Mostrando postagens com marcador Integração social. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Integração social. Mostrar todas as postagens

15 fevereiro 2017

Gazeta do Povo: "Pelo universalismo includente, contra a 'apropriação cultural'"

O artigo abaixo foi publicado em 15.2.2017 na Gazeta do Povo, de Curitiba. O original pode ser lido aqui.

*   *   *



Nos últimos dias tem recebido destaque, entre os círculos “socialmente engajados”, a ideia da “apropriação cultural”: de acordo com seus defensores, essa proposta promoveria a justiça social e combateria a exploração. O raciocínio é simples: em nome da defesa da cultura de grupos excluídos e/ou explorados, a “apropriação cultural” propõe ser ilegítimo que um membro de uma “cultura” utilize elementos de outra “cultura”.
Essa proposta tem origem nos Estados Unidos, em que a noção de raça é importante e fundamenta a cultura. Lá, os indivíduos definem-se como membros de grupos específicos, determinados pela origem étnica – que, por sua vez, poderia ser aferida de maneira objetiva por atributos físicos –, em vez de verem-se como cidadãos de uma república e integrantes de uma comunidade cultural e política única, mas plural. Além disso, os grupos sociais são justapostos entre si, não se misturam e evitam a mistura. No lugar de universalismo e integração social e cultural, o que há são censuras, “identidades”, rejeições, desconfiança e, claro, ódio mútuo. Embora chamem-no de progressista, esse modelo lembra as propostas de Donald Trump.
A ideia da “apropriação cultural” resulta em intolerância e divisões de ódio

Pode-se argumentar que essa descrição está errada, mas o fato é que ela corresponde a um modelo sociológico amplamente aceito, divulgado e entendido como válido para organizar a sociedade – e para ser exportado. No Brasil, a despeito de afirmarmos que queremos a emancipação intelectual em relação ao “Norte”, o fato é que consumimos avidamente esse modelo e desde há algumas décadas estamos implantando-o na forma de políticas públicas, grotescamente chamadas de “inclusivas”.
É difícil apresentar a “apropriação cultural” sem evidenciar que ela endurece e objetifica vilmente a cultura, tornando-a algo estático, fechado e exclusivo de grupos determinados; e mais: que ela associa a cultura a traços físicos dos membros desses grupos, de tal maneira que a cultura acaba tendo fundamentos estritamente genéticos. Ou seja, salta aos olhos o aspecto racista da “apropriação cultural”.
Pode-se argumentar que ela busca defender e proteger grupos socialmente frágeis. Mas esse é o caso de um suposto remédio que mata o paciente – e envenena todos ao redor. Pois é disso que se trata: a ideia da “apropriação cultural” estabelece que cada grupo social tem sua cultura exclusiva, que é proibida aos demais. Se a cultura é exclusiva, ela não deve ser misturada: logo, deve haver escolas específicas para cada grupo – para brancos, para negros, para mulatos, para japoneses, talvez para judeus... o século 20 já viu aonde vai dar isso.
No Brasil, pelo menos desde o século 19 celebra-se a miscigenação cultural como constituinte de nossa sociedade: os românticos, os abolicionistas, os republicanos diziam-no. O movimento que se considera fundador da nossa modernidade cultural, a Antropofagia, celebrava a mistura. Assim, a ideia da “apropriação cultural” não apenas é contrária aos fundamentos da sociedade brasileira; ela é retrógrada em mais de um século.
Escrever contra a ideia de “apropriação cultural”, a favor do universalismo, de políticas inclusivas, da fraternidade, da miscigenação étnico-cultural, das trocas culturais é expor-me à acusação de... racismo. Isso deveria ser apenas chocante ou risível, mas é verdadeiro e produz resultados muito concretos. Além do rótulo negativo atribuído injustamente a quem é a favor da emancipação humana e da fraternidade, a ideia da “apropriação cultural” resulta em intolerância e divisões de ódio. Por mais que se propagandeie o contrário, é necessário dizê-lo com clareza: isso simplesmente não é progressista, pois todos saímos perdendo.
Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.

13 maio 2015

13 de maio - fraternidade dos brasileiros

O dia 13 de maio é celebrado no Brasil como o da abolição da escravidão. Por si só, sem dúvida alguma, isso deve ser celebrado e valorizado, pois foi o momento em que no país finalmente se encerraram séculos da exploração mais vil de seres humanos por outros seres humanos, em que uns eram propriedade de outros. A escravidão no Brasil deu-se inicialmente contra os indígenas autóctones e, depois, contra os africanos, que se tornaram imigrantes forçados.

Por outro lado, como também sabemos, a escravidão gerou efeitos persistentes na sociedade brasileira, de que o racismo contra os negros e a exclusão das populações descendentes dos antigos escravos são dois dos mais graves. Isso se deve à própria escravidão mas, também, ao fato de que a sua abolição, em 1888, não foi seguida por medidas públicas e privadas no sentido de integrar os antigos escravos à sociedade nacional, com ensino público, frentes de trabalho em condições dignas, moradias populares etc.

Ainda assim, é importante notar que a campanha abolicionista desenvolveu-se ao longo da década de 1880 e envolveu os mais variados setores da população brasileira, incluindo as elites, setores populares, ex-escravos, membros da “nobreza” nacional.

Entre todos esses grupos, os positivistas tiveram papel destacado, seguindo nesse sentido as orientações de Augusto Comte – fosse como favoráveis à abolição imediata sem reparação para os donos de escravos, fosse como favoráveis à incorporação social dos antigos escravos, fosse como cidadãos que não admitiam entre suas fileiras donos de escravos: por exemplo, Miguel Lemos e Teixeira Mendes, diretores da Igreja Positivista do Brasil, expulsaram de seu grêmio donos de escravos que se recusavam a alforriar seus cativos.

Da mesma forma, o Positivismo celebra a independência do Haiti, na figura do "general de ébano", Toussaint de L'Ouverture.

Além disso, o também positivista Benjamin Constant Botelho de Magalhães[1] e Deodoro da Fonseca, respectivamente na qualidade de vice-Presidente e Presidente do Clube Militar, recusaram em 1887, em nome da tropa, a usar o Exército a perseguir os escravos fugitivos.

Em outras palavras, é indiscutível que a abolição por si só foi um passo importantíssimo para o Brasil – mas, ainda assim, foi um passo insuficiente, pois não foi seguido das necessárias medidas de valorização e de integração social.

É exatamente como um esforço em favor da integração social dos descendentes dos antigos escravos que os positivistas propuseram desde o início da República a comemoração do dia 13 de maio. Na verdade, os positivistas propuseram essa data como celebrando a integração não apenas dos negros, mas de todos os elementos sociais e culturais da sociedade brasileira. Nessa utopia, não se contrapõem os "negros" contra os "brancos", mas eles unem-se e fundem-se, a fim de melhorar o Brasil, cada qual com suas características.

Assim, não deixa de ser motivo de profundo lamento que o dia 13 de maio não seja mais feriado nacional: essa perda de status dessa data indica o quanto a integração e o universalismo não são mais valores nacionais, cada vez mais substituídos pelos vários particularismos. 

É claro que não precisamos concordar com tais particularismos: é por isso que celebramos o projeto de um país que respeite e valorize toda a sua população, com suas particularidades entendidas como traços enriquecedores do patrimônio comum e não como motivos para segregacionismos.



Cartaz gentilmente criado pelo amigo João Carlos Silva Cardoso.





[1] Que, alguns anos depois, foi o fundador da República Brasileira, no glorioso movimento de 15 de novembro de 1889.

20 novembro 2014

04 janeiro 2007

Teorias sociais, violência e integração

Teorias sociais, violência e integração
Gustavo Biscaia de Lacerda[1]

Há alguns dias o meu amigo Elias Marcos Gonçalves fez-me uma pergunta bastante interessante. Infelizmente, como sói acontecer com as perguntas interessantes, essa não tinha uma resposta simples ou direta, exigindo considerações um pouco mais amplas. O curioso é que essa pergunta, em virtude dos acontecimentos recentes em São Paulo e em outras unidades da federação, tem uma atualidade dramática: quais teorias sociais insistem na violência, quais insistem na integração dos indivíduos?
Como se verá, este artigo não comporta nenhuma conclusão; ele consiste mais em uma longa exposição feita para um amigo, que julguei útil pôr à disposição de um público mais amplo. É claro que é limitado – mas é apenas uma introdução sumaríssima em duas páginas e meia.
Uma primeira resposta sobre o tema da violência é: todas abordam-no. A violência, percebida como algo positivo, negativo ou simplesmente um fato da vida, é algo presente em todas as sociedades e, portanto, todas as teorias têm que se haver com esse fato. O que muda, portanto, é o juízo de valor, ou, por outra, a maneira de lidar com ela – e aí as perspectivas são as mais diversas possíveis. Em todo caso, é interessante notar que a posição a respeito da violência tem uma certa simetria em relação à integração social, no sentido de que quanto maior a ênfase na integração, menor a na violência.
Além disso, é necessário um comentário talvez epistemológico: as teorias podem ou não pretender ser aplicadas mais ou menos imediatamente na prática. Assim, elas podem ser apenas o conhecimento do que os seres humanos fazem, importando apenas e tão-somente esse conhecimento, ou elas podem ser também um instrumento prévio para uma ação prática posterior. O grau de politização daí decorrente, ou seja, o grau de comprometimento com propostas político-partidárias variam.
O francês Augusto Comte, fundador da Sociologia, tinha uma perspectiva histórica da violência, especialmente no que se refere à evolução do Ocidente. Assim, na Antigüidade e na Idade Média a prática política e econômica fundava-se na violência mais ou menos sistematizada, mas na modernidade as relações tendem a ser pacíficas, com a violência sendo cada vez mais abominada (e abolida). Todavia, é importante notar que, para Comte, enquanto o Estado mantém a ordem civil (em última análise por meio da violência), a sociedade deve organizar-se autonomamente, de acordo com sua dinâmica própria, havendo um amplo espaço para o poder da opinião pública; a opinião pública, na verdade, é um outro poder, que se contrapõe ao Estado, complementando-o, por meio da legitimidade. Sendo os seres humanos ao mesmo tempo egoístas e altruístas, a integração social dos indivíduos dá-se em vários níveis: na economia, na vida cívica, na família, nas igrejas e escolas.
O alemão Carlos Marx talvez seja mais famoso (embora não necessariamente o mais conhecido). Suas opiniões teóricas a respeito da violência e da integração eram bastante ambíguas, se bem que suas opiniões práticas não o fossem. Para ele, a sociedade, capitalista, é uma violência institucionalizada: a burguesia explora economicamente o proletariado, alienando-o dos resultados de seu trabalho e do que o faz um ser humano. A violência a que é submetido o proletariado é ruim, mas para acabar com ela apenas mais violência, por meio da revolta coletiva, da classe proletária contra a classe burguesa, por meio da revolução social. O sentido da “revolução”, nesse caso, não tem nada de metafórico: Marx tinha em mente a Revolução Francesa, de 1798, e, depois, a Comuna de Paris (1871), quando usava essa palavra, pensando em uma violência apocalíptica e, messianicamente, redentora. A integração no capitalismo é um embuste; para criar uma verdadeira integração, apenas com o fim do capitalismo, que será também o fim das classes e da violência. Em suma: a violência é ruim, mas já que existe...
O francês Emílio Durkheim elaborou sua teoria sociológica observando os tipos de integração que cada sociedade apresenta, chegando a dois tipos extremos: a solidariedade mecânica e a orgânica. Enquanto a primeira caracteriza-se pela pouca diferenciação entre os indivíduos, a outra consiste na grande diferenciação entre cada qual, sendo que cada um tem uma grande consciência de si. Na solidariedade orgânica, os indivíduos são integrados à sociedade pela íntima dependência funcional que todos apresentam em relação a todos; além da divisão do trabalho, a consciência de que participam de um empreendimento comum é importante para essa integração. Ora, quando há integração, não há violência e vice-versa: são necessárias, portanto, instituições que permitam a cada um integrar-se econômica e “psicologicamente”.
Por fim, o alemão Max Weber tinha uma perspectiva mais limitada em relação a esses temas. Para ele, a violência era um fato da vida; nos limites do território nacional, o Estado é que controla exclusivamente seu uso legítimo mas, entre as nações, não há essa exclusividade e, se for necessário, que seja utilizada (Weber era um defensor do imperialismo alemão prévio à I Guerra Mundial, embora fosse admirador de Bismarck e, portanto, prudente). Weber não pretendia que sua teoria sociológica fosse “utilizada” – pelo menos, não além da compreensão das motivações humanas em seus atos.
É interessante notar que, mais recentemente, dois autores franceses, sem serem marxistas – aliás, bem longe disso! – adotaram perspectivas semelhantes à marxista no que se refere à violência na sociedade. Pedro Bourdieu e Miguel Foucault afirmaram, a respeito de diferentes objetos, que a violência é constitutiva da sociedade: para Bourdieu, além da violência física de que o Estado é o detentor em regime monopolístico, existe a violência simbólica, que, grosso modo, a classe dominante exerce sobre a classe dominada. Para Foucault, além da “grande violência” controlada pelo Estado, há uma série de “microviolências” que perpassam toda a sociedade, com vistas ao controle e à manipulação dos corpos individuais: a escola, o hospital, a prisão.
Já o norte-americano Talcott Parsons retomou, de maneira bastante idiossincrática, a perspectiva durkheimiana, enfatizando a integração dos indivíduos na sociedade e a irrupção da violência como sinal de falha nessa integração.
Os autores acima foram teóricos sociais, mas é importante não deixar de lado a teoria política. Mais que na teoria social, na teoria política a violência é um tema central e as relações violência-política delimitam duas grandes linhas teóricas: as que as percebem como antinômicas e as que as percebem como estreitamente vinculadas.
Aristóteles é o grande autor que apresenta a primeira corrente. Segundo ele, a violência pertence aos âmbitos doméstico e “internacional”: ela é possível “apenas” com a família, com os escravos e com as outras cidades, mas na deliberação pública dos rumos a seguir, entre indivíduos livres e iguais que buscam o bem comum, ela não é possível. Em outras palavras, a violência é pré-política, infrapolítica e extrapolítica – jamais verdadeiramente política. Essa concepção foi esposada pelos teóricos da Idade Média – Tomás de Aquino, por exemplo – e, após um longo interregno, foi retomada pela alemã Hannah Arendt, no século XX, que afirmava a centralidade do diálogo racional e tolerante para a vida política. O também alemão Jürgen Habermas tem uma concepção semelhante, com sua “teoria do agir comunicativo”. É claro que a violência, para esses autores, representa o fracasso da integração e a impossibilidade de uma coletividade.
A segunda corrente surgiu, historicamente, da negação da primeira, e é mais “moderna”, isto é, mais próxima de nossa realidade. Entre seus grandes autores podemos indicar o inglês Tomás Hobbes e o italiano Nicolau Maquiavel. Ambos consideravam que o ser humano é naturalmente violento, sendo necessário determinar os meios de controlar e/ou usar essa violência com fins legítimos. Para Hobbes, o potencial de violência é tão grande que apenas um poder absoluto, obtido pela cessação da liberdade de todos os indivíduos menos um, pode impor a paz. Maquiavel considerava que a violência é um meio entre outros de que dispõem os homens para a consecução de seus objetivos: a questão é saber se ela é adequada, não se ela é “legítima”. Exceção feita a H. Arendt e a Habermas, as teorias políticas contemporâneas adotam variações ou derivações das de Hobbes e Maquiavel.
Por fim, uma última teoria política que vale a pena citar, neste contexto, é a do alemão Carlos Schmidt. Mais ou menos variação da anterior, sua concepção é interessante porque afirma que a “essência” da política é a oposição amigo-inimigo: a partir do momento em que distinguimos entre “nós” e “eles”, por um motivo qualquer, estamos na política. Os motivos e os meios que opõem os “amigos” dos “inimigos” podem ser os mais variados possíveis – e a violência é um instrumento evidente.
Nessa segunda tradição de teoria política não se pode falar propriamente de “integração” (embora na primeira também não se possa); com Max Weber, é melhor falar em “legitimação”. A dissensão está sempre presente, às vezes à espreita; o que cumpre fazer é civilizar esses impulsos, mudando os hábitos e os costumes e criando instituições capazes de receber demandas de divergência, processá-las e dar respostas adequadas.