seriam os mais preciosos sentimentos e as mais exemplares lições que de outro modo comportariam, tais como sejam a própria glorificação dessa mesma Humanidade, e o prognóstico (ou ao menos os anseios) de um futuro mais feliz para Ela.

É dessa forma também que tais cerimônias – aliás sempre tão cômodas, – acabam muito facilmente transformando os marcos do passado em um conteúdo congelado no tempo, numa história sem ligação com o presente e incapaz de nos apontar o futuro.

Enfim, é mediante a coleta de um punhado de informações terceirizadas, cuja busca torna-se cada vez mais fácil em virtude da sempre crescente acessibilidade tecnológica; que se obtém por fim o resultado de poderem-se reunir e fixar de uma vez aqueles mesmos apanhados, que haverão, a partir daí, de reproduzirem-se maquinalmente, perpetuando erros consagrados e fazendo variar a expressão deles apenas a tal ou qual pormenor de forma.

Em suma, tais cerimônias acabam funcionando ou como aulas banais revestidas de um certo espírito de festividade difusa, ou ao contrário como verdadeiras festividades plenamente caracterizáveis, mas que ao invés de instrutivas tornam-se opressivamente sectárias em tudo quanto pretendem ensinar.

Notemos ainda, que o problema não é menor quer tais festas concentrem-se na homenagem a algum indivíduo e a algum grupo social, quer realizem-se abstratamente, isto é, por intermédio da bandeira propriamente dita.

Tanto num caso como noutro o verdadeiro objetivo deve continuar sendo sempre único e o mesmo, assim como idênticos tornam-se também os problemas de se compor um tipo de comemoração que prepare-nos e nos predisponha ao transbordamento dos nossos melhores afetos, e apenas destes num espírito de universalidade e de simplicidade que deve poder convir a ambos os sexos, a cada gênero, e mesmo a todas as idades.

Ora, o positivismo encontra-se, já por sua definição, livre de incorrer naqueles dois inconvenientes.

Por um lado, os aspectos históricos ou seja a co-memoração – a lembrança em comum da pátria e portanto da bandeira – não pode nem fechar-se nunca sobre si mesma; nem tampouco evanescer.

Deve apenas formar um preâmbulo funcional – não muito longo, aliás.

E este mesmo, logo exorbitaria de suas legítimas atribuições, assim que buscasse dominar por qualquer forma o evento inteiro, ao invés de apenas nos preparar para o momento seguinte da cerimônia.

Isso não é um mero detalhe da estrutura de nosso culto, isso radica diretamente no próprio ideal de Humanidade que defendemos.

Nós não queremos nenhuma pátria soberana, mas uma única Humanidade suprema.

Assim, apenas essa circunstância já se pode indicar o quanto o culto à bandeira, no positivismo, deve destoar radicalmente de tudo quanto até aqui se tentou nesse sentido.

Um culto a uma pátria soberana ou mesmo um culto exclusivo a ela, fatalmente nos haveria de entravar, confundir e amesquinhar as nossas emoções, ao invés de conduzi-las naturalmente ao que precisa ser hoje o seu destino final, a saber o de erguer-nos até à sublimada apoteose de um amor à Humanidade, amor que por ser o único universal, trespassa radicalmente todas as fronteiras.

Tal deve ser o arremate necessário de todo esforço cultual que se pretenda a altura das exigências modernas.

Não existe, a nosso ver, nenhum verdadeiro culto à pátria que não precise ser, o quanto antes, completado logo pelo culto à Humanidade; e, a não ser possível efetuar-se, por qualquer motivo, tal complemento indispensável; melhor seria, no fundo, que jamais ninguém houvesse pensado em realizar culto algum desse tipo.

Nada do que não nos possa conduzir diretamente a esse amor final que se deve apenas à Humanidade, pode jamais considerar-se como uma efetiva cerimônia sociolátrica.

Fora desse propósito capital, que consiste em nos conduzir a esse amor maior, tais cerimônias, por mais bem intencionadas e por mais pomposamente organizadas que sejam, terão malogrado inteiramente em seus princípios afetivos, em suas justificativas lógicas e em suas finalidades práticas.

Em suma, se esse pretendido culto à bandeira não nos puder levar – e elevar – acima de todas as bandeiras nacionais e inclusive da nossa própria, terá falhado em sua principal – e mesmo no fundo em sua única missão social e moral – e ter-nos-á feito mais mal do que bem.

Boicotemos pois, a nossa presença, como já o sugeria há tantos anos o próprio autor da bandeira nacional e vice-diretor do Apostolado Positivista do Brasil, Raimundo Teixeira Mendes – a essas atrasadas cerimônias militaristas como as da chamada “parada de sete de setembro”. Tomemos a esses eventos como parte do que já se compreende como apologia ao crime; onde a violência recebe das mãos da oficialidade e mesmo do clero, honras e bênçãos que hoje só podem ser devidas à colaboração e à fraternidade de todos os povos da Terra.

Pois é na glória do amor à Humanidade, único plenamente generoso, que deverá residir o momento supremo a assinalar o sucesso de uma autêntica e portanto inconfundível festa positivista, ou por outra, é em tudo quanto acaso seja capaz de realizar isso, que haverá de corresponder espontaneamente a um culto que emparelha-se sem o saber – e no que ele tem de mais essencial – ao nosso.

A tal momento todo especial, o positivismo denomina efusão.

É nele que depositamos, expressamos e desenvolvemos as nossas maiores esperanças no sentido de fomentar, retemperar e reavivar o altruísmo, ou seja nossos instintos sociais de amizade, de veneração e de bondade; justamente aqueles sentimentos que formam a Humanidade, e que as vicissitudes do dia a dia tantas vezes tende a nos atrofiar os seus correspondentes órgãos cerebrais e a amortecer-lhes as funções.

Em nossos antigos esforços apostólicos tivemos muitas vezes o gratíssimo privilégio de ao menos tentar realizar – no saudoso templo da única religião que comporta diretamente festas como estas – tais manifestações de culto cívico.

 

*          *          *

 

Mas, o que temos a oferecer a vocês dessa vez, ainda não é o que seria uma oportuna e necessária amostra disso; não decerto, por julgarmos que esse sugestivo e belo ambiente em que nos encontramos e que tão carinhosamente nos acolheu e reuniu, não o pudesse comportar.

Longe disso.

O caso é que; o que temos a dizer hoje, embora guarde estrita relação com a exaltação da imagem querida da nossa bandeira, é algo que corresponde infelizmente a uma outra necessidade.

A apreciação que haveremos de fazer dela, dar-se-á sob outro ângulo, dessa vez como numa advertência, e sob o signo, portanto, de uma grave preocupação pessoal.

Outrora em nossos ensaios cultuais, tínhamos em vista sobretudo enaltecer a bandeira pelo que ela pudesse nos representar de generoso.

Hoje, porém dadas, como dissemos, as circunstâncias, julgamos chegada a hora de sublinhar o que a glorificação de uma bandeira – de QUALQUER bandeira – também possa comportar de problemático e mesmo de funesto.

Aliás, o que temos em conta oferecer aqui é, antes de tudo, uma pergunta; e uma pergunta que talvez soe despropositada a um auditório adulto e instruído:

O que é, afinal, uma bandeira?

Por menos que pareça veremos como é do desdobramento de tal questão que ser-nos-ão revelados alguns aspectos inusitados e mesmo sutis do nosso assunto.

Aliás nenhuma afirmação consegue ser tão óbvia – e nem impressão alguma tão evidente – que algo de importante, delas não nos possa escapar.

E é justamente nos meandros oclusos dessas obviedades que escondem-se grandes surpresas, aquelas mesmas que uma vez reconhecidas nos trazem a desagradável mas sempre instrutiva sensação de havermo-nos deixado entreter ou enganar; tanto, desnecessariamente e por tão pouco.

Julgamos que a falta de tais reflexões venha contribuindo para subverter o bom uso que se possa dar às bandeiras transformando-as, por assim dizer, no contrário de tudo que precisam sempre e garantidamente continuar representando, se não quisermos vê-las degenerarem-se em outros tantos símbolos odiosos de opressão, confusão, medo e ressentimento.

Afinal nunca o mundo esteve tão repleto – e por que não dizer, tão sobrecarregado – de todo tipo de bandeiras.

Dir-se-ia até, que começa já a faltar cores suficientes para todas elas e ainda; que quanto menor for a nossa capacidade de reconhecer e de bem nos servirmos daquelas que já temos, maior torna-se-nos a necessidade de adotar mais uma.

Advertir quanto ao que possa estar significando tudo isso e assinalar em tempo real quais sejam esses perigos, é o que afigura-se-nos enfim, como uma tarefa que cabe à própria filosofia – e em particular a uma filosofia que se pretenda positiva – fazer.

O que é uma bandeira?

Parece que todos nós temos uma resposta bem óbvia e imediata a tal pergunta.

A primeira delas apelará a uma identificação que invoca o aspecto físico comum a todas: uma bandeira consiste num pedaço de pano, em geral retangular, fixado num de seus lados a um longo cilindro, em geral de madeira ou metal.

Essa definição decerto basta aos limites segundo os quais algo possa ser caracterizado como um objeto material, para em seguida compará-lo sob esse mesmo critério, a outros de aspecto mais ou menos semelhante.

Mas limites como estes circunscreveriam demais o nosso conceito de bandeira: um lenço sujo, por exemplo, pode ser levado pela ventania até fixar-se por puro acaso a uma haste ou poste, e isso não transformará tal conjunto numa bandeira, por mais que pudesse convir a certas idéias ou indivíduos.

Um pequeno parêntesis: queremos lembrar que foi preciso o advento da informática para que começássemos a adotar esse belo hábito mental de separar, de um modo mais acurado, o que deve ser tomado como o “físico” e como o “lógico” numa apreciação qualquer, faltando agora fazer entrar nessa mesma sistematização abstrata, exclusivamente o fator moral.

Referimo-nos às duas alcunhas que a nossa proverbial subserviência aos Estados Unidos nos fez importar como “hardware” e “software” respectivamente.

Referidas tais expressões primeiro aos computadores, e daí, por extensão, a todas as demais coisas e circunstâncias; a indispensável separação que esses dois conceitos sugerem tendeu a nos tornar hoje filosoficamente mais hábeis em entender um pouco mais a fundo as operações – até então obscuras, fora do positivismo – que consistem em se conseguir separar os aspectos material e imaterial de uma questão, para em seguida melhor podermos articulá-los um com o outro, sem que com isso nem o material venha a imperar absoluto aí – como se tudo sempre pudesse ou devesse reduzir-se ao físico – e sem que o lógico fosse concebido como alguma espécie de entidade mística e fugidia, que de algum modo habitasse o interior daquela casca material, furtando-se porém a qualquer possibilidade de observação, de compreensão e de intervenção nossa.

Tanto no que se refere a um computador, quanto a uma bandeira, talvez não haja melhor forma de bem caracterizar o teor daquela divisão, do que pela piada que define “hardware” como tudo aquilo que você quebra, e como “software”, tudo aquilo que você xinga.

Existem portanto, a considerar, sempre o que sejam – por um lado – os elementos físicos que definem uma bandeira e, por outro, aqueles elementos não físicos, elementos esses que, como veremos, assumem aí como na maioria dos casos, uma relevância maior para a solução dos mais importantes problemas a que se tenha em conta resolver na vida.

Fecho aqui o parêntesis.

Dirão, então, alguns outros, que bandeiras devem ser definidas como símbolos usados para identificar nacionalidades, instituições etc. frente a outras, de modo a que não sejam confundidas.

Sem dúvida, tal definição corresponde já a um extraordinário avanço em relação à anterior, oferecendo-lhe por complemento nada menos do que um primeiro esboço daquela nova e indispensável dimensão não física, que nos faltava para bem caracterizá-las.

As bandeiras realmente devem cumprir tal propósito.

Mas com que extensão o fazem e o podem fazer?

E se não o fazem, o que as estaria ainda impedindo?

Eis aí apenas duas das muitas questões que a simples definição social, política, comercial ou numa palavra – coletiva – das bandeiras não é ainda capaz de fornecer.

É justo nesse terreno que palpitam as diversas dúvidas e questões que temos em mente apresentar.

No mais profundo sentido do que consistiria essa função de “identificadora de nacionalidades” perguntamos agora: o que, além de uma bandeira consegue ser – a um só tempo – mais popular e mais enigmático?

Na idéia de se criar uma bandeira encerra-se o propósito de simbolizarmos algo, isto é, de transmitir, de traduzir sinteticamente – sob a forma de imagens – a comunicação indireta de sentimentos, pensamentos e mesmo de atos; sugeridos então por cores, formas e eventualmente por palavras, que apenas poderão aludir a eles e à sua importância real ou suposta para nós.

Uma bandeira é (ou ao menos propõe-se a ser) antes de tudo, isto: um símbolo.

Mas se todas as bandeiras configuram-se como símbolos; nem todos os símbolos conseguem ser indistintamente tão “bandeiráveis” assim; ainda que estampados num pano que tremulasse no alto de um mastro.

O desenho pintado numa placa de trânsito, por exemplo (seja, digamos aquele do E maiúsculo de cor preta cortado por um traço diagonal vermelho e que indica “proibido estacionar”) bem poderia, também estampar-se num pano retangular erguido num mastro, mas – convenhamos – seria um tanto quanto forçado designar tal conjunto como “O Lábaro do Não Estacionamento”.

Além disso; como é o caso da imagem em questão apenas pretender nos informar a respeito de algo, precisará estar o mais possível à vista, o que não se obtém com tanto proveito com bandeiras, ainda que ao sabor das mais continuadas brisas.

Assim temos que não basta às bandeiras servirem-nos para identificar nações ou instituições, e nem apenas para informar de algo, sob pena de que, com tal definição, elas se limitem ao papel de meros códigos para fixar certas indicações ou fazer valer certos direitos frente a uma burocracia qualquer, seja esta diplomática ou o que mais for.

Donde se conclui que nem o aspecto físico e nem mesmo o aspecto puramente social e informativo bastam por si sós ou em conjunto, para dar-nos uma idéia precisa do que é uma bandeira, e assim do que pode ser tanto a inegável eficácia do seu bom uso, quanto os perigos que se escondem em seus diversos abusos.

Dirão outros ainda que bandeiras devem servir não apenas como um código sinóptico, mas como uma expressão artística, poética que idealiza certa realidade embelezando-a para além de suas inegáveis imperfeições quer agudas ou crônicas; quer passadas ou mesmo atuais.

Assim, por exemplo, ao nos representarem a idéia de uma pátria, as bandeiras deveriam servir para nos fazer prefigurar um futuro ainda não de todo vivido, mas que caberá a cada pessoa construir paciente e permanentemente, geração após geração.

Acontece porém que consideradas as coisas sob tal aspecto, as bandeiras não deveriam ser vistas nem como simples espelhos frente aos quais pudéssemos nos reconhecer por completo, e nem como máscaras impessoais que encobrindo-nos e falseando-nos os contornos íntimos de nossa verdadeira identidade, nos conferisse a triste faculdade de reconhecermo-nos exteriormente uns aos outros apenas por meio de algo cujo sentido maior ignoramos.

Com tais considerações chega-se ao cerne da nossa questão: à dimensão física e social das bandeiras deve-se agora somar uma dimensão psicológica. E será então no interior dessa última dimensão, e mais em especial, no aspecto diretamente afetivo desta, que nós devemos concentrar o conjunto das nossas atenções.

Quanto mais nos aproximamos de uma definição que alcance a mais importante e completa de todas as ciências – a psicologia – mais as bandeiras haverão de se apresentar como esses instrumentos paradoxais que são: instrumentos que embora muito revelem, velam tudo aquilo que revelam.

De fato, por elas tornamo-nos o que ainda não sabemos ser integralmente;

Com elas revestimo-nos de uma sublimidade emprestada, que não necessariamente nos deixará quaisquer vestígios quando dela nos despirmos;

Sobre elas inscrevemos nossa voz, como se tudo quanto pudéssemos jamais dizer de melhor já houvesse sido registrado e avalizado por seus dísticos, embora o mais essencial sentido deles nos continue escapando;

Na sinuosa e hipnótica dança de suas cores e formas, somos por elas tragados, eliciam-se-nos reações passionais reflexas, mudanças de estado de ânimo inconscientes, imperceptíveis que, diga-se, cada vez mais os donos do poder vem aprendendo a explorar contra nós, manipulando-nos sem que ao menos tenha-nos sido possível dar-lhes o mais elementar consentimento.

Por elas, somos enfim, arrastados à carnificinas contra quem conhecemos tão pouco quanto às sofisticadas letras dos hinos, que aprendemos a repetir desde pequenos em nossa doutrinação escolar, numa época em que ter-nos-ia sido impossível saber, afinal o que é exatamente isso que precisa ser sentido, quando se está em posição de sentido.

Não é pois de se estranhar que por uma sorte de fatalidade, as bandeiras encontrem seu povo sempre a meio caminho de bem compreendê-las, e que sua mensagem assim tornada simplória por esse mesmo povo, e fora do contexto original que a produziu, preste-se tão facilmente às mais disparatadas e incompatíveis interpretações.

E se, como é o caso da nossa bandeira, existirem além de simples cores e formas, também um lema; este não poderá deixar de tornar-se tanto mais enigmático quanto precisou ser o mais possível sintético, afim de poder alinhar-se ao caráter sinóptico das imagens que lhes correspondem e que lhes servirão agora de fundo.

Se o significado mais cabal de uma afirmação ou mesmo de um único vocábulo isolado não pode ser achado senão no contexto em que se inscrevem, e se portanto nunca existe completa sinonímia entre as palavras; mesmo as mais corriqueiras (cão por exemplo jamais consegue ser exatamente o mesmo que cachorro – ninguém que declare ter um cão de estimação, terá por um animal como esse a mesma estima que teria se esse cão pudesse ser tomado na conta de um cachorro) então, tal hiato tenderá a ameaçar a veracidade de qualquer que seja o uso que se dê às bandeiras, quer quando seja o caso de cultuá-las, quer mesmo quando fosse o de xingá-las e quebrá-las.

Se tais riscos parecem inevitáveis a quem quer que julgue útil servir-se delas, o que melhor temos a fazer a fim de premunirmo-nos contra eles é, antes de tudo, mantermo-nos lúcidos quanto à sua real e permanente possibilidade.

Um símbolo haverá de estar sempre a mercê de quem dele houver de se servir.

E um símbolo, quando se converte em algo de domínio público, já não serve a ninguém mais em particular, podendo assim oferecer-se inadvertidamente a todos, e para o que quer que seja.

Um dos mais tenebrosos exemplos disso, um dos mais emblemáticos casos do quão fácil consegue um símbolo rebaixar-se à medida em que sobe por um mastro, ocorreu à swastika.

Bastou à sanha corruptora de apenas duas décadas sob o jugo de um partido tal como o nazista, para que fosse possível enxertar num símbolo ingênuo, de origem essencialmente apolítica, e cuja criação se perde no tempo; um significado de todo alheio ao de sua real natureza.

Aquilo que jamais pretendeu ser senão um dos incontáveis – e de outra forma quase esquecidos – talismãs que a nossa pobre espécie já criou em vão para proteger-se contra os azares da vida, transformar-se-ia não só num dos símbolos mais imerecidamente odiados, quanto – ironicamente – num dos mais aziagos presságios do que pode ocorrer de pior a uma sociedade.

Deixaremos que cada um aqui reflita sobre o desastre análogo que por um triz não se reproduziria entre nós, se a bandeira republicana continuasse por mais tempo sob o cativeiro ideológico dos que a seqüestraram para fazê-la degenerar – de símbolo nacional independente que é e que sempre será – num sacrílego e mal disfarçado instrumento para os projetos de poder de grupos políticos e teocráticos; grupos esses que – não hesitamos em dizer – tão logo deitassem raízes mais fundas na máquina do estado, encarregar-se-iam de substituí-lo por algo genuinamente seu, e que assim pudesse traduzir sem reservas tanto o absurdo de suas bases teóricas quanto a mesquinhez de seus princípios morais.

A força de um símbolo – aquilo mesmo que nos permite defini-lo como tal – reside pois, como dissemos, na capacidade de sugerir-nos tudo, sem nos propôr nada; de instigar a um caminho qualquer, sem no entanto esclarecer qual seja este; e de insuflar-nos uma vasta série de emoções sem no entanto nos impelir preferencialmente a nenhuma em particular.

E é por isso mesmo, por este seu caráter necessariamente vago, e em aparência inocente, que um símbolo acaba por nos propor, esclarecer e impelir ao que quer que nos venha à cabeça.

Nem é preciso que estes símbolos sejam-nos oferecidos sob a forma de bandeiras, basta que sejam símbolos; basta que convidem e legitimem a uma certa interpretação, que cada um se julga sempre capaz de fazer, considerando haver-lhe encontrado a melhor senão a única mensagem verdadeira.

John Paul Knowles, por exemplo, o assassino serial da década de 1970, inspirou-se para cometer seus numerosos homicídios, numa intrincada interpretação das alegorias da história de Fernão Capelo Gaivota.

Símbolos são assim – aliás eles precisam ser assim – capazes de se prestar a nos fazer crer que tudo aquilo que existe apenas em nós (e que apenas proveio de nós) quer sejam sentimentos quer sejam idéias ou propensões; projete-se inteiramente sobre eles como se existissem lá fora, como se emanassem dos próprios símbolos, como se estivessem plasmados, incrustados, dir-se-ia mesmo materialmente neles.

Parece ser um tanto quanto difícil damo-nos conta do perigo que reside em que uma imagem nos valha – como se costuma dizer – tão mais do que mil palavras.

Assim, se pudéssemos resumir aqui numa única sugestão o que melhor nos defenderia contra tais abusos, talvez consistisse num certo treinamento que nos habituasse a só nos sentirmos seguros de nossas emoções quando as que experimentássemos como provenientes da visão, pudessem vir acompanhadas pelas garantias indispensáveis de palavras esclarecedoras.

No entanto, parece que tendemos a considerar a hierarquia habitual da visão em nossas avaliações, como algo sempre no fundo vantajoso por nos poupar tempo e por nos funcionar como uma espécie de salvaguarda que a natureza nos oferecesse contra os perigos mais iminentes que ela mesma nos arma.

No entanto se a isca colocada na ponta do anzol é falsa, então não é de todo exato dizer que o peixe morre pela boca, e nem muito menos pelo nariz. Na verdade ele morre pela visão.

Seja porém como for, embora tal confiança maior naquilo que a visão nos provê possa ter se originado de um exame justo entre o que seria a nossa maior fragilidade física caso nos faltasse o sentido da luz ao invés daquele que nos habilita a captar sons; chega-se a extrair falsamente daí, o que não passa de um duvidoso critério, segundo o qual podemos confiar mais no que nos chega através dos olhos, do que pelos ouvidos.

Se porém como nos diz Augusto Comte, é a visão o mais sintético dos nossos sentidos, é a audição, como ele mesmo o completa, aquele que corresponde ao mais simpático, e que portanto, mais eficazmente nos pode e nos deve corrigir das ilusões de óptica, aliás sempre mais numerosas e daninhas que as de audição.

Resgatar o justo papel que cabe à palavra falada como um antídoto contra a sedução visual, seria pois um primeiro passo para contrabalançar o que de outro modo pode bem representar o monopólio ou antes a tirania dos olhos.

Se como disse Saint-Exupéry, o essencial é invisível aos olhos, cabe a eles então, certa responsabilidade por tudo quanto nos mantém nesse nível enganador de aparência e de superficialidade, inclusive emocional.

Deveríamos nos lembrar de que somos em geral bem mais suscetíveis às lágrimas pela recitação de um poema e pela audição de uma música, do que pela contemplação de uma pintura, monumento ou obra arquitetônica.

Subtraia-se a música da dança e só o que nos restará contemplar mesmo nas melhores coreografias, será uma pura ginástica acrobática quando não um contorcionismo simiesco; subtraia-se dos melhores filmes mudos as animadas trilhas sonoras que lhes acompanham, e nós veremos como em questão de minutos um tédio arrebatador se apossará de nós.

Ao invés, ponha-se, como fez Daniel Wurtzel, um pano bem leve no centro de uma ciranda de ventiladores ligados e façamos com que suas piruetas aleatórias sejam acompanhadas por uma música qualquer, e logo nossa subjetividade se encarregará de encaixá-las exata e maravilhosamente à melodia tocada, de modo a nos fazer ver em seus ziguezagues os precisos gestos correspondentes ao que aquela música haveria de melhor sugerir aos nossos próprios braços e pernas.

Usar melhor a audição, apurá-la para captar na voz o que a máscara da face encobre, talvez já pudesse ser o começo de uma contracultura que privilegiasse o que há de mais tipicamente humano em nós, ao invés do que apenas temos em comum com nossos irmãos animais.

Porém, deve continuar firme também aí o nosso alerta!

Que nós não nos iludamos mais uma vez!

Mesmo aí nós não nos encontraremos totalmente à salvo do erro.

Quer nas palavras de um discurso demagógico, ou de um hino repetido, podemos encontrar algo de quase tão mirífico quanto o jogo de cores, formas e lemas de todas as bandeiras do mundo. Para que mergulhássemos num estado permanente de guerra de cada nação contra todas as outras bastaria que as pessoas simplesmente passassem a levar à sério as letras dos seus hinos patrióticos.

A força maior da comunicação verbal, quando o que ela intenta é arrebanhar de uma só vez multidões inteiras; bem como o que há de mais pavoroso e inescapável no drama desse seu destino, consiste nisso: em que quanto mais calculadamente vazios possam tornar-se os discursos dos nossos pretendidos líderes; mais as nossas mentes também os preencherão com tudo que jamais esteve noutro lugar senão em nós mesmos, atribuindo em seguida esse conteúdo autoral nosso, inteiramente a eles ao invés de ao nosso próprio espírito.

Então, desatentos ou esquecidos de que foi apenas isso o que fizemos; nós nos quedaremos espantados e orgulhosos pelo que só pode então ser compreendido como a miraculosa coincidência entre o que jamais passou dos nossos próprios e mais batidos chavões, com tudo aquilo que apenas julgamos haver ouvido de mais original em meio às reticências, insinuações, alusões oblíquas, silêncios e perífrases; as quais fazendo brilhar a arte de nada dizer, podem traduzir tudo quanto queiramos ou estejamos precisando ouvir.

Eis aí o segredo máximo desse vínculo, ou melhor desses grilhões indestrutíveis que se formam entre as multidões e os seus mitos.

Eis aí o truque da falsa afinidade segundo a qual julgamos haver encontrado confirmação, onde não houve nunca senão a projeção do nosso próprio pensamento e sentimento, na magniloquência oca de um discurso demagógico ou de um hino hermético.

Eis aí, enfim como é que se chega do nada à sensação de se estar diante de uma verdadeira revelação, diante de tudo aquilo que nunca passou enfim das más inspirações há muito sussurradas pelos nossos corações magoados; mas que – não fosse pelo gatilho oferecido por esses líderes carismáticos – ter-nos-iam faltado a coragem, ou (por que não dizer) o despudor para trazê-las à consciência e externá-las publicamente.

A força do totalitarismo no fundo reside inteiramente aí.

Não deve ser procurada em seu conteúdo. Não está em suas idéias, que sempre foram pelo contrário de uma mediocridade a toda prova. Ela reside, pelo contrário, no caráter inexpugnável de que se reveste tudo aquilo que não pode ser ferido porque não pode ser tocado, e que não pode ser tocado apenas por que é vazio.

Bandeiras discursos e hinos podem ser e freqüentemente tornam-se instrumentos eficazes disso.

Bandeiras, minhas caras irmãs e irmãos na Humanidade, se houvessem de ser consideradas como remédios seriam desses que podem nos causar dependência física e psicológica.

E – já que falávamos de cores – de todas as que já tenham servido em auxílio do que seus idealizadores pretenderam simbolizar, parece que sempre esqueceram-se de acrescentar aquele único matiz que nos serviria, a título de tarja preta, a nos alertar contra esses perigos.

Não gostaríamos porém de haver chegado à esta parte de nossa conferência dando aos presentes a falsa impressão de que o melhor a fazer seria livrarmo-nos de vez de todas essas enganosas exterioridades.

Não afirmamos nada disso.

Antes diríamos que de pouco adiantaria combater dessa forma tais símbolos, ainda mesmo que estes não fossem combatidos por outros, como se de sua pura e simples supressão nos fossem arrancados os últimos obstáculos que ainda nos impedissem de uma compreensão melhor das coisas, e de uma comunhão humana mais franca e direta.

Não.

No fundo, nenhum sinal exterior, por mais simples que nos seja dado expressá-lo – sem excetuar aqueles da mais rigorosa palavra escrita ou os do mais preciso número – estarão livres disso.

Nenhum símbolo terá jamais como dispor do que seria esse poder mágico de repelir para bem longe de si, todos quanto dele queiram servir-se com maus propósitos ou com propósitos antagônicos aos que o fizeram nascer.

Assim, o repúdio indistinto que se alimentasse quanto ao uso das bandeiras seria o mesmo sentimento que nos acabaria por condenar ao mais absoluto e estéril silêncio a respeito de tudo, e a começar por aquilo que ser-nos-ia o mais urgente reclamar.

Imagens são meios lógicos legítimos, e indispensáveis ao bom uso da razão. Nossa mente busca incessantemente por elas e haverá de encontrá-las quer existam quer não, como o atestam as experiências de privação sensorial e as célebres ilusões de óptica elaboradas pelos psicólogos da Gestalt.

A proibição islâmica do uso de imagens no interior das mesquitas jamais chegou a impedir de fato o culto delas, tendo antes sofisticado-lhe a expressão, disfarçada então por belíssimos e intrincados pictogramas que apesar de formarem imagens como de pássaros etc., constituem para todos os efeitos cultuais apenas frases escritas do Corão.

E com a proibição protestante do culto às imagens, dar-se-ia algo que só podemos chamar de uma grotesca vingança do cérebro quando artificialmente impedido de um de seus instrumentos naturais: em nome de um zelo que fez os pastores repelirem ferozmente como anti-bíblicas as imagens de Jesus e de santos, eis que vemos hoje esses líderes não hesitando em fixar à entrada de seus templos, fotografias em tamanho natural... de si próprios.

 

*          *          *

 

O título que demos à nossa apresentação deixou de pé a promessa de examinar alguns mitos criados em torno de nossa bandeira.

Ao havermos sumariado as condições mais gerais que nos permitem fazer bom uso de uma bandeira e evitar-lhe os abusos, cremos ter cumprido uma parte dessa promessa, cabendo-nos agora tomar, como ilustração, o que nos pareceu o mais interessante mito que a nossa bandeira já tenha inspirado, ao menos até aqui.

Na verdade existem inúmeros deles, ao gosto do freguês; mitos calculadamente insolúveis e que permitem aos que se estimam imaginando-se parte de uma elite de detentores de conhecimentos misteriosos e profundos, colher tais preciosidades, de onde e como bem queiram, na certeza de que jamais essas informações poderão ser confrontadas por jamais poderem ser comprovadas.

Esses mitos vão desde a exploração de óbvias coincidências (como a que alimentou a história de que a bandeira brasileira derivou de um certo ladrilho desenterrado de um povo antigo) e pela pueril hipótese de que na inscrição do lema, teria havido um erro de confecção que determinou a que ao invés de um suposto “ordem é progresso” (afirmação que de fato o positivismo jamais endossaria) acabou-se ficando mesmo com “ordem e progresso”; indo até as mais delirantes elucubrações esotéricas, que fazem ver nas disposições das suas estrelas uma cifra que esconde sabe-se lá que código ultra secreto.

A propósito, conquanto as mais completas tiranias tenham até aqui encontrado sempre maiores entraves em distorcer palavras do que imagens, seria um erro supor que um lema como o da nossa bandeira, mesmo encontrando-se tão visceralmente unido a uma doutrina pautada do começo ao fim pela simpatia e pela clareza como é o positivismo, a preservasse melhor de todo tipo de interpretações equivocadas, que para existirem, de nada mais carecem senão de um certo tipo de má-fé que aliás, nunca anda em falta.

E nem se diga que tal circunstância deva-se ou mesmo possa ser imputada ao autor do nosso pavilhão e à natureza do lema escolhido.

Podemos até supor que a bandeira brasileira, dada a pluralidade maior dos elementos que a compõe, e que os tornam um a um, outros tantos motivos adicionais de incompreensão, preste-se, com menor dificuldade que outras, a tais mal entendidos; mas, mesmo aí, isso se deverá atribuir primordialmente ao fatal espírito anti histórico que domina o nosso povo; aliando-se a isto, uma credulidade viciada em conceber más intenções para tudo.

Aliás, fala-se com muita freqüência (e na maior parte dos casos com razão) dos riscos que existem quando um povo começa a temer, ao invés de amar a sua bandeira.

Entre nós, porém seria antes o caso de sugerir que coubesse à bandeira a necessidade de temer o seu povo.

É nos mitos inspirados pelas assim chamadas teorias conspiratórias (em geral de uma natureza mais diretamente política) que nós haveremos hoje de encontrar o mais popular dentre eles.

Tal mito, ao contrário daqueles cuja natureza fantástica assinalamos, sendo em aparência o mais plausível e de conteúdo mais singelo, não demorou a conquistar em torno de si um verdadeiro séquito crescente, que hoje forma inclusive um movimento que já tem nome e sobrenome, o movimento “Põe Amor na Bandeira”.

Tal movimento reivindica (não só como ato de justiça para com o positivismo) como sobretudo devido à própria urgência de estimular-se sociabilidade no conjunto da vida humana, o que seria a pretendida “reintrodução” do amor no lema da bandeira.

Consideram os proponentes dessa alteração que a máxima “O Amor por Princípio e a Ordem por Base, o Progresso por Fim” teria sido mutilada em seu significado maior, ficando a palavra “amor” deliberadamente de fora da bandeira, de modo a evitar-se qualquer referência ao que – ninguém o ignora- é o mais poderoso, radical e efetivo elemento de subversão contra uma ordem social injusta.

E é assim que o único remédio seria então restaurar ao que teria sido um lema amputado (ou mais exatamente castrado) a sua pulsação original, pondo fim a esse suposto logro imposto ao povo como parte de uma manobra ardilosa de políticos interessados em manter um status social no qual o amor – não podendo ter vez nem voz – tampouco poderia figurar como parte principal do que uma bandeira nos tenha a inspirar.

Mas seria mesmo esse o caso? Teria mesmo havido essa tal conspiração contra o amor?

Vejamos:

Em primeiro lugar, devemos dizer que este pareceu-nos por assim dizer, o mais simples, simpático e estético erro a que uma interpretação mal informada a respeito da nossa bandeira já tenha conduzido, e portanto haverá de ser aquele mito, que – na condição de único a nos merecer hoje uma crítica séria – será examinado aqui.

Acima porém da crítica que devemos fazer-lhe, cabe-nos antes de tudo acolher o valor intrínseco daquela reivindicação social, inteiramente justa e mesmo oportuna, extraindo-a para nós em toda a sua pureza e ternura; e desvinculando-a por completo do que possam ter sido suas pretensas justificativas históricas.

Aliás é assim que nós veremos como a Humanidade – a exemplo de seu precursor todo poderoso – também escreve, embora involuntariamente, certo por linhas tortas.

De fato, quer no presente caso como em tantos outros, é possível chegar-se a conclusões acertadas mediante pressupostos falsos.

Uma cadeia de operações lógicas que tenha sofrido dois erros opostos que se neutralizam, pode muito bem produzir por fim um resultado correto, tal como se ambos os erros não houvessem sido cometidos.

E mais ainda. É até possível que aqueles erros não percebidos – e que conduziram a conclusões acertadas – sejam-nos mais convincentes para tal, do que o seriam as mais corretas justificativas que os melhores argumentos pudessem comportar.

Se o inferno está cheio de boas intenções, o paraíso bem pode estar – e mais ainda do que aquele – repleto de diabólicas ilusões.

Devemos pois, ter em conta acima de tudo o quanto essas pessoas, guiadas por uma honestidade sem igual, souberam assim ultrapassar os preconceitos que pairam contra o positivismo, honestidade que acabou por brindá-las com a exata compreensão intuitiva do que constitui o espírito geral dessa doutrina; fazendo-as perceber a efetiva (e já assinalada pelo próprio Comte) superioridade da fórmula suprema da Religião da Humanidade, quando comparada ao seu simples lema político “ordem e progresso” dela aliás derivada e a ela subordinada.

Embora precisemos ao mesmo tempo louvar essa nobre e mesmo sintomática iniciativa, quanto apontar o erro fatal em que o movimento inteiro incide; nós o faremos valorizando bem mais o sentimento que inspirou o ideal de sua proposta, do que concentrando, ainda que em nome da verdade, nossa atenção em vãs invectivas contra a inevitável hipótese fantasiosa de que eles precisaram servir-se, a fim de patentear necessidades afetivas ineludivelmente reais – e mesmo urgentes – para todos nós.

Só assim seremos capazes de ver como é que tais pessoas, ocupando o espaço vago onde faltou um conhecimento teórico genuíno para o que estavam querendo dizer, no fundo acabaram por conquistar sem o saberem (e talvez sem mesmo o desejarem) o mais alto posto de uma vanguarda social única que, como veremos, a própria doutrina positivista já lhe havia previsto o aparecimento e assinalado-lhe o papel; e cujo desempenho, no caso deles, torna-se tanto mais cercado de garantias e tanto mais autenticamente expressivo, quanto mais eles não podiam simular nada daquilo.

Sim.

É de fato chegada a hora de fazer valer suas reivindicações mas não pelo modo, e nem pelos motivos que esse movimento alega.

A primeira e a mais fundamental informação que faltou ao conhecimento de seus integrantes (e que, mais do que qualquer outra precisa ser aqui apresentada) é a de que a atual bandeira republicana foi concebida para ser uma bandeira provisória.

Em outras palavras a bandeira republicana havia sido destinada – já a partir do momento mesmo em que foi concebida – a ser algum dia, substituída por outra.

Tratou-se, pois, de uma bandeira criada com tempo de vida não somente definido, como verificável segundo certos sinais sociais precisos a serem tomados como indícios do cabal preenchimento da sua missão original, e assim também do seu efetivo esgotamento e de sua necessidade de substituição.

Cabe-nos portanto examinar se o clamor espontâneo que esse interessante movimento começa a erguer hoje, corresponderia de fato à efetiva chegada daquele momento histórico prognosticado por Augusto Comte e, então em vista disso, oferecer-lhe o nosso apoio sistemático, por piores que sejam os argumentos de que ele ainda insista em se servir para justificá-lo, dando-lhe porém, e ao mesmo tempo, todas as luzes de nossa doutrina na esperança de que venha-se por fim a reconhecer o caráter que embora moralmente justo de suas reivindicações, mostra-se distorcido em teoria e talvez até prematuro na prática.

Ora, se a insuficiência afetiva do lema ordem e progresso, base espontânea de tudo o que eles pressentiram tão logo tomaram seus primeiros conhecimento mais ou menos apressurados da fórmula suprema do positivismo, é um FATO, e um fato atestado pelas próprias palavras de Augusto Comte numa carta ao seu mais célebre discípulo, Pierre Laffitte; talvez se pergunte por que diabos alguém haveria de – contrariando tudo que sempre se fez ao se compor uma bandeira – criar uma que cedo ou tarde teria seu prazo de validade vencido?

Afinal, se uma bandeira deve existir pelo que ela representa em termos dos nossos mais nobres ideais, e se estes mesmos, só podem corresponder a verdades essenciais sobre nossa natureza, por qual razão não possuiriam elas o dom da eternidade?

Para que possamos entender isso, precisaremos compreender antes de tudo que as sociedades mudam.

O século XIX não estava preparado para assimilar em toda a sua extensão, o papel do amor; ao menos tanto quanto já estava preparado para compreender a necessidade de conciliar a ordem com o progresso, muito embora mesmo isso fosse um caso problemático.

Para que ambas essas compreensões fossem possíveis teria sido necessário que o positivismo já estivesse bem mais espalhado e que o seu sacerdócio já estivesse minimamente constituído, coisa que só agora está começando a acontecer de novo.

Estava-se numa época brutal, em que a inclusão do amor teria sido fatalmente tomada como uma idealização romântica, como um devaneio açucarado, como uma excrescência ou mesmo, como foi o caso de se dizer, como um meio a mais de entreter o proletariado contra a exploração que sofre, como mais um ópio do povo.

Que resistências enormes teve Freud ao tentar passados já meio século da morte de Comte, mostrar que o pretendido império absoluto da razão humana é ilusório, e que como Comte afirmava “nada é indiferente perante o sentimento”?

E nem se diga que mesmo os artistas estivessem então mais livres desse preconceito racionalista.

Por acaso não foi verdade que, entre nós, um modernista da semana de 22 gostava de referir-se ao positivismo como “um grande porre de guaraná espumante”?

E não é verdade que comparando-se isto com tudo o que ainda se haveria de tentar caracterizar a Religião da Humanidade, aquela definição até poderia ser tomada como lisonjeira?

Portanto, parece-nos fora de dúvida que se na apresentação da bandeira republicana as coisas houvessem sido colocadas na base de um “tudo ou nada” o resultado seria o da pura e simples rejeição à ela, por uma completude deslocada que a deixaria numa condição além da possibilidade de assinalá-la.

O que teria sido melhor, então, perguntamos? Que tudo fosse rejeitado, ou que ao menos alguma coisa de sua fórmula sagrada já pudesse figurar como parte do nosso ideal social?

Foi por haver sido capaz de antecipar-se a isso que Augusto Comte concebeu sua bandeira provisória, e não por conta de nenhuma suposta conspiração anti-amor.

Apenas isso: não era ainda o momento.

Haverá de sê-lo hoje? Quem sabe? A sociologia positiva permite até certo ponto, e mesmo nos convida a anteciparmo-nos ao futuro, não só prevendo, por assim dizer, quais as suas diversas fases sucessivas e os traços mais característicos de cada uma; como oferecendo-lhe algo que facilite sua marcha.

Isto é claro descartando a dupla hipótese antipática de que a Humanidade haverá de submergir por completo como espécie, ou a de que flutuará indefinidamente à deriva nas oscilações que hoje formam as diversas marés políticas, econômicas, religiosas, midiáticas etc.

Assim para que seja-nos possível compreender cabalmente que sentido pode haver numa bandeira provisória, precisaríamos discutir agora em que consiste essa própria marcha geral do progresso humano e suas correspondentes necessidades de simbolização.

Infelizmente porém seria impossível realizarmos tal exposição, ainda que sumária; no tempo a que o mínimo respeito à paciência dos ouvintes, ainda nos permitiria reivindicar.

Tais informações indispensáveis podem ser obtidas pela leitura das obras de Augusto Comte e de seus primeiros discípulos já falecidos, bem como pela consulta às atualíssimas obras impressas dos contemporâneos apóstolos do positivismo Gustavo Biscaia de Lacerda e Arthur Virmond, das infatigáveis conferências dominicais na capela da Humanidade de Porto Alegre realizadas pelo apóstolo Érlon Jacques (e também pelo Gustavo em seu canal no Youtube) e enfim, na venerante página do Facebook do apóstolo Luiz Gustavo Mota.

Como dissemos logo no começo de nossa exposição, o objetivo traçado aqui foi o de alertar; e assim pensamos que deva ser também com tal espírito que melhor conviria encará-la, o que deve, infelizmente nos provocar sensações e pensamentos desconfortáveis.

O culto à bandeira nacional parece-nos ter sido por tal forma cooptado pelos setores mais – digamos – transtornados da população, que ele precisaria ainda por um bom tempo, expurgar-se do visgo deixado por sua derradeira apropriação indébita, antes que se opere por fim, o devido retorno ao seu genuíno propósito original.

Todo cidadão consciente, e em particular o nosso pequeno grupo de positivistas e seus simpatizantes aqui reunidos, não podemos continuar nos sentindo constrangidos quer pela ausência de informação das massas quer sobretudo pela profusão das falsas informações acadêmicas.

Ambas fatalmente acabarão – de boa ou de má-fé – associando-nos de algum modo àqueles patéticos episódios que ainda aguardam por justiça, e pelos quais a bandeira republicana foi vilipendiada como nunca, em tudo quanto ela encerra como ideal de ordem e de progresso, para não dizer de amor, ordem e progresso.

Não podemos nos sentir – e tanto mais agora – obrigados a ocultar nossos melhores sentimentos cívicos, e tampouco podemos evitar comunicar o que apenas nós estamos em plena condição de revelar a respeito desses mesmos ideais expressos, mas como também já vimos, oculto – no lema de nossa bandeira.

Por mais tristemente plausível que seja o perigo de que se nos identifiquem àquele exército de Brancaleone, e portanto a tudo quanto nós mais e sempre abominamos (já não dizemos nem em matéria de política ou de ideologia) mas como simples modo de existir; não evitaremos externar as nossas mais legítimas expressões de amor e de reconhecimento por aquele símbolo conspurcado, e por tudo o mais que nos sirva para bem representá-lo.

Estejamos, pois um pouco mais atentos à má utilização que nesses tempos confusos sempre se haverá de fazer dos símbolos quaisquer, e em particular daqueles que integram a oficialidade do estado.

Que esse nosso alerta e pedido possam assim servir para que a distância física que tanto já nos separa das alturas em que as bandeiras costumam tremular, não seja também aquela que nos coloque no fundo de um abismo, que haverá de nos separar de nossa própria lucidez, em relação a tudo aquilo que uma bandeira faz e deve continuar fazendo lá em cima.

Se minhas por vezes angustiosas palavras puderem contribuir para melhor amar, compreender e festejar a nossa bandeira; sempre em nome da Humanidade – terei, apesar de mim, cumprido aqui o nosso propósito, e encerrado como convém um momento tão importante e maravilhoso como foi o deste nosso primeiro encontro.

Muito obrigado.

Quero dedicar esta conferência muito especialmente à minha esposa Sandra, que assinalou uma lacuna importantíssima no texto, a qual, se não houvesse sido preenchida, tê-lo-ia deixado incapaz de transmitir uma de suas idéias mais essenciais.