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15 março 2023

Anotações sobre a laicidade

No dia 17 de Aristóteles de 169 (14 de março de 2023) fizemos nossa prédica positiva. Em um primeiro momento, demos continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua sexta conferência, dedicada ao conjunto do dogma; em particular, abordamos a lei estática do entendimento.

Em seguida, na parte do sermão positivo, apresentamos algumas reflexões sobre a laicidade do Estado: as anotações que serviram de base para essa exposição estão reproduzidas abaixo.

A prédica foi transmitida nos canais Apostolado Positivista (aqui: acesse.one/Laicidade1) e Positivismo (aqui: encr.pw/Laicidade2). O sermão sobre a laicidade pode ser visto a partir de 41' 50".

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Anotações sobre a “laicidade do Estado”

 

-        Um dos temas mais importantes de qualquer organização política moderna é a chamada “laicidade do Estado”

o   Vale notar que, apesar de sua importância literalmente fundamental, ela é rotineira e generalizadamente negligenciada, seja pela teoria política, seja pelos políticos práticos

o   Essa negligência não me parece casual, pois a laicidade impõe uma auto-restrição que quase ninguém está disposto a assumir (na teoria e/ou na prática)

-        O Positivismo desde o início bate-se pelo que se chama de “laicidade do Estado”

o   Para o Positivismo, o que se chama de “laicidade do Estado” é um dos princípios fundamentais de qualquer organização política – isso para não dizer que é o princípio fundamental

o   Entretanto, para o Positivismo, o que se chama vulgarmente de laicidade é entendido como uma aplicação específica do princípio da separação entre os dois poderes

-        Quais são, então, os dois poderes?

o   Poder Temporal: responsável pela manutenção da ordem material das sociedades; baseia-se na força física; modifica externamente (objetivamente) a conduta dos indivíduos

o   Poder Espiritual: responsável pela formação e manutenção das opiniões, das idéias e dos valores; baseia-se na confiança e no aconselhamento; modifica internamente (subjetivamente) a conduta dos indivíduos

-        Historicamente os dois poderes estiveram unidos, ainda que com a subordinação de um ao outro

o   Na Idade Média houve um primeiro esboço de separação entre os dois poderes, com a separação entre o Imperador e o Papa

§  Essa separação foi proposta, no âmbito da teologia católica, por São João Crisóstomo (séc. IV)

§  O episódio da “ida a Canossa” (Henrique IV vs. Gregório VII, em 1077) indica tanto a separação entre os dois poderes quanto a subordinação moral do poder Temporal

o   As fés absolutas aproximam-se das ordens indiscutíveis; assim, o absoluto filosófico está próximo do autoritarismo político (e/ou do militarismo)

§  Inversamente, a fé relativa aceita e promove a ativa reflexão filosófica, social e política

§  Vale notar que países que têm retrocedido para o autoritarismo são países que, não por acaso, têm negado a laicidade (seus valores e suas práticas)

o   Na modernidade os dois poderes devem manter-se separados; a separação entre os dois poderes baseia-se em uma série de considerações morais, intelectuais e políticas inter-relacionadas entre si:

§  O fundamento de cada um dos poderes é diferente: o poder Temporal baseia-se na força física (ou seja, na violência), enquanto o poder Espiritual baseia-se na confiança e no convencimento

§  Cada indivíduo deve escolher suas crenças com liberdade e autonomia e não ser constrangido oficialmente para isso

§  Uma crença que usa o poder Temporal para estabelecer-se torna-se degradada, reconhecendo implicitamente que não tem forças para difundir-se sozinha

§  Um Estado que impõe uma crença determinada ao mesmo tempo indica que carece de legitimidade e estimula a hipocrisia pública

§  Os atributos próprios a cada um dos poderes são diferentes: o orgulho para o poder Temporal, a vaidade para o poder Espiritual

§  As perspectivas de cada um dos poderes são diferentes:

·         O poder Temporal visa a mudar materialmente a sociedade, concentrando-se no presente (solidariedade), em operações parciais e sendo objeto de disputas francamente egoísticas;

·         O poder Espiritual visa a mudar afetiva e intelectualmente a sociedade, afirmando a continuidade humana ao longo da história, estimulando as visões de conjunto e buscando estimular o altruísmo e regular o egoísmo

§  Com base na separação dos dois poderes, o Positivismo garante a legitimidade do Estado, a dignidade espiritual e rejeita que problemas morais sejam solucionados pela via temporal (somente pela via espiritual, ou seja, pelo aconselhamento e pela educação)

-        De um ponto de vista político, a separação dos dois poderes resulta em que os indivíduos têm a mais completa liberdade para formarem e/ou mudarem as suas próprias opiniões

o   Evidentemente, como já indicamos, qualquer opinião baseia-se sempre na confiança depositada pelo crente em um órgão espiritual qualquer

o   De maneira concreta, a separação entre os dois poderes realiza-se na forma da “laicidade do Estado” e é completada por três liberdades fundamentais: (1) de consciência, (2) de expressão e (3) de associação

-        Do exposto acima, torna-se claro que a laicidade do Estado não é:

o   Não é o estabelecimento de Estado ateu

o   Não é o estabelecimento de Estado pluriconfessional

o   Não é anticlericalismo

-        Há alguns detalhes adicionais sobre as diversas fases da transição derradeira, para Augusto Comte, em particular a ausência de qualquer financiamento teórico (igrejas teológicas, universidades metafísicas e mesmo a igreja positiva)

-        Na teoria política mais recente (não por acaso especificamente francesa), a laicidade do Estado é afirmada em termos de cidadania:

o   A atual teoria política francesa da laicidade baseia-se na obra de Condorcet, que, antes de Augusto Comte, foi o maior teórico francês do tema

o   A laicidade assegura que, para a cidadania, requer-se apenas o respeito às leis do país

o   Inversamente, com a laicidade não se requer a adesão a nenhuma doutrina específica (e, conseqüentemente, nem a filiação a nenhuma organização específica)

o   No que se refere ao serviço público, isso gera uma ética específica: tudo aquilo que tem a participação do Estado, direta ou indireta, tem que se manter neutro em termos doutrinários

-        Há diferenças entre laicidade e tolerância:

o   Para o que nos interessa, a tolerância é a aceitação, mais ou menos ampla, da parte dos governantes em relação às crenças dos cidadãos que não comungam da doutrina oficial de Estado (a liberdade de crença é uma concessão do Estado e/ou do governante e, como concessão, pode ser mantida ou suprimida)

o   A laicidade é a afirmação da cidadania apenas no respeito às leis e não depende da boa vontade do Estado e/ou do governante (a liberdade de crença é o fundamento das liberdades públicas e da cidadania)

-        Laicidade de princípio e laicidade de compromisso:

o   Laicidade de princípio: é estabelecida considerando que ela é o fundamento das liberdades e da cidadania; ela fundamenta efetivamente uma organização social e política

o   Laicidade de compromisso: estabelece-se a laicidade porque nenhuma seita específica tem poder suficiente para impor-se sobre o conjunto da população; é claro que ela é instável

-        No Brasil a laicidade foi estabelecida plenamente apenas em 1890 e até 1931

o   Não por acaso, a laicidade na I República foi estabelecida graças à ativa e difundida propaganda do Positivismo

o   Antes de 1890 e após 1931 o país viveu momentos de religião oficial (colônia, império), religião semioficial e Estado para-pluriconfessional (após 1931, até hoje)

-        No Brasil atual a “discussão” sobre laicidade apresenta-se da seguinte forma:

o   A direita é claramente contra a laicidade ou é cinicamente alheia a ela

o   A esquerda oscila entre a rejeição e o alheamento (como a direita) ou – no caso da esquerda identitária – adota uma visão pobre e instrumentalista da laicidade para justificar o anticlericalismo tópico

o   Há serviços públicos realmente universais e ligados apenas à cidadania (SUS), mas há serviços públicos que exigem a adesão explícita a um determinado credo oficial (vestibulares de IFES)

o   A Constituição Federal de 1988 é extremamente contraditória:

§  Afirma a ausência de apoio, subvenção ou embaraço público às religiões (Art. 19, I)

§  Proclama a Constituição “em nome de deus” (Preâmbulo) e afirma a colaboração do Estado com igrejas em nome do interesse público (Art. 19, I)

o   Os doutrinadores jurídicos justificam essa aberração político-intelectual por meio das categorias (igualmente aberrantes) “Estado colaborador” ou “laicidade atenuada”

§  Vale notar que a laicidade não é uma questão de quantidade, mas de qualidade; ela seria uma categoria discreta (sim/não, presente/ausente) e não uma categoria contínua (mais/menos)

§  Assim, nenhuma dessas categorias jurídico-políticas a posteriori realmente faz sentido

06 setembro 2022

O verdadeiro antifascismo exige a autocrítica da esquerda

Eu sou antifascista; quem conhece-me sabe disso. Sou a favor da fraternidade e da liberdade, da harmonia e da paz, do desenvolvimento e do progresso. Enfim, sou um positivista.

O que eu escreverei, entretanto, desagradará muita gente.

O fascista e seus acólitos conspurcam, há muito tempo, os símbolos nacionais, a começar pela Bandeira Nacional e seguindo para o Hino Nacional (embora, evidentemente, por felicidade eles desconheçam outros símbolos).

Há gente autodenominada "progressista", gente de "esquerda" que, há algum tempo, tem denunciado essa conspurcação.

Mas a verdade é que a esquerda - os marxistas e outros grupos - tradicionalmente cuspiu nos símbolos nacionais: seriam "burgueses", "imperialistas", "alienantes". Da mesma forma, figuras heróicas, pacifistas, a favor da cooperação nacional e internacional, republicanas foram desprezadas e vilipendiadas em nome da "consciência crítica", da "consciência de classe" etc.: Tiradentes, José Bonifácio, Benjamin Constant, Cândido Rondon. Mas também dos símbolos internacionais: Danton, Jefferson, Toussaint Louverture. Atualmente, o reacionarismo identitário de esquerda inclui aí Colombo, James Cook... até mesmo Churchill!

No lugar dos símbolos nacionais, essas esquerdas sempre apresentaram a efígie de Che Guevara, de Lênin, de Stálin; a foice e o martelo, a Internacional Socialista, a luta de classes.

Desde criança leio, ouço e vejo manifestações reiteradas nesse sentido de políticos e de intelectuais de esquerda, sempre "progressistas". Com frequência ouço e leio que devemos ser "críticos" e que, por isso, "não precisamos de heróis" - com isso querendo dizer que as grandes personalidades da nossa história, aquelas que se dedicaram intensamente ao nosso país e à Humanidade, não merecem respeito nem consideração... mas isso apenas para que, logo em seguida, sejam apontados "heróis" "críticos", que diametralmente negam os valores do bem comum, da fraternidade, da liberdade: não o bem comum, mas o particularismo de classe.

(Quando criança, nos anos 1980, fazer a bandeira nacional na aula de artes era visto como brega, tolo, sem criatividade... talvez até fosse sem criatividade, mas, no final das contas, qual o problema? Na ausência de criatividade, um símbolo que une todos os brasileiros não é um bom exercício?)

Assim, não é à toa que os fascistas conseguem ao mesmo tempo afirmarem-se como "conservadores", "antiprogressistas" e também "patriotas". Se os "progressistas" são particularistas, destruidores e antinacionais, os fascistas têm todo o espaço do mundo para rejeitarem esse "progresso" (que é ao mesmo tempo falso e hipócrita) e serem conservadores (ou, ainda mais: para serem reacionários), mantendo o caráter destruidor e o particularismo (mas o particularismo nacionalista).

O combate ao fascismo no Brasil exige que essa esquerda faça uma autocrítica conscienciosa, profunda e urgente. Se hoje os símbolos nacionais são tomados pelos fascistas, isso implica, sim, culpa da esquerda. O particularismo nacional é afirmado em negação ao particularismo de classe na exata medida em que o particularismo de classe despreza os valores universais que abrangem também os valores nacionais.

No Brasil, mas também na Europa (a começar pela França), o Positivismo sempre foi alvo prioritário dos "progressistas" de esquerda e pelos reacionários de direita - e pelos mesmos motivos. Os positivistas somos a favor da fraternidade, da liberdade, da dignidade, da responsabilidade social, dos deveres, do "viver às claras" - e do pacifismo. Por isso mesmo, somos contra os particularismos de classe, de país, de "raça" e de sexo; somos contra a violência. A esquerda habitualmente foi contra o Positivismo porque somos contra o violento particularismo de classe; a direita é contra o Positivismo porque somos contra o violento particularismo nacionalista. (
Não foi à toa que, no Brasil, o ocaso do Positivismo, no final dos anos 1920, conduziu aos violentos particularismo de classe, de "raça" e de país nos anos 1930-1940.)

Em suma: n
ão é possível ser antifascista e fingir que setores importantes da esquerda não foram antinacionais, que não desprezaram os símbolos nacionais - mesmo e principalmente quando os símbolos nacionais afirmavam a fraternidade, a cooperação, a harmonia, a dignidade. Se isso não ocorrer, de nada adiantará derrotar eleitoralmente o fascismo no ano do bicentenário do Brasil.

05 setembro 2022

Monitor Mercantil: Positivismo pró-desenvolvimento e crítico do liberalismo oligárquico

O jornal carioca Monitor Mercantil publicou, em 23 de julho de 2019, um artigo interessantíssimo em que se recupera e aplica-se o Positivismo à realidade brasileira.

Os autores lembram o quanto o Positivismo, em termos de teoria sociopolítica, afirma com clareza, com todas as letras, a importância central de um Estado republicano com caráter social. Da mesma forma, em termos históricos, os autores lembram as grandes contribuições do Positivismo para o desenvolvimento nacional.

Esse texto é tanto mais interessante quanto os autores não são positivistas. Além disso, o que se evidencia com esse texto é o quanto o Positivismo é necessário nesta época em que a demagogia liberticida assola o Brasil (e o Ocidente) e em que inúmeros intelectuais e grupos sociopolíticos defendem o particularismo, o facciosismo, a nostalgia pelo autoritarismo, a nostalgia pelo liberalismo escravocrata.

Não há dúvida de que vale totalmente a leitura, a reflexão e a aplicação!

O original encontra-se disponível aqui.


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Preparando o Estado para Soberania: crítica ao liberalismo oligárquico

Por Monitor Mercantil -17:36 - 23 de julho de 2019

 

O positivismo, tal como estabelecido por Augusto Comte, preconizava a necessidade de uma reorganização da sociedade em bases científicas, industriais, altruístas e progressistas, ou seja, positivas, partindo do material intelectual e institucional acumulado nas experiências históricas.

O estudo dos fenômenos sociais, considerando a relatividade e as “leis naturais invariáveis” inerentes a eles, devia servir de base para uma ação sobre a realidade, dirigida por um governo forte e centralizado, de modo a impulsionar um conjunto de transformações que favorecessem o aperfeiçoamento coletivo e, portanto, moral, das sociedades e dos seus membros. A etapa definitiva de evolução da humanidade em que isso se daria, a positiva, sucederia a metafísica, que por sua vez havia sucedido a teológica.

As fases teológica e metafísica procuravam determinado fator absoluto de explicação cosmológica. Nelas, o espírito humano buscava a origem e o destino do universo, atribuindo, na primeira, o princípio causal a entes sobrenaturais e, na segunda, a abstrações intelectuais.

Na fase positiva, o espírito humano abdicaria dessa procura e passaria a investigar as leis que governam os fenômenos sociais, isto é, as relações invariáveis de semelhança e sucessão entre eles e que os caracterizam. O relativo substituiria o absoluto e prepararia a humanidade para conhecer adequadamente o seu próprio mundo e reconstruí-lo conforme seus próprios desígnios.

Para Comte, a modernidade até então, ao consagrar princípios individualistas, abstratos e negativos próprios da metafísica liberal (como o contratualismo, o constitucionalismo e o livre-cambismo), não lograra integrar a sociedade, ao contrário, a esfacelara em benefício apenas de oligarquias várias, como as proprietárias, as parlamentares e as intelectuais, essas últimas sobretudo na imprensa.

A ausência de critérios compartilhados de sociabilidade abriu caminho ao arbítrio, manifestado tanto pela “democracia anárquica” quanto pela “aristocracia retrógrada”, ambas incapazes de restabelecer a unidade social necessária ao desenvolvimento comum, ou, em outras palavras, a ordem e o progresso.

A unidade social própria do medievo estaria, para Comte, perdida, mas não de maneira definitiva. A desorganização característica da modernidade ocidental se dava pela transição de um sistema social, o metafísico, para outro, o positivo, no qual adviria a reorganização por ele preconizada.

A unidade a ser alcançada no estágio positivo seria, inclusive, superior ao do medievo, por a sociedade dispor de um grau maior de conhecimento acerca das suas condições e das leis que a regem. A positividade dessa nova fase consistiria, fundamentalmente, no domínio da humanidade sobre si mesma, fazendo prevalecer a ciência sobre a metafísica e o altruísmo sobre o egoísmo.

O proletariado e as mulheres seriam os porta-vozes e os agentes principais dessas mudanças, daí que Comte defendeu, ipsis litteris, as “revoluções” proletária e feminina. Revoluções que, longe de romperem com a ordem, a restabelecessem, fundamentando o progresso vindouro e vinculando-o ao conjunto histórico, que não deveria ser rechaçado, mas elaborado, extraindo dele o impulso para o desenvolvimento social.

A humanidade assumiria, a partir dessa fase, a posição anteriormente atribuída a Deus. A “religião da humanidade”, proposta por Comte, enaltece a imanência da humanidade e sua capacidade de aprimoramento, ao mesmo tempo progressivo e ordeiro.

Não é difícil verificar a incompatibilidade da doutrina positivista, largamente difundida no Brasil entre o final do século XIX e início do XX, com a organização social e institucional existente durante a Primeira República.

Republicanos e abolicionistas inveterados, os positivistas brasileiros não tiveram força política para converter a maior parte de seus ideais em realidade quando da Proclamação da República, ainda que muitos deles fossem presentes em instituições politicamente decisivas como o Exército e tivessem apoiado e mesmo participado da instauração republicana.

O lema presente na bandeira nacional e a separação entre Estado e Igreja consagrada na Constituição de 1891 foram as principais contribuições positivistas em âmbito nacional. No mais, o reformismo político e social positivista, inspirado em Comte, não obteve efetividade prática em âmbito nacional durante a Primeira República, principalmente a partir do governo de Prudente de Morais, que consolidou no comando do país a coalizão agrário-exportadora e mercantil.

O arranjo institucional do período, caracterizado por um federalismo que fortalecia a autonomia dos estados em relação à União e facilitava assim o fenômeno do coronelismo, e o arranjo econômico, organizado sobretudo em torno da produção de café para o exterior e no aprofundamento da dependência para com o capital financeiro e industrial estrangeiro, principalmente inglês e estadunidense, consagravam o pleno domínio das oligarquias primário-exportadoras do centro-sul (particularmente de São Paulo) no comando do país.

Foi um período de vigência de valores e políticas de forte conteúdo liberal, que iam ao encontro das demandas oligárquicas vigentes, exceto quando se tratava de pleitear a proteção do Estado para negócios particulares ligados à cafeicultura, como se verificou no Convênio de Taubaté em 1906.

Nesse contexto, o positivismo, uma das ideologias fundantes da República, assumiu um papel crítico e contestador, análogo ao de Comte em relação à França que vivenciou, propugnando uma organização alternativa do país, consoante os princípios do mestre francês, jamais esquecendo de sua lição acerca da relatividade dos fenômenos sociais, o que estimulou a formulação de propostas adequadas à realidade específica brasileira.

Medidas defendidas pelos positivistas desde o Império, como o fortalecimento do Executivo e a centralização do poder, a função social da propriedade, a emancipação material (para além da formal) dos negros, a mediação do Estado nas relações entre o capital e o trabalho para proteger o segundo e a responsabilização do Estado pela educação pública e pelo desenvolvimento industrial, opostas aos interesses dos grupos dominantes na Primeira República, teriam que esperar a Revolução de 1930 para serem colocadas em prática.

Ainda assim, devido à forte autonomia estadual então existente, foi possível ao Partido Republicano Rio-grandense (PRR), de linha programática positivista, governar o Rio Grande do Sul na contramão do Governo Federal e erigir instituições estaduais mais apropriadas à execução do programa positivista. Como bem assinalou Alfredo Bosi em seu brilhante Dialética da Colonização (Companhia das Letras, RJ, 1992), o positivismo gaúcho antagonizou, em termos de projeto de Estado e de país, com o liberalismo paulista/federal.

A Constituição do estado gaúcho, de 1891, teve o positivismo como sua linha mestra. Poder Executivo forte, educação primária pública e leiga a todos, separação entre Estado e Igreja, abolição de privilégios de nascimento, nobiliárquicos e acadêmicos, estabelecimento de concurso para provisão dos cargos públicos civis e a supressão de todas as distinções entre funcionários públicos e outros tipos de empregados foram aspectos marcantes da Constituição do RS e balizaram o chamado castilhismo, tendência política batizada em homenagem a Júlio de Castilhos, líder do PRR, presidente do RS de 1891 a 1898 e autor dessa Carta, seguida por Borges de Medeiros, presidente do estado de 1898 a 1908 e de 1913 a 1928.

Foram medidas políticas dos governos positivistas gaúchos: o imposto territorial, seguindo a preferência comteana por impostos diretos e desafiando o poder dos grandes fazendeiros, que eram privilegiados no âmbito federal; incentivos fiscais às manufaturas gaúchas infantes, dentro de um projeto industrialista liderado pelo governo, contrastando com a opção primário-exportadora da Primeira República desde Prudente de Morais, quando as oligarquias paulistas conseguiram derrotar o desenvolvimentismo avant la lettre de Rui Barbosa e de Floriano Peixoto; a socialização dos serviços públicos, com a defesa explícita de Borges de Medeiros, em sua Mensagem de 1913, da municipalização de serviços essenciais como água, esgoto, iluminação, energia elétrica, bondes e ferrovias.

A estatização do porto do Rio Grande e da belga Compagnie Auxiliaire de Chemins du Fer au Brésil se contrapunha ao privatismo do Governo Federal, que manteve a política prevalecente no Segundo Império de subordinação da infraestrutura ao capital estrangeiro.

Também no âmbito trabalhista, o positivismo gaúcho opôs-se frontalmente ao liberalismo oligárquico federal. No programa do Partido Republicano Histórico, Júlio de Castilhos defendia uma série de medidas que anteciparam boa parte da legislação trabalhista implementada por Vargas desde a década de 1930, contradizendo assim o lamentável folclore da inspiração “fascista” das leis do trabalho: o regime de 8 horas de trabalho na indústria, férias, aposentadoria, proteção aos menores, mulheres e idosos, direito de greve e um tribunal de arbitragem para resolução de conflitos entre patrões e empregados, tudo isso já constava no ideário castilhista.

Enquanto os governos Federal e paulista reprimiam violentamente as greves operárias de 1917, o governo gaúcho negociou com os grevistas e induziu os patrões no estado a aceitarem as reivindicações dos trabalhadores (Bosi citado, cap. 9).

Também o engenheiro paraense Aarão Reis, positivista e socialista, contribuiu enormemente para a oposição ao status quo oligárquico da Primeira República, ao defender, em compêndio de economia política adotado oficialmente na Escola Politécnica, a maior intervenção e direção do Estado na economia e da sociedade a fim de estimular a industrialização, proteger o trabalho da coerção do capital, fomentar o mercado interno e o associativismo civil, e promover “carinhosamente” a educação popular no sentido do aperfeiçoamento da cidadania e do patriotismo no âmbito de uma organização democrática da sociedade (Antônio Paim, “O Pensamento Político Positivista na República”, In: Adolpho Crippa (org.) As Idéias Políticas no Brasil, vol. II, Editora Convívio, RJ, 1979, p. 59-61).

Pode-se, portando, concluir que cabe ao positivismo brasileiro no Segundo Império e na Primeira República, aplicado na política nos governos estaduais gaúchos durante essa última, a formulação de um projeto alternativo ao que era dominante no período.

Nesse projeto constava a edificação de país soberano, desenvolvido e socialmente igualitário, dirigido a partir de um Estado forte e centralizado que coordenasse a totalidade da Nação para equilibrar e harmonizar os grupos sociais particulares e estabelecer um planejamento de longo prazo, acima dos interesses privados e tendo por fim a construção nacional em bases industriais e solidárias.

A gênese do Estado social e nacional-desenvolvimentista, triunfante entre 1930 e 1980 (apesar de recuos e nuances ao longo do período) em oposição ao liberalismo oligárquico prevalecente em quase todo o período republicano anterior, pode enfim ser localizada na teoria e na prática positivistas nas décadas anteriores à emergência de Vargas como líder político nacional.

O castilhismo, a principal vertente política do positivismo em sua versão gaúcha, foi o berço do trabalhismo de Getúlio Vargas e Leonel Brizola. Assim como o conjunto do positivismo, tem ainda hoje muito a iluminar acerca dos problemas nacionais brasileiros e da formulação e encaminhamento de soluções integradas em um projeto de desenvolvimento nacional.

 

Felipe Quintas

Doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

Gustavo Galvão

Doutor em economia, é autor de As 21 lições das Finanças Funcionais e da Teoria do Dinheiro Moderno (MMT).

Pedro Augusto Pinho

Administrador aposentado. 

24 junho 2022

Curso livre de política positiva: vídeo da 16ª sessão (final)

No dia 21 de junho ocorreu a décima sexta sessão (e final) do Curso livre de política positiva, com transmissão ao vivo no canal do Facebook Apostolado Positivista.

Nesta seção concluí o relato histórico-sociológico próprio à Sociologia Dinâmica, apresentando o esquema da transição final proposto por Augusto Comte, entre a situação da anarquia contemporânea para a situação normal da Humanidade. Além disso, apresentei a belíssima concepção da "trindade positiva", que é um complemento intelectual, afetivo e prático da Religião da Humanidade, baseado na incorporação do fetichismo. Para encerrar o curso, abordei alguns temas políticos próprios ao Positivismo e às discussões contemporâneas: a idéia da "ditadura republicana"; a fórmula "Ordem e progresso"; as alegações de que o Positivismo seria "conservador" e/ou "moralista".

O vídeo pode ser visto no canal Positivismo (disponível aqui: https://www.youtube.com/watch?v=m8OMqqsAY3k) ou no próprio canal Apostolado Positivista (disponível aqui: https://www.facebook.com/ApostoladoPositivista/videos/1003644023633876/). 

A programação completa do Curso pode ser vista aqui. 

20 abril 2022

Curso livre de política positiva: vídeo da 7ª sessão

No dia 19 de abril ocorreu a sétima sessão do Curso livre de política positiva, com transmissão ao vivo no canal do Facebook Apostolado Positivista.

Nessa sessão apresentamos, no âmbito da Sociologia Estática de Augusto Comte, a teoria do governo e, em particular, do poder Temporal. Além disso, como a sessão ocorreu justamente no dia 19 de abril e a dois dias do 21 de abril, fizemos referências especiais ao Dia do Índio e ao nosso grande Marechal Rondon, bem como ao grande Tiradentes.

O vídeo pode ser visto no canal Positivismo (disponível aqui: https://www.youtube.com/watch?v=3QBrKCCTzWg) ou no próprio canal Apostolado Positivista (disponível aqui: https://www.facebook.com/ApostoladoPositivista/videos/512358580496069/).

A programação completa do Curso pode ser vista aqui.

31 outubro 2020

Mensagem enviada a Federico Finchelstein sobre Augusto Comte

Federico Finchelstein é um historiador argentino, radicado nos EUA, que teve um livro recém-publicado no Brasil, Uma breve história das mentiras fascistas (Belo Horizonte, ed. Vestígio, 2020).

O livro é interessante e corresponde a uma necessidade urgente - conhecer e entender como o fascismo mente, quais são as mentiras que ele difunde, quais são os efeitos sociais e políticos disso.

Exatamente devido a essa importância foi que percebi, com tristeza e alarme uma observação casual, mas profundamente errada e mesmo venenosa, em que o autor em poucas palavras repete mitos e desinformações sobre Augusto Comte. Assim, enviei-lhe a mensagem abaixo; a importância do combate a esses mitos leva-me a publicar a mensagem enviada.

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Caro Prof. Federico:

Meu nome é Gustavo Biscaia de Lacerda; sou Doutor em Sociologia Política, Sociólogo da Universidade Federal do Paraná e especialista em história das idéias. Como você é argentino, creio que posso escrever em português sem o receio de não ser entendido.

Como cidadão brasileiro, a política recente de meu país tem sido fonte de grande apreensão desde 2018, sendo muito maior e pior neste ano de 2020, com a pandemia de covid-19, as queimadas criminosas na Amazônia e no Pantanal e vários outros crimes e loucuras cometidos pelo fascista Bolsonaro. Por esses motivos, comprei com grande interesse a edição brasileira de seu livro A Brief History of Fascist Lies, recém-lançado no país.

O seu livro é muito interessante e cumpre um importante papel político neste momento. Uma passagem dele, todavia, chamou-me a atenção, pois está totalmente errada, o que diminui um pouco o brilho de seu livro; a passagem em questão afirma que Augusto Comte (1) seria um autor “antidemocrático” e “anti-individualista” e (2) que desejaria uma “verdade absoluta na política”; além disso, ao relacioná-lo a Joseph de Maistre, você (3) sugere que Comte seria um autor reacionário e, portanto, claramente dá a entender que ele seria um ancestral dos fascistas. (Isso está no cap. 2, p. 43, da edição brasileira.)

No que se refere a Comte, é com tristeza que noto que suas afirmações são equivocadas do início ao fim, não tanto nas expressões empregadas, mas no sentido que você empresta a elas; o problema, portanto, é semântico.

Sobre o “anti-individualismo”: esse mito, que cumpre funções de desinformação, tem origem em uma tradição intelectual radicalmente individualista e anticoletivista, que entende qualquer consideração “social”, radical e necessariamente, como sendo anti-indivíduo. Essa tradição tem origem pelo menos na Inglaterra do século XIX, com ninguém menos que Stuart Mill, e seguiu no século XX com ultraliberais como Hayek e (em uma tradição particularmente estadunidense) Ayn Rand.

Comte era contra o individualismo, mas não contra os indivíduos e as individualidades; em outras palavras, ele era contrário ao egoísmo erigido em norma político-social e em parâmetro de análise sociológica. Ao contrário de tradições sociológicas “holísticas”, em Comte a afirmação da primazia lógica e histórica da sociedade sobre o indivíduo não implica a negação da realidade política e moral do indivíduo; muito ao contrário, essa primazia permite situar social e historicamente cada indivíduo e, ao mesmo tempo, estabelece parâmetros morais para as atividades desses mesmos indivíduos. (Como eu disse antes, aqui se trata de um problema semântico.)

A “antidemocracia” de Comte refere-se ao caráter metafísico da “democracia” e da “soberania popular”, que sempre foram afirmadas como maneiras de negar a soberania divina dos reis, transferindo o capricho arbitrário dos reis para o capricho arbitrário dos “povos” (que, por sua vez, são representados pelos “líderes”). Na crítica filosófico-política que Comte faz à democracia não há nada que se refira às liberdades individuais, às liberdades de pensamento e de expressão, às garantias constitucionais de proteção aos indivíduos etc. Evidentemente, para Comte a democracia não é o regime das liberdades; em vez de falar em “democracia”, ele fala em “República”. (Como eu observei antes, trata-se aqui, mais uma vez, de um problema semântico.)

No que se refere ao desejo de uma “verdade absoluta na política”, eu fico sem saber de onde ela pode ser surgido. Comte era um autor que desde o início de sua carreira afirmava, com todas as letras, que “o único absoluto é que só existe o relativo”; a negação do absolutismo filosófico e a afirmação do relativismo foi uma das maiores constantes da carreira de Comte, ampliando-se cada vez mais à medida que o tempo passava. A referida rejeição da “democracia”, por exemplo, baseava-se exatamente nisso: tanto a “soberania divina dos reis” quanto a “soberania dos povos” eram absolutas - e, por isso mesmo, arbitrárias, caprichosas e sem o menor controle racional e/ou social -, devendo ser substituídas pelo relativismo do regime republicano, com liberdades públicas dirigidas ao bem comum. Aliás, enquanto no caso do “anti-invididualismo” e do “antidemocratismo” de Comte o problema é de manipulação semântica, no caso de uma “política absoluta” o problema é de outra ordem: trata-se da projeção aos inimigos dos defeitos próprios, isto é, os inimigos de Comte projetam nele os seus próprios desejos de uma “política absoluta”... é triste perceber que esse procedimento seja inadvertidamente adotado em um livro que combate as manipulações fascistas.

Por fim, a aproximação de Comte a De Maistre é um procedimento velho, que escamoteia totalmente a igual proximidade de Comte com Diderot, Condorcet, com os republicanos franceses de 1848, com sua oposição a Napoleão III etc.

Se tiver tempo e interesse, há vários livros que tratam dessas questões em profundidade. Há um antigo, de Jean Lacroix, La Sociologie d’Auguste Comte, assim como um mais recente, de Laurent Fedi, Comte.

Eu mesmo tenho inúmeros livros sobre essas questões, como pode ver aqui; também é possível ler a versão original da minha tese de doutorado (PhD thesis) aqui.

Saúde e Fraternidade,

Dr. Gustavo Biscaia de Lacerda.

02 julho 2020

Réplica a S. Schwartzmann: Positivismo e falsa analogia das crises de 1904 e 2020

O texto abaixo é uma réplica a um artigo originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo no dia 12.6.2020, de autoria do sociólogo Simon Schwartzmann. Embora, como observo abaixo, o artigo original tenha feito inúmeras sugestões extremamente maliciosas contra o Positivismo e os positivistas e, portanto, uma réplica tenha-se mostrado necessária, o jornal paulistano recusou-se a publicar essa minha réplica. Assim, publico-a no espaço que me é permitido, a despeito do inflamado discurso do conservador jornal paulistano a respeito do "pluralismo", da "democracia" e do "debate de idéias".

Além disso, como também observo abaixo, o Positivismo é habitualmente empregado como o bode expiatório preferencial por todos os grupos político-intelectuais que querem encontrar algum responsável pelos problemas nacionais. Esse comportamento é intelectualmente desonesto e politicamente irresponsável, sem contar que, na quase totalidade das vezes, é historicamente mentiroso. Já passou da hora de os autodenominados "intelectuais" brasileiros abandonarem esse hábito infantil, de amadurecerem e de passarem a valorizar as inúmeras, enormes e profundas contribuições do Positivismo para o país, para o Ocidente e para o mundo.

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Positivismo e falsa analogia das crises de 1904 e 2020

Desde o início do governo Bolsonaro, devido à renovada importância que os militares assumiram no poder Executivo federal, o Positivismo voltou à baila. Entretanto, esse retorno do Positivismo dá-se mais por referências oblíquas e insinuações que por alguma influência direta e, mais importante, por alguma influência efetiva. Em outras palavras, o Positivismo serve como bode expiatório, como uma justificativa ad hoc para todos os incontáveis e injustificáveis erros, problemas e desvios que o governo apresenta. O mais notável é que esse papel atribuído ao Positivismo é mobilizado tanto pelo próprio governo e por seus apoiadores – basta ver as virulentas e assustadoras referências feitas por filhos do Presidente da República, pelo seu guru-astrólogo e pela grande imprensa conservadora – quanto por setores “liberais” e mesmo oposicionistas: no que se refere ao governo e aos conservadores, já tive ocasião de publicar uma refutação mínima (na Gazeta do Povo e no Monitor Mercantil); agora o sociólogo Simon Schwartzman retoma a tradição do liberalismo conservador brasileiro para, com argumentos que parecem inspirados no realismo mágico, atribuir ao Positivismo vícios da política nacional.

No artigo “A revolta da vacina”, publicado em O Estado de S. Paulo de 12.6.2020, Schwartzman afirma que a atual politização da crise sanitária encontra um precedente na Revolta da Vacina de 1904; supostamente em ambos os episódios notam-se políticos radicalizados afirmando a falta de eficácia de medidas sanitárias recomendadas pelas autoridades públicas, estimulando a resistência do comum do povo a essas medidas, com o apoio de militares. Embora décadas atrás Schwartzman tenha feito algumas pesquisas de história da ciência no Brasil, ele limita-se a citar literatura de segunda e terceira mão para reiteradamente afirmar que o Positivismo como doutrina e os positivistas como agentes teriam apoiado os radicais do início da I República – os “jacobinos” – na Revolta; essa insistência em referir-se ao Positivismo tem o claro e evidente efeito de sugerir que essa mesma doutrina inspiraria ainda hoje o radicalismo conservador da extrema direita. Vamos aos fatos, então.

Em primeiro lugar, o procedimento de Schwartzman é sofístico. O atual governo é ao mesmo tempo ultraconservador (com sua apologia da “tradição” e da monarquia (sociedade de castas, escravismo, nacionalismo estreito), mas contra todas as tradições republicanas efetivamente afirmadas pelo Positivismo (pacifismo, tolerância, fraternidade universal, racionalidade científica, civilismo, respeito ao meio ambiente, aos índios, às minorias, às liberdades de pensamento e de expressão)) e revolucionário (com o combate ativo e militante contra os “progressistas”, o “globalismo”, o “marxismo cultural”); assim, Schwartzman é incapaz, por ser impossível, de provar qualquer influência do Positivismo no governo Bolsonaro. Dessa forma, o sociólogo mineiro sugere um paralelo entre duas situações históricas; essa mera sugestão atua como “prova” de seu argumento. Ele não demonstra; ela faz uma afirmação e deixa para o leitor o trabalho de tirar as consequências, que, todavia, permanecem sem qualquer base empírica. Vale notar que esse mesmo procedimento está na base de todas as teorias da conspiração – que, como tristemente se sabe, têm enorme relevância política nos dias atuais.

Mas, em segundo lugar, é claro que a atuação dos positivistas na I República e, de modo particular, na Revolta da Vacina está muito mal contada por Schwartzman. Em 1904 o médico Oswaldo Cruz decidiu combater a febre amarela, empregando o que era então uma técnica inovadora: a inoculação de patógenos enfraquecidos por meio de injeções, a fim de gerarem-se anticorpos contra a doença. Ora, esse procedimento da vacina foi estabelecido ao longo do século XX como correto e necessário; todavia, no início do século XX isso não estava firmemente estabelecido como adequado e seguro e – isto é o principal – os procedimentos adotados por Oswaldo Cruz eram anti-higiênicos e profundamente autoritários. As exitosas campanhas de vacinação levadas a cabo no Brasil pelo menos desde a década de 1980 buscam conscientizar a população da necessidade da vacinação; em outras palavras, tais campanhas postulam o caráter voluntário da vacinação: respeita-se a livre decisão individual e familiar. Ao mesmo tempo, a aplicação das vacinas é cercada por inúmeros protocolos higiênicos, incluindo aí a assepsia da pele (no caso da inoculação da vacina via injeções) e o descarte de seringas e agulhas descartáveis.

Nada disso estava presente na campanha de 1904: as agulhas e as seringas eram reutilizadas (e sem assepsia entre uma aplicação e outra) e, mais importante, os agentes sanitários forçavam os cidadãos a serem vacinados, injetando à força as agulhas em seus corpos, invadindo casas e violentando as pessoas para submeterem-se aos seus desígnios; evidentemente, essa violência era particularmente empregada contra a população pobre – que, ao fim e ao cabo, acabou revoltando-se contra invasões, espancamentos, a disseminação de doenças e a aplicação de um procedimento cuja eficácia estava então longe de estar estabelecida (e que, nas condições específicas daquela “campanha”, era efetivamente muito discutível). Não é por acaso que o vice-Diretor da Igreja Positivista do Brasil e autor da bandeira nacional republicana, Raimundo Teixeira Mendes, chamava toda essa lamentável situação de “despotismo sanitário”. Dessa forma, os positivistas foram, sim, favoráveis à revolta popular contra a vacina; entretanto, ao contrário do que Schwartzman consegue apenas “sugerir”, não se tratava de uma postura anticientífica e de radicalismo anti-intelectualista, mas de um profundo respeito à dignidade humana, à inviolabilidade dos corpos e dos domicílios e às liberdades de pensamento e expressão. Em outras palavras, os positivistas defendiam todos os valores mais caros ao liberalismo – aliás, justamente ao liberalismo que supostamente Schwartzman defende –; da mesma forma, os positivistas opunham-se ao que se chama hoje em dia de “tecnocracia” e de “cientificismo”, ao contrário do que Schwartzman parece defender em seu artigo.

O sociólogo mineiro dá a entender que todos os que se opunham à campanha de vacinação de Oswaldo Cruz eram (1) positivistas e (2) políticos demagógicos que politizavam e radicalizavam sentimentos populares irracionais contra a vacina. Essas duas presunções são exageradas e estapafúrdias. É aceitável considerar que houvesse demagogos explorando a insatisfação popular; a política da I República era infelizmente e por vezes dada a disputas agressivas; entretanto, como vimos, quem se opunha à campanha da vacinação estava longe de ser necessariamente irracional, anticientífico, favorável a guerras civis. Entre os republicanos radicais, os “jacobinos”, havia efetivamente alguns que se identificavam com e como positivistas; todavia, o próprio Teixeira Mendes afirmava que a política republicana deve ser pacífica e, assim, condenava tanto a violência governamental do despotismo sanitário quanto a explosão popular e a exploração demagógica dela. Vale notar que todos esses argumentos são públicos e, embora um tanto restritos, são facilmente acessíveis para qualquer pesquisador minimamente preparado, como supomos ser Schwartzman, cuja carreira tem muitas décadas de duração.

Para concluir: a conjuntura político-sanitária de 2020 é muito, muito diferente da de 1904. As campanhas de vacinação respeitam a dignidade humana e são higienicamente adequadas; a racionalidade científica subjacente a elas está bem estabelecida. Assim, ao contrário do que ocorreu em 1904, a politização sistemática de uma crise sanitária é, sim, demagógica, mesmo quando realizada pelo governo; mas, assim como em 1904, o governo e os liberais opõem-se aos positivistas, ao “Ordem e Progresso”, em seus desígnios. É difícil não considerar que as coisas estão bastante erradas.

21 fevereiro 2020

Comparação entre Positivismo, direitas e esquerdas

Muito modestamente elaborei a tabela abaixo, em que apresento de maneira comparativa as vistas sócio-políticas do Positivismo e as concepções de direita e esquerda. 

Haja vista as confusões teóricas e práticas que reinam atualmente no Brasil - em que um governo de extrema-direita mantém o país em permanente estado de sobressalto, de polarização, de desrespeito sistemático à laicidade do Estado, à diversidade de opiniões, à liberdade de expressão e de pensamento, às minorias etc. -, o meu objetivo era esclarecer o que a "esquerda" e a "direita" consideram a respeito de vários conceitos sócio-políticos, aproveitando para expor as vistas positivistas (e demonstrar, por esse meio, que a oposição entre direita e esquerda é insatisfatória e insuficiente).

Mas é importante realçar um aspecto: esta tabela não é exaustiva nem cobre todas as possibilidades de política teórica e prática. Algumas amplas correntes e práticas foram deixadas de lado, como o populismo, o liberalismo e até o islamismo; por outro lado, no caso dos católicos, eles poderiam perfeitamente ser incluídos em outras categorias que não a centro-direita, indo desde a esquerda até a direita ou a extrema direita. O objetivo da tabela é apenas oferecer um quadro sinóptico para que se possa fazer algumas comparações básicas.

Após a tabela incluí referências bibliográficas sumárias, para quem tiver interesse e curiosidade.

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Resumo das perspectivas do Positivismo em face das correntes político-intelectuais contemporâneas

Conceito
Positivismo
Extrema-esquerda (comunismo)
Esquerda
(socialismo)
Centro-esquerda (social-democracia)
Centro
Centro-direita (conservadores “britânicos”, católicos)
Direita (neoliberais, evangélicos)
Extrema-direita (nazismo, fascismo)
1) Ordem
Fundamento e garantia do progresso
Não tem valor por si só (deve ser mantida com vistas ao progresso)
Elementos comuns a todas as sociedades (família, propriedade, linguagem, religião, governo)
A ordem burguesa, como é opressora, deve ser destruída
A exploração econômica gera a dominação política
A ordem comunista é redentora da humanidade
A ordem burguesa, como é opressora, deve ser destruída
A exploração econômica gera a dominação política
O Estado exerce um papel central ao regular a economia e prover serviços sócio-econômicos
Supostamente há espaço para liberdades individuais

A ordem é um equilíbrio entre a dinâmica social e a ação político-econômica estatal
A sociedade é capitalista (propriedade privada) e as liberdades são valorizadas
O Estado exerce um papel central ao regular a economia e prover serviços sócio-econômicos
Entendida como estabilidade política e social
Valor importante, mas não é sagrado: pode ser modificada, dependendo dos acertos políticos, na direção da direita ou da esquerda
Valor fundamental e central
A ordem é estabelecida pela tradição e, por isso, é sagrada
Tem um caráter histórico e, eventualmente, transcendental
É um valor sagrado
Evangélicos: é um arranjo divino e deve satisfazer imperativos teológicos (bíblicos)
Neoliberais: a economia deve ser entregue a si mesma; a política (e o Estado) atrapalha e corrompe a ordem
É um valor sagrado
O capitalismo e o comunismo são inimigos
A nação é o valor supremo
O Estado é o responsável pela criação e manutenção de uma ordem pura em termos raciais, sociais e políticos
Imigrantes, outras raças, outras ideologias devem ser combatidos e/ou dizimados
2) Progresso
Desenvolvimento da ordem fundamental
Baseia-se na ordem
Realização da harmonia humana (social e individual)
Desenvolvimento (harmônico) das forças humanas (individuais e sociais; afetivas, intelectuais e práticas)
Aprofundamento da igualdade
Fortalecimento das pátrias comunistas
Enfraquecimento e extinção das pátrias não-comunistas
Aprofundamento da igualdade
Valor central
Aprofundamento da igualdade
Valor central
Combate à dinâmica social própria ao capitalismo
Basicamente, indefinido
Desenvolvimento da ordem
Realizado conforme os desígnios do grupo no poder
Valor a ser combatido se for na direção da igualdade
Católicos: o progresso é real e legítimo se for a realização da ordem divina e tradicional
“Britânicos”: em pequenas doses, é aceitável (entendido como mudanças sócio-institucionais); de modo geral rejeita mudanças planejadas
Neoliberais: é um valor legítimo, se for o desenvolvimento da ordem capitalista (às vezes é a “destruição criadora”); vêem com grande desconfiança as mudanças planejadas
Evangélicos: é a realização da teocracia (em moldes calvinistas)
Afirmação da nação
Se o progresso for o conceito esquerdista, deve ser combatido ferozmente
3) Tradição
Não tem valor em si mesma
O mais das vezes, é uma concepção absoluta da historicidade e da ordem
Concepção positiva da tradição: legado moral e material do passado para o presente, que deve ser respeitado e, na medida do possível, preservado, mas que não é imodificável e que sofre alterações de acordo com as leis dos três estados
Obstáculo ao progresso
Ideologia burguesa ou feudal com vistas à dominação e à exploração do proletariado
Obstáculo ao progresso
Ideologia burguesa ou feudal com vistas à dominação e à exploração do proletariado
Basicamente, obstáculo ao progresso
Redes sociais tradicionais podem apoiar a ordem social-democrata
Em linhas gerais, é favorável à tradição
As relações políticas tradicionais são valorizadas
Em termos sócio-econômicos, depende do grupo que está no poder
Valor fundamental, quase indistinguível da ordem
Católicos: a tradição é o resultado da ação multissecular da igreja
“Britânicos”: é o resultado do “tribunal da história” e, por tentativa e erro, junta empiricamente o que é “bom” e “correto”
Neoliberais: a tradição de valores e estruturas sociais é inimiga do progresso capitalista
Neoliberais: as relações tradicionais de confiança são a base da sociedade e do progresso
Evangélicos: se referir-se à própria seita, é sempre sagrada; se referir-se a qualquer outra coisa, é detestável e deve ser combatida
É encarada de maneira romântica e saudosista
A tradição criada e idealizada é o fundamento ideológico da ordem social
4) Passado
Conjunto dos antecedentes sociais, morais, intelectuais e afetivos
O passado é a base e o guia para o futuro, mas o futuro não se resume nem se limita ao passado
Conjunto das condições sociais que permitem a realização do comunismo
“Peso que oprime o cérebro dos vivos” (Marx)
Conjunto dos antecedentes próprios ao comunismo
Conjunto das condições sociais que permitem a realização do socialismo
“Peso que oprime o cérebro dos vivos” (Marx)
Conjunto dos antecedentes próprios ao socialismo
Conjunto das condições sociais que permitem a realização do Welfare
Conjunto dos antecedentes próprios ao Welfare
Conjunto da história social e individual
Mobilizável de acordo com o grupo que está no poder
É o fundamento da tradição
Neoliberais: conjunto das condições que conduzem ao capitalismo; fora isso, deve ser constantemente revolucionado
Evangélicos: se for da própria seita, é sempre glorioso; se for dos outros, é detestável
É romantizado e, assim, glorificado
Apresenta a história da nação, passando pelas quedas e pelas ascensões
5) Liberdade de pensamento
Fundamento inescapável da política positiva
A liberdade absoluta de pensamento é um conceito metafísico, que rejeita qualquer disciplina mental
Deve ocorrer a rigorosa separação entre igrejas e Estado
Não existe, exceto para o que o Estado permite
Nos países não-comunistas: deve ser incentivada ao máximo, para que ocorra a revolução do proletariado (Lênin, Stálin)
A cultura deve ser instrumentalizada para difusão do comunismo (Gramsci)
Existe e é garantida pelas leis
Existe e é garantida pelas leis
Existe e é garantida pelas leis
Católicos: é limitada ao que se considera tradicional e, portanto, aceitável
“Britânicos”: valor sócio-político fundamental
Neoliberais: existe e é garantida pelas leis (eventuais exceções quanto ao comunismo e ao nazismo)
Evangélicos: se referir-se ao próprio dogma, é válida; qualquer outra forma de pensamento deve ser combatida ou convertida
Não existe, exceto para o que o Estado permite
A cultura deve ser instrumentalizada para difusão do fascismo (Goebbels, Mussolini)
6) Liberdade de expressão
Fundamento da política positiva e conseqüência da liberdade de pensamento
Deve-se garantir a liberdade de expressão a todas as concepções
Não existe, exceto para o que o Estado permite
Nos países não-comunistas: deve ser incentivada ao máximo, para que ocorra a revolução do proletariado (Lênin, Stálin)
A cultura deve ser instrumentalizada para difusão do comunismo (Gramsci)
O Estado impõe o ateísmo
Existe e é garantida pelas leis
Existe e é garantida pelas leis
Existe e é garantida pelas leis
Católicos: é limitada ao que se considera tradicional e, portanto, aceitável
“Britânicos”: valor sócio-político fundamental
Neoliberais: existe e é garantida pelas leis (eventuais exceções quanto ao comunismo e ao nazismo)
Evangélicos: se referir-se ao próprio dogma, é válida; qualquer outra forma de pensamento deve ser combatida ou convertida
Não existe, exceto para o que o Estado permite
A cultura deve ser instrumentalizada para difusão do fascismo (Goebbels, Mussolini)
7) Família
Célula da sociedade
Núcleo do desenvolvimento afetivo
Deve ser consagrada para ser regulada pela pátria (associação prática) e pela Humanidade (associação intelectual)
Foco de conservadorismo, reacionarismo e tradicionalismo
Permanece sob estreita vigilância do Estado e da sua polícia política
Os laços familiares não são respeitados
Em determinadas conjunturas pode ser valorizada (formação de mão de obra)
Célula da sociedade
Núcleo do desenvolvimento afetivo
Célula da sociedade
Núcleo do desenvolvimento afetivo
Célula da sociedade
Núcleo do desenvolvimento afetivo
As relações familiares constituem parte importante da sociabilidade política de centro (clientelismo, filhotismo, apadrinhamento)
Célula da sociedade
Núcleo do desenvolvimento afetivo
Eventualmente, tem que ser defendida da ação do Estado
Neoliberais: é a formadora de indivíduos, que são os “agentes econômicos” por definição
Evangélicos: é o âmbito social sagrado e inamovível, lugar da autoridade (“despótica”) do pai/marido sobre filhos/esposa

É o âmbito social sagrado, lugar da autoridade (“despótica”) do pai/marido sobre filhos/esposa
É a relação social que existe logo abaixo da nação, isto é, do Estado
8) Pátria
Associação prática dos seres humanos
Realidade política básica; exerce a autoridade em um determinado território
Devem ser de tamanho reduzido, para que os vínculos morais desenvolvam-se
A soberania absoluta é uma ficção metafísica
Deve ser consagrada para ser regulada
O multilateralismo, o internacionalismo respeitador das pátrias e as mediações devem ser incentivados
Sede da revolução comunista
Devem ser abolidas quando o comunismo triunfar no mundo todo
Em países não-comunistas: grau máximo de associação humana e entendidas como sede da xenofobia, do imperialismo e do nacionalismo
Realidade política básica; nela o Estado exerce a autoridade em um determinado território
O multilateralismo, o internacionalismo respeitador das pátrias e as mediações devem ser incentivados
Eventualmente, podem ser abolidas quando o socialismo triunfar no mundo todo
Realidade política básica; exerce a autoridade em um determinado território
O multilateralismo, o internacionalismo respeitador das pátrias e as mediações devem ser incentivados
Realidade política básica; exerce a autoridade em um determinado território
Realidade política básica; exerce a autoridade em um determinado território
Católicos: o poder político deve submeter-se ao poder (espiritual, quando não material) da igreja e do papa
Realidade política básica; exerce a autoridade em um determinado território
Neoliberais: o Estado é um estorvo, um mal tristemente necessário
Evangélicos: o poder político deve submeter-se ao poder da igreja
Valor supremo
O internacionalismo e o multilateralismo são vistos como crimes de lesa-pátria e como conspirações dos “inimigos”
9) Humanidade
Resumo da Religião da Humanidade
Como sinônimo de igreja: associação de caráter intelectual, de âmbito mundial
Conjunto dos seres humanos convergentes, passados, futuros e presentes
Concepção resultante de uma longa evolução histórica
Concepção relativa, altruísta e includente
Outro nome dado ao conjunto do proletariado, após a revolução comunista e a extinção (física e social) da burguesia
Associação de indivíduos atomizados, sem a existência de pátrias nem de igrejas
Fora do âmbito do comunismo: ideologia burguesa e/ou concepção nefelibata
Outro nome dado ao conjunto do proletariado, às vezes se estendendo ao conjunto das sociedades (e das classes)
Outro nome dado ao conjunto do proletariado, às vezes se estendendo ao conjunto das sociedades (e das classes)
Designação genérica do conjunto de seres humanos e de países
Eventualmente apresenta caráter histórico
Designação genérica do conjunto de seres humanos e de países
Eventualmente apresenta caráter histórico
Designação genérica do conjunto de seres humanos e de países
Eventualmente apresenta caráter histórico
Neoliberais: conjunto de agentes econômicos
Evangélicos: conjunto de crentes e de pessoas a serem convertidas
Refere-se exclusivamente à população do próprio país
10)         Religião
Conjunto de concepções e práticas que visam a regular a vida humana, com vistas à harmonia social e individual
Como qualquer concepção humana, passa pelos três estágios (teológico, metafísico e positivo)
A Religião da Humanidade é uma religião positiva
Sinônimo de teologia e, por derivação, de igreja
“A religião é o ópio do povo” (Marx)
Deve ser combatida
A prevalência de religiões em países é justificativa para guerras com esses países
Sinônimo de teologia e, por derivação, de igreja
“A religião é o ópio do povo” (Marx)
Em princípio, deve-se respeitar as crenças individuais e, se for o caso, as institucionais
Pode resultar, devido a questões institucionais e dogmáticas, em conflitos entre o Estado e a(s) igreja(s)
Sinônimo de teologia e, por derivação, de igreja
Deve-se respeitar as crenças individuais e, se for o caso, as institucionais
Acomodação com as igrejas
É importante apenas como fundamento do Welfare (e, portanto, submete-se a considerações utilitário-político-econômicas)
Sinônimo de teologia e, por derivação, de igreja
Acomodação com as igrejas
Dependendo da relação com quem está no poder: apoio às igrejas e suas doutrinas

Sinônimo de teologia e, por derivação, de igreja
“Britânicos”: acomodação com as igrejas; aceitação de religião de Estado
Católicos: igreja separada do mas superior ao Estado

Sinônimo de teologia e, por derivação, de igreja
Acomodação com as igrejas
Estímulo à “teologia da prosperidade”
Evangélicos: valor sagrado e supremo

Sinônimo de teologia e, por derivação, de igreja
Transformação do culto à pátria em um rival institucional e dogmático às igrejas tradicionais
11)         Propriedade
A propriedade privada é um dos fundamentos da ordem social
Para surtir seus efeitos, a riqueza deve ser concentrada até o limite da responsabilidade individual
A função da riqueza é alimentar o conjunto da sociedade
Os proletários devem ser “pobres” (isto é, não ricos); devem ter casa própria e ser capazes de alimentar esposa, filhos e avós
Os proletários devem ser donos dos instrumentos individuais de trabalho
Assim, a propriedade privada não é um conceito absoluto
Deve ser consagrada para ser regulada
A origem da propriedade é social e sua destinação tem que ser social
A riqueza é entendida como força social concentrada (o trabalho é a força dispersa)
A solução dos problemas da riqueza consiste em sua regulação social, não em sua destruição e/ou extinção
A propriedade privada é vista como absoluta, com vistas à dominação e à exploração burguesa
Para combater a propriedade privada, o Estado comunista deve instituir a propriedade “coletiva” (estatal) dos “meios de produção”
A via para tal mudança é violenta, pela força, de cima para baixo
As famílias podem ter objetos de uso pessoal
A riqueza é vista como o fundamento das desigualdades humanas
A propriedade privada é vista como absoluta, com vistas à dominação e à exploração burguesa
Para combater a propriedade privada, o Estado comunista deve instituir a propriedade “coletiva” (estatal) dos “meios de produção”
A via para tal mudança é pacífica e eleitoral
As empresas privadas, todavia, continuam existindo
A riqueza é vista como o fundamento das desigualdades humanas
Os impostos são altos
A propriedade privada é vista como relativa e submetida à regulação estatal
Para combater a propriedade privada, o Estado comunista deve instituir a propriedade “coletiva” (estatal) dos “meios de produção”
Muitos serviços e bens são fabricados e providos pelo Estado
A via para tal mudança é pacífica e eleitoral
As empresas privadas, todavia, continuam existindo
A riqueza é vista como o fundamento das desigualdades humanas
Os impostos são altos
A propriedade privada é vista como absoluta
Todavia, dependendo de quem está no poder, pode-se considerar a propriedade como relativa (em particular a propriedade alheia)
O nível de impostos varia de acordo com o grupo que está no poder
“Britânicos”: a propriedade privada é vista como absoluta e constituinte da natureza íntima de cada indivíduo (juntamente com a liberdade)
Católicos: a propriedade privada é vista como relativa, dependendo da ordem eclesiástica e do papa reinante; os bens da igreja são sagrados
Os impostos são os mais baixos possíveis
A propriedade privada é vista como absoluta
Evangélicos: a riqueza é a prova da eleição divina, no neocalvinismo da “teologia da prosperidade”
Neoliberais: a riqueza é um valor fundamental e deve ser perseguida (“vícios privados, virtudes públicas”)
Ambigüidade a respeito da propriedade e da riqueza: em princípio são absolutas, mas o Estado pode interferir e regulá-las, além de ter empresas estatais
A riqueza “capitalista” (ou comunista) é opressora; a riqueza “nacionalista” é libertadora
12)         Governo temporal
Gestor dos conflitos de classe
Responsável pela manutenção da ordem social, com vistas à realização do progresso
Deve abster-se rigorosamente de ser um governo espiritual
Deve garantir as liberdades públicas, especialmente as de pensamento, expressão e associação
Deve ser consagrado para ser regulado
Nos países capitalistas: mantenedor da dominação burguesa e da exploração do proletariado
Responsável pela realização e pela manutenção da revolução comunista
Gestor da propriedade coletiva
Quando a revolução comunista ocorrer em nível mundial, os estados devem ser extintos
Órgão do proletariado como classe (contra a burguesia)
Impõe o ateísmo como doutrina de Estado
Gestor dos conflitos de classe
Gestor de determinadas produções de bens e serviços
Regulador das relações sociais
Regulado pelo Estado de Direito
Gestor dos conflitos de classe
Gestor de determinadas produções de bens e serviços
Regulador das relações sociais
Regulado pelo Estado de Direito
Gestor dos conflitos de classe
Regulador das relações sociais
Regulado pelo Estado de Direito
Gestor dos conflitos de classe
Regulador das relações sociais
Regulado pelo Estado de Direito
“Britânicos”: garantidor das liberdades e da propriedade; respeitador das tradições
Católicos: deve submeter-se moral e politicamente à igreja e ao papa
Neoliberais: provedor de bens e serviços mínimos (polícia, moeda, justiça, padrões de pesos e medidas; em casos de pobreza extrema: auxílio financeiro)
Evangélicos: órgão de promoção da crença de cada seita; promotor da censura e da polícia de costumes
Órgão por excelência da vontade nacional
Deve ser entendido como sendo, em si, uma instituição moral
O desrespeito ao Estado é um desrespeito à nação
A vontade do Estado está acima do comum dos indivíduos
13)         Governo espiritual
Responsável pela constituição e expressão da opinião pública
Organizado em igrejas, com sacerdócios
Regulador das idéias e dos valores
Responsável pela consagração e pela regulação das famílias, das pátrias, dos indivíduos, do poder político e da riqueza
Deve manter-se escrupulosamente separado do governo temporal
Sua importância em face do poder temporal dá a medida da moralidade, do altruísmo e do pacifismo de uma sociedade e, portanto, de seu progresso
Constituído em um sacerdócio transnacional
O primado político cabe ao poder Temporal, não ao Espiritual
Ambigüidade: por um lado, as crenças são derivações das relações de produção; por outro lado, são instrumentos de dominação (da burguesia) ou de afirmação (do proletariado)
Nos países capitalistas, as igrejas são os órgãos de manutenção da religião, que é o “ópio do povo” (ideologia da exploração e da dominação do proletariado)
Nos países comunistas, o governo espiritual confunde-se e realiza-se por meio do Estado e do partido comunista
Deve realizar-se por meio de professores e filósofos
As igrejas (teológicas) eventualmente podem ser obstáculos ao socialismo e, por isso, são combatidas politicamente
Pode apoiar o governo em termos políticos, sociais e morais
Com frequência baseia-se no poder Espiritual e/ou extrai dele seus quadros
Tem uma tradição de apoio, estímulo, submissão
Aceitam e promovem a religião de Estado
Católicos: o Estado deve submeter-se à igreja e ao papa; seu sacerdócio tem caráter transnacional
Neoliberais: não reconhecem poder Espiritual, na medida em que são rigorosamente materialistas; entretanto, é necessário haver valores de respeito, confiança mútua, individualismo
Evangélicos: o único poder Espiritual é o da própria seita; todos os demais devem ser combatidos e/ou convertidos; o Estado deve estar a serviço da seita
O único poder Espiritual aceitável é o originário do Estado e por ele legitimado
Fontes independentes de poder Espiritual são vistas com desconfiança e como (potenciais) inimigos
14)         Paz
Resultado e condição da harmonia social e individual
Resultado da evolução histórica das sociedades
Internamente: os conflitos sociais devem ser evitados, controlados, dirigidos e aproveitados
Externamente: os conflitos entre países devem ser solucionados sempre via mediação
Os governos temporal e espiritual devem empenhar-se ativamente em manter e em obter a paz
O poder Espiritual deve ser o grande regulador e mediador dos conflitos sociais
A verdadeira paz só é possível quando o comunismo triunfar em nível mundial
Entre os países capitalistas, é sempre um equilíbrio temporário entre as potências imperialistas
Os países capitalistas querem sempre destruir os países comunistas
Fora do comunismo, todos os indivíduos e países são egoístas; apenas no comunismo existe um verdadeiro altruísmo
O multilateralismo e o internacionalismo são estratégias a serem empregadas se e enquanto forem úteis
A paz internacional é um objetivo verdadeiro, a ser atingido por meio do multilateralismo e do internacionalimso
A paz internacional é um objetivo verdadeiro, a ser atingido por meio do multilateralismo e do internacionalimso
Utiliza o equilíbrio de poder para obter a paz
“Britânicos”: utilizam o equilíbrio de poder para obter a paz; a paz é sempre instável, portanto
Católicos: a verdadeira paz é a instituída e regulada pela igreja e pelo papa
Neoliberais: a paz é uma conseqüência natural da diminuição radical do Estado e da substituição da política pela economia
Evangélicos: a única paz possível é a criada pela própria seita; em relação a todos os demais a postura é de confronto ou, pelo menos, reprovação e rejeição
A paz é sempre a morte do “espírito”; a nação revela-se e afirma-se por meio da guerra
O equilíbrio de poder é aceito apenas temporariamente; a única paz aceitável é a que subordina todas as demais nações à nação do político
O multilateralismo e o internacionalismo são recusados e vistos como defendidos por traidores e conspiradores
15)         Igualdade
Basicamente, um mito metafísico destinado a abolir estruturas sociais
Utilizada por juristas e propagandistas para obter o poder
Conceito que legitima os despotismos
O desenvolvimento social gera diferenças e desigualdades
Mas: do ponto de vista jurídico, deve ocorrer a igualdade perante a lei
Nas escolas, as classes sociais devem assistir em conjunto às aulas para terem a mesma formação e compartilharem valores e ideias (permitindo assim a fraternidade e a atuação do poder Espiritual)
É o objetivo maior do comunismo
Entendida em todos os sentidos possíveis: de classe, de status, de riqueza, de sucesso individual
Na busca da igualdade não se hesita em cometer crimes (expurgos, “revoluções culturais” etc.)
A despeito do discurso, estabelece uma distinção brutal entre governantes e governados
É o objetivo maior do socialismo
Entendida basicamente como igualdade de riqueza e de status, aceita a todavia a igualdade de condições
Igualdade perante a lei
Igualdade na escola
É o objetivo maior do Welfare
Entendida basicamente como igualdade de riqueza e de status, aceita a todavia a igualdade de condições
Igualdade perante a lei
Igualdade na escola
Eventualmente pode aceitar “ações afirmativas”
É indiferente às noções econômicas de igualdade; depende do grupo que está no poder
Igualdade perante a lei
“Britânicos”: não se incomodam com as diferenças de status, mas exigem a igualdade perante a lei
Católicos: em sua teologia, todos são iguais perante a divindade, mas na prática aceita as mais variadas desigualdades (poder, status, riqueza)
Neoliberais: rejeitam a igualdade econômica e exigem a igualdade perante a lei
Evangélicos: aceitam a igualdade nas próprias seitas e, reconhecendo a diferença em relação a todos os demais, desprezam-nos
Reconhecem as diferenças inarredáveis entre povos e nações
Na nação, todos são iguais; fora da nação, todos são diferentes e inferiores
16)         Indivíduos e individualidades
O individualismo é um erro intelectual, moralmente injustificável
O individualismo é a secularização e a transposição para a Sociologia da igualdade dos crentes perante a divindade protestante
O individualismo consagra o egoísmo, a secura afetiva, a esterilidade intelectual, o absolutismo filosófico, as concepções parciais
Mas: a Humanidade é um ser composto, cujos elementos são seres separados – em última instância, os indivíduos
Assim, da mesma forma que as famílias, as pátrias, o poder político e a riqueza, devem os indivíduos ser consagrados e regulados, ou seja, responsabilizados
Os indivíduos são os agentes da Humanidade e realizam o presente
As crenças individuais devem sempre ser respeitadas
Os indivíduos não existem, exceto os grandes líderes comunistas
Os indivíduos são uma elaboração ideológica burguesa
No comunismo, quem afirma-se como individualidade comete o crime de lesa-revolução
No comunismo ideal, na ausência de classes e de Estado, haverá apenas indivíduos; eles serão alegres diletantes de tudo e não haverá obrigações nem responsabilidades
A perspectiva social deve prevalecer, mas os indivíduos são largamente respeitados
A perspectiva social deve prevalecer, mas os indivíduos são respeitados
A lógica própria ao Welfare tende a desconsiderar as motivações individuais e a tirar a responsabilidade individual por suas ações
Basicamente o centro constitui-se de indivíduos e individualidades renomados
“Britânicos”: os indivíduos são o valor político por excelência; não há sociedade, embora a tradição confira um caráter social aos indivíduos
Católicos: na medida em que são católicos, os indivíduos são respeitados; suas diferenças são acomodadas nas diversas vocações e ordens eclesiásticas
Estimulam o individualismo e egoísmo (sejam hedonistas ou não)
Não há “sociedade”, apenas agregados de indivíduos
Neoliberais: juntamente com as empresas, os indivíduos são as únicas unidades existentes
Evangélicos: perante a divindade há apenas indivíduos e ambos comunicam-se direta e pessoalmente
Ambigüidade: perante a nação, os indivíduos não existem, exceto os grandes líderes; mas retoricamente há o respeito às individualidades

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