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13 dezembro 2023

Napoleão avaliado pelo Positivismo

No dia 10 de Bichat de 169 (12.12.2023) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, agora em sua nona conferência (dedicada ao conjunto do regime).

No sermão abordamos a avaliação feita por Augusto Comte sobre Napoleão Bonaparte, considerando o lançamento, no final de novembro de 2023, do filme homônimo dirigido por Ridley Scott.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (https://l1nq.com/pDP30) e Igreja Positivista Virtual (https://acesse.one/BHE41). Infelizmente, devido a problemas técnicos causados pela empresa NET-Claro, o sinal de internet pifou por volta de 28 min 57 s, interrompendo a transmissão no canal Positivismo. Como a empresa Meta-Facebook decidiu tirar do ar as transmissões após o prazo de 30 dias, a fim de manter a memória dessa prédica baixamos o respectivo vídeo do canal Igreja Positivista Virtual e carregamo-lo no canal Positivismo.

O sermão começa aos 51 min.

As anotações que serviram de base para a exposição oral estão reproduzidas abaixo.

*   *   *


Napoleão à luz do Positivismo
 

-        No final de novembro de 2023 estreou o filme Napoleão, dirigido por Ridley Scott e interpretado por Joaquim Phoenix

o   Ridley Scott já dirigiu grandes filmes históricos, como Cruzada (embora tenha feito algumas tolices, como a ficção espacial Alien e, em menor medida, Blade Runner)

-        O caso de Napoleão é exemplar da situação em que um “grande homem” não é a mesma coisa que alguém a ser celebrado e/ou valorizado

o   Outro caso, mais contemporâneo para nós, é o de Hitler

-        Aliás, o caso de Napoleão é interessante porque permite de uma única vez desfazer três mitos:

o   O mito de que existiria a chamada “história positivista” e que ela consistiria no “culto aos grandes homens”

§  A história positivista é, acima de tudo, uma sociologia que se desenvolve ao longo do tempo, ao mesmo tempo em termos intelectuais, políticos e morais

·         Mas, ao mesmo tempo, Augusto Comte tinha clareza de que muitas vezes os “acidentes históricos” são determinantes (assassinato de Júlio César; morte de Hoche e ascensão de Napoleão)

§  O culto aos grandes homens realmente existe no Positivismo, mas ele tem um caráter cultual, de valorização das ações construtivas dos seres humanos, e não propriamente intelectual, de explicação sociológica

o   O mito de que basta ser um “grande homem”, ou melhor, um “homem famoso”, ou um líder com grande poder, para que esse homem/líder mereça ser celebrado, no âmbito do culto público

o   O mito de que Napoleão, em particular, merece ser valorizado e/ou celebrado

§  Nesse sentido, é notável que muitas pessoas, que se dizem “críticas” reclamem que o filme em questão não seja elogioso e/ou um retrato mais fiel do tirano retrógrado

§  Na verdade, há gente que se diz “plural”, “aberta” e/ou “democrata” mas que consegue ao mesmo tempo criticar o militarismo no Brasil e, contraditoriamente, elogiar Napoleão como um “grande líder”!

-        No âmbito do Positivismo, além dos aspectos indicados acima, Napoleão integra várias outras reflexões:

o   Por um lado, ele integra plenamente a reflexão sobre a Revolução Francesa e, assim, a filosofia da história proposta por Augusto Comte – em particular, em termos de traição, degradação e corrupção dos altos, esperançosos e fraternos ideais e das práticas revolucionárias

§  Na edição da editora Akal (Augusto Comte, Física social, Madrid, Akal, 2012[1]), a avaliação de Napoleão por Augusto Comte estende-se pelo menos da página 1021 até a página 1034 e encontra-se presente na lição n. 57 do Sistema de filosofia positiva, dedicada principalmente ao exame sociológico da Revolução Francesa

o   Por outro lado, o culto retrógrado e militarista a Napoleão é substituído pelo culto republicano a Joana d’Arc

-        Dito isso, algumas datas mínimas, para termos clareza do que tratamos:

o   Nascimento em 1769, na Córsega (então recém-incorporada à França)

o   1789: início da Revolução Francesa

o   1792: início do governo da Convenção Nacional

o   1793: generalato, no comando do Exército da Itália

o   1794: proclamação da República, após a execução de Luís XVI

o   1798: campanha do Egito

o   1799: golpe civil-militar, com o estabelecimento do Consulado; torna-se o “Primeiro Cônsul”

o   1802: restabelecimento da escravidão no império francês, em particular no Haiti

o   1804: coroado “imperador dos franceses”

o   1812: derrota na campanha da Rússia

o   1813-1814: derrota perante a Sexta Coligação; invasão da França e ocupação de Paris; exílio em Elba (na costa da Itália)

o   1814: entronização de Luís XVIII

o   1815: retorno no período dos Cem Dias; derrota em Waterloo e exílio em Santa Helena (no meio do Atlântico Sul)

o   1816: retorno de Luís XVIII

o   Morte em 1821, no exílio, aos 51 anos

-        Quando a Revolução Francesa estava em seus momentos finais, a ditadura militar era cada vez mais o desfecho previsível e mesmo necessário

o   A ditadura militar tornou-se cada vez mais inevitável, na medida em que as guerras revolucionárias afastavam-se da defesa contra invasões externas, levavam os exércitos para solos e costumes estrangeiros, afastavam-nos dos assuntos internos, vinculavam-se menos com o patriotismo geral, identificavam-se mais com os líderes militares, deixavam de subordinar-se ao poder civil; por fim, as agitações metafísicas pareciam requerer, para sua compressão, a atuação militar

o   Lázaro Hoche (1768-1797) era o grande general que se divisava como provável líder progressista dessa ditadura militar, mas sua morte prematura deu lugar ao imerecido Napoleão

o   Eis o trecho em que Augusto Comte avalia o advento de Napoleão, no curso da Revolução Francesa:

Por tanto, era sin lugar a dudas imposible que el conjunto de tal situación no condujese enseguida a la instalación espontánea de una verdadera dictadura militar, cuya tendencia, retrógrada o progresiva, por lo demás, a pesar de la influencia natural de una reacción pasajera, tenía que depender en gran medida, y sin ninguna duda más que en ningún otro caso histórico, de la disposición personal de aquel que habría de honrarse de ello, entre tantos ilustres generales que la defensa revolucionaria había suscitado. Debido a una fatalidad eternamente deplorable, esta inevitable supremacía, a la que el gran Hoche parecía estar en un principio tan oportunamente destinado, le cayó en suerte a un hombre casi ajeno a Francia, surgido de una civilización retrasada, y especialmente animado, bajo el secreto impulso de una naturaleza supersticiosa, por una involuntaria admiración hacia la antigua jerarquía social, mientras que la inmensa ambición que le devoraba no se encontraba realmente en armonía, pese a su vasto charlatanismo característico, con ninguna eminente superioridad mental, salvo la relativa a un indiscutible talento para la guerra, mucho más ligado, sobre todo en nuestros días, a la energía moral que a la fuerza intelectual (Filosofia, lição 57, p. 1023)[2]

-        Vários aspectos da avaliação de Napoleão por Augusto Comte:

o   Napoleão não entendeu o espírito da época, preferindo (mesmo que secretamente, ou melhor, hipocritamente) o Antigo Regime e sentindo-se à vontade apenas nele; além disso, mesmo em meio à necessária ditadura militar que teria lugar na França, Napoleão poderia e deveria ter estimulado e orientado melhor os esforços nacionais para a reorganização social, no sentido da positividade, da paz, da fraternidade – como esteve muito claro para líderes que foram grandes chefes militares e grandes estadistas, anteriores a Napoleão, como Cromwell, Richelieu e Frederico II

o   Napoleão foi ativamente militarista, monarquista e traidor dos ideais da Revolução Francesa: ele realizou a “ressurreição oficial do catolicismo”; o “estimulo sem exemplo que então receberam todos os instintos egoístas não dispensou o espírito militar de fundar sua orgia final sobre um recrutamento forçado” (Catecismo, p. 444)[3]

o   A defesa nacional forçada pelas contínuas e generalizadas guerras de conquista provocadas por Napoleão foi o único meio de conjugar a glória nacional francesa com a preservação da memória desse líder degradante:

“La vergonzosa forma de este indispensable derrocamiento ha constituido desde ese momento la única base sobre la que se ha hecho posible establecer, con una especie de éxito pasajero, una aparente solidaridad entre nuestra propia gloria nacional y la memoria individual de aquel que, más nocivo para el conjunto de la humanidad que ningún otro personaje histórico, siempre fue especialmente el más peligroso enemigo de una revolución de la que una extraña aberración ha obligado a veces a proclamarlo el principal representante (Filosofia, lição 57, p. 1028-1029)[4]

o   Napoleão pretendeu criar uma nova dinastia, com a pretendida reconstituição – degradada e servil – do catolicismo oficial, sob a justificativa de conceder estabilidade ao regime

o   É necessário afirmar que o militarismo ativo era o meio empregado para que não se evidenciasse o ridículo da renovada monarquia napoleônica

o   Napoleão corrompeu a moral nacional francesa, estimulando a tirania e oferecendo a Europa de butim como contrapartida à degradação moral

§  O conjunto da política imperial levou a França a oscilar entre duas vergonhas: ou a violência de suas armas ou a traição de seus princípios

§  Ele pôs a França em perigo e estimulou a retrogradação na Europa, ao estimular a criação de coalizões retrógradas contra o imperialismo napoleônico

o   Contra as intenções militaristas, imperialistas, monarquistas e clericalistas de Napoleão, as “invasões imperiais” estimularam os anseios de liberdade e independência nos povos invadidos, o que, indiretamente, de fato favoreceu a difusão dos ideais revolucionários

-        O culto a Napoleão era considerado por Augusto Comte como irracional e imoral; além disso, o seu nacionalismo chauvinista era encarado como desprezível e indigno da França

o   O culto a Napoleão baseava-se no estímulo direto da vaidade nacional francesa, além de um estímulo geral aos vícios próprios a todos os seres humanos

§  Como indicamos antes, o culto a Napoleão exigia o militarismo ativo, a fim de distrair a atenção para o ridículo da coisa

o   No lugar do culto a Napoleão, Augusto Comte afirmava a necessidade de substituição pelo culto a Joana d’Arc, que conduziu a França à vitória final – em particular, garantindo a independência do reino – no final da Guerra dos Cem Anos (1337-1453)

§  Como indicamos antes, o culto positivista a Joana d’Arc, realizado pelo menos até a I Guerra Mundial, era plenamente republicano e secular

§  A afirmação pública do culto a Joana d’Arc em substituição ao de Napoleão foi feita por Augusto Comte na conclusão de um de seus cursos de história da Humanidade, sendo efusivamente aplaudido

o   Adicionalmente, vale notar que Augusto Comte, ao começar a projetar o culto público e o calendário positivista concreto em 1847, considerou que o último dia do ano deveria ser consagrado à reprovação pública de alguns tipos

§  Considerações posteriores indicaram que um tal tipo de prática pública seria antipositiva e contrária ao altruísmo, ao estimular o ódio e, no final das contas, ao também celebrar personagens que devem ser desprezadas

§  De qualquer maneira, Augusto Comte considerou inicialmente três nomes, depois reduzidos para dois: o imperador Juliano, o apóstata; Felipe II (depois excluído dessa consagração às avessas) – e, acima de todos, Napoleão

-        É perfeitamente válida a aproximação da figura de Napoleão da de Hitler

o   Aspectos de aproximação:

§  Ambos foram militaristas e imperialistas

§  Ambos ansiaram dominar toda a Europa

§  Ambos foram, portanto, profunda e violentamente retrógrados

o   Aspectos de distanciamento:

§  O projeto hitleriano envolvia necessariamente o genocídio racista dos judeus e de outros grupos sociais; além disso, as ações de Hitler resultaram na destruição e posterior divisão da Alemanha: os alemães não se esquecem do segundo elemento e o mundo não perdoa o primeiro elemento

§  Napoleão não destruiu a França; mas é claro que suas ações institucionais permitiram a substituição orgânica do seu império pela monarquia que tinha sido gloriosamente extinta cerca de 20 anos antes

§  Sendo bem franco: é o chauvinismo francês mantém o mito napoleônico – estimulado desde o início pelo próprio Napoleão!

·         Inversamente, o genocídio praticado por Hitler, o seu sistemático antissemitismo, a destruição total que ele causou à Alemanha e a reação universal contra o nazismo tornaram (não por acaso e com justiça) inaceitável qualquer menção a ele

o   Por certo que Augusto Comte viveu quase um século antes de Hitler; mas podemos sugerir o seguinte:

§  Sem desculpar nada das ações de Hitler, o fato é que ele consistiu claramente em um “ponto fora da curva” e, portanto, apresenta um caráter excepcional

§   Napoleão, por outro lado, atuou inserido no processo histórico da Revolução Francesa; podendo liderar esse processo, ele conscientemente escolheu trair e corromper os ideais desse processo

·         Assim, Napoleão não foi um “ponto fora da curva”, mas ele escolheu levar a curva para a direção errada



[1] Vale notar que essa edição é bastante ambígüa. Por um lado, é uma tradução bem feita, do francês para o espanhol, de muitos capítulos do Sistema de filosofia positiva, em particular as lições 46 a 57, ou seja, os volumes 4, 5 e metade do 6. Injustificadamente o organizador decidiu deixar de lado as lições 58 a 60, que concluem a referida obra. Todos esses capítulos – do 46 ao 60 – correspondem à fundação da Sociologia de Augusto Comte, errada mas propositalmente chamada de “Física Social”. Por fim, o tradutor – Juán R. Goberna Falque – redigiu uma longa introdução, bem como inseriu muitas notas explicativas; refletindo a ofensiva ambigüidade do emprego da expressão “Física Social”, tanto a introdução quanto muitas das notas são aviltantes e desmerecem profundamente, a partir do mais banal cientificismo academicista, a obra de Augusto Comte. Em suma, resta apenas a tradução (incompleta) da primeira Sociologia de Augusto Comte.

[2] Augusto Comte, Física social, Madrid, Akal, 2012.

[3] Augusto Comte, Catecismo positivista, 4ª ed., Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1934.

[4] Augusto Comte, Física social, Madrid, Akal, 2012.

24 outubro 2023

Sobre o militarismo

No dia 17 de Descartes de 169 (24.10.2023) fizemos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo Positivista. Nesse sentido, iniciamos a nona conferência, dedicada ao conjunto do regime positivo.

No sermão abordamos o tema do militarismo, examinado à luz da Religião da Humanidade.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://acesse.dev/8GzSn) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/tD6iK). O sermão começou em 43' 45".

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Sobre o militarismo 

-        Um dos temas a respeito dos quais há enorme confusão é o militarismo

o   Essa confusão é resultado tanto de boa fé quanto de má-fé – o que, lamentavelmente, inclui mesmo pessoas que se dizem próximas ao Positivismo

o   Na verdade, bem vistas as coisas, exatamente devido às confusões que envolvem o Positivismo e os militares, o tema do militarismo é um ótimo parâmetro para avaliação do conhecimento, do entendimento e da adesão que se tem do Positivismo, da mesma forma que do viés dos comentários (boa ou má fé)

o   A confusão consiste em atribuir ao Positivismo a alcunha de militaristas e de militarismo – isso quando o Positivismo é radicalmente pacifista!

§  As pessoas de boa fé partem dos preconceitos correntes para atribuir ao Positivismo tal associação

§  As de má-fé repetem esse preconceito para degradar o Positivismo

§  Por fim, há indivíduos que, rondando o Positivismo, mesmo a despeito de terem noções da doutrina positivista, rejeitam o pacifismo e buscam justificar o militarismo por meio dos mais variados expedientes retóricos e sofísticos

-        Quais são as concepções de Augusto Comte a respeito do militarismo? A resposta a essa questão passa pelo que nosso mestre dizia a respeito da guerra e, de modo mais amplo, da violência

-        Consideremos, antes de mais nada, que há três leis dos três estados; a mais famosa é a lei intelectual, mas o que nos importa aqui é a lei prática

o   Essa lei estabelece que a atividade é primeiro militar conquistadora, depois militar defensiva e enfim pacífico-industrial

o   Evidentemente, ela estabelece um papel positivo para a guerra – mas não para qualquer guerra nem em qualquer momento

o   As guerras fetíchicas, dos povos nômades ou seminômades, em que a destruição dos inimigos é prática habitual, estão excluídas dessa regra

§  Elas têm uma “função social”, mas, como destroem os inimigos, Augusto Comte considera que elas não têm um papel construtivo

o   Em termos de grupos sociais, é importante notar que as teocracias iniciais eram mantidas estáveis pela preponderância dos sacerdotes sobre os guerreiros

§  Daí o recurso a guerras distantes, em que os sacerdotes afastavam os guerreiros

§  As teocracias iniciais, devido à estabilidade assim obtida, eram politeísmos conservadores

§  Quando os sacerdotes perdem afinal a preponderância sobre os guerreiros, as antigas teocracias tornam-se sociedades militaristas, na forma de politeísmos progressivos

o   As guerras incessantes entre grupos, incapazes de conduzir a coletividades maiores e estáveis, não são valorizadas por Augusto Comte

§  O maior exemplo disso são as lutas intestinas gregas (como a Guerra do Peloponeso)

§  Esparta poderia ter desempenhado o papel de núcleo de uma sociedade ampla; mas suas elites eram muito mesquinhas e voltadas para seus próprios problemas

o   As guerras de conquista que importam são aquelas que constituem coletividades amplas e duráveis

§  Internamente, constituem-se grandes áreas pacíficas, em que a indústria pode prosperar

§  O maior exemplo disso foi o império romano

·         Roma, além de ter tido a glória de ser o grande exemplo de sociedade militar conquistadora, apresentou inúmeras outras qualidades:

o   A subordinação da inteligência à atividade prática

o   A valorização das virtudes públicas e, a partir disso, regulação da vida privada

o   A grande emancipação mental das suas elites

o   O entendimento de que a guerra deve visar à paz

o   O desenvolvimento da indústria

§  Além do desenvolvimento da atividade pacífica, a grande comunidade criada por Roma permitiu que a cultura grega fosse disseminada e criou as condições para a renovação moral própria a São Paulo e ao catolicismo

·         Nesse sentido, a seqüência definida por Augusto Comte entre Grécia, Roma e Idade Média é uma seqüência necessária, no sentido de que somente ela poderia ter os frutos que apresentou

-        As guerras de conquista, ao criarem amplas comunidades estáveis e perduráveis, cedem lugar às guerras de defesa, em que o que importa não é a expansão territorial, mas a defesa e a preservação dos limites obtidos

o   No Ocidente, essa fase correspondeu caracteristicamente à Idade Média

o   As guerras de defesa são ilustradas pelas Cruzadas

o   A ação do sacerdócio e do papado como intermediários entre os governos temporais ilustra a passagem paulatina dos hábitos guerreiros para os hábitos pacíficos

o   Nessa fase ocorre a emancipação (também paulatina) dos antigos escravos para a condição de trabalhadores livres

-        A partir disso, paulatinamente as preocupações guerreiras são substituídas pelas preocupações industriais

o   Afirma-se cada vez mais o valor e a importância da vida humana

§  Matar e/ou morrer torna-se cada vez mais um ato ignóbil

o   A busca militarista da honra e da glória são substituídas pelas preocupações civis com o conforto e o bem-estar

o   Os meios violentos de solução de conflitos são paulatinamente substituídos pelos meios pacíficos de solução de conflitos

§  Mais do que isso: cada vez mais, os meios violentos são vistos como errados e aberrantes (chegando ao ponto de serem vistos como “foras da lei”)

·         Em outras palavras, há a mudança de perspectiva, em que a guerra deixa de ser algo triste mas habitual para tornar-se algo terrível, degradante e anormal

§  O repúdio à violência implica, necessariamente e de maneira correlata, a importância crescente do poder Espiritual em relação ao poder Temporal

o   O trabalho passa a ser valorizado e, daí, também os trabalhadores

§  Entretanto, apesar de os benefícios trazidos pela sociedade industrial serem muito maiores e mais permanentes que os das sociedades guerreiras, o fato é que a regularização da sociedade pacífica é mais complicada que as das sociedades militares

·         Literalmente ela é mais complicada e indireta

·         Além disso, as qualidades industriais não são tão evidentes quanto as qualidades militares

·         Adicionalmente, há o sério problema de que (pelo menos inicialmente) a sociedade industrial estimula o egoísmo e as vistas particulares

-        A lei prática dos três estados tem que ser complementada pelas outras duas leis:

o   A lei intelectual dos três estados indica a substituição progressiva das concepções absolutas e indiscutíveis pelas concepções relativas e discutíveis

o   A lei afetiva dos três estados indica que as sociabilidades mais restritas, baseadas nas famílias e nas pátrias, são substituídas por uma sociabilidade mais ampla, que considera de fato a Humanidade

-        Assim, no fundo a lei prática dos três estados estabelece o seguinte:

o   A guerra faz parte da história humana

o   Inversamente, no grande desenvolvimento da Humanidade, é necessário passar pela guerra para chegar-se à concepção da paz

§  Isso significa que a guerra fez sentido e foi justificável no passado, mas não o é mais no presente

o   A transformação da atividade de guerras para a paz ocorre ao longo do tempo, com a acumulação de reflexões, de práticas, de mudanças sociais correlatas

o   A afirmação da sociedade pacífica exige, necessariamente, o repúdio crescente da guerra e dos meios violentos de solução de conflitos

o   Deveria ser evidente, mas para muitas pessoas não é: esse processo é ao mesmo tempo objetivo e subjetivo

§  Isso quer dizer que se trata tanto de condições sociais quanto de condições intelectuais/morais

o   Como a guerra tornou-se cada vez mais imoral, o recurso a elas torna-se cada vez mais inaceitável

§  Conseqüentemente, os militares tornam-se cada vez mais inúteis e onerosos

·         Os países com grandes gastos militares e grandes exércitos não por acaso são vistos como agressores em potencial

·         Nos países distantes dos grandes cenários de conflitos, os exércitos com freqüência são focos de desestabilização política, como na América Latina, na África e na Ásia

§  É importante ter muita clareza: a função de qualquer exército e de qualquer militar é matar e destruir

·         Assim, eventuais utilidades secundárias dos militares (disciplina, senso de dever, honra) são justificativas banais que fazem questão de enganar, romantizar e distrair do que realmente importa

·         Para tentarem justificar os seus gastos e, assim, legitimarem-se, os militares cada vez mais assumem funções pacíficas, que fogem de suas missões precípuas: desenvolvimento econômico, técnico e científico; missões de paz; auxílio humanitário; trabalhos civis; logísticas diversas (eleições, correios etc.)

-        Vale a pena considerarmos as teorias habituais sobre a guerra: elas atribuem os conflitos armados à natureza humana, e/ou à ausência de poder superior e/ou à vontade humana de realizar conflitos

o   No caso de considerar-se a natureza humana como a fonte dos conflitos, essa natureza humana apresenta as seguintes características

§  É totalmente estática (ou seja, ela não se aperfeiçoa ao longo do tempo)

§  É apenas egoística

§  É agressiva

o   No caso da ausência de poder superior, a concepção é que não há uma instância capaz de regular as relações entre as unidades políticas e, caso necessário, impor a ordem

o   No que se refere à vontade de realizar conflitos, a concepção subjacente é que os atores relevantes consideram que as guerras são formas aceitáveis de relacionamento e de solução das diferenças entre os países

o   O Positivismo concorda com elementos de cada uma dessas concepções, embora discorde de alguns de seus aspectos:

§  A natureza humana não é só egoística nem agressiva, nem se mantém estática ao longo do tempo; ela é altruísta e passível de paz, mas isso exige um longo desenvolvimento prévio

§  A ausência de um poder superior a todas as nações não resolveria o problema, na medida em que, considerando a extensão territorial dessa unidade política e as gigantescas variações morais, intelectuais e práticas entre os países, a única forma de manter alguma paz seria por meio da tirania global

·         Órgãos de coordenação entre os países são importantes – daí o papel da diplomacia

·         Mas o que importa mesmo é a coordenação moral e intelectual entre os países, em particular no sentido do pacifismo e da rejeição do militarismo/belicismo

·         Pátrias pequenas facilitam a paz; inversamente, pátrias grandes estimulam (ou facilitam) a guerra

§  Considerando que a paz exige um longo período para seu desenvolvimento histórico, pelo menos desde o século XIX ela é um objetivo a ser perseguido e obtido com seriedade, em particular após 1945

-        A partir dos elementos acima, a rejeição geral da violência nas relações sociais é afirmada no Positivismo

o   Isso tem dois aspectos, um interno e outro externo

§  Internamente aos países, as relações sociais têm que ser estruturadas pelo convencimento mútuo e pela fraternidade universal

§  Externamente, as relações entre os países têm que se pautar pela paz e pela negociação (incluindo a arbitragem)

o   Em virtude disso, Augusto Comte afirmava a necessidade imperiosa de dissolução de todos os exércitos, com sua substituição por forças policiais

§  Convém lembrarmos que as polícias têm como função básica a manutenção da ordem, não a destruição e a morte

§  Além disso, Augusto Comte recomendava aos positivistas militares que mudassem de profissão ou que buscassem orientar suas atividades na caserna para objetivos construtivos

-        Sobre o militarismo e o Positivismo no Brasil:

o   A República foi proclamada em 1889 tendo à frente o positivista Tenente-Coronel Benjamin Constant

§  O fato de ter sido militar facilitou sua atuação em 15 de novembro, mas foi o seu positivismo que permitiu que Benjamin Constant imprimisse uma orientação civilista à sua prática docente e ao governo provisório

o   A orientação civilista e pacifista dos positivistas foi seguida com seriedade; o maior e melhor exemplo disso é o de Rondon, que tinha por mote “morrer se for preciso, matar nunca” e que, por suas atividades sertanistas e indigenistas, foi denominado “o Marechal da Paz” (e indicado ao Prêmio Nobel da Paz)

o   A orientação civilista e pacifista dos positivistas tornou-os alvos básicos e preferenciais dos militares militaristas, muitos dos quais depois aderiram ao fascismo e de que o grande representante foi o General Góes Monteiro

§  Assim, a associação usualmente feita entre Positivismo e militarismo é apenas uma coincidência histórica – e, mais do que isso, uma coincidência profundamente enganadora

o   Afastando-se do tema estrito das relações entre militares e Positivismo, vale lembrar que a República – não por acaso sob influência do Positivismo –, ao ser proclamada, adotou uma orientação pacifista, civilista e diplomática em suas relações internacionais, afastando-se radicalmente da orientação violenta, agressiva, imperialista e militarista do Império

§  A concepção de que o Império – tanto sob dom Pedro I quanto, em particular, dom Pedro II – foi uma época de bonança pacífica é uma completa e total mistificação, realizada pelos saudosos da monarquia, da escravidão e da sociedade de castas

§  Afastando-se do imperialismo imperial no Prata, a República adotou sistematicamente a prática da mediação e da arbitragem para solucionar seus problemas de fronteiras

·         Assim é que o Barão do Rio Branco deixou seus hábitos boêmios mantidos durante o Império e tornou-se, sob a República (e devido à República) um servidor público exemplar

-        Para concluir: o Positivismo é, sim, pacifista

o   Evidentemente, a nossa orientação geral é pacifista, mas, infelizmente, alguns conflitos acabam sendo necessários

o   Mas, de qualquer maneira, o que se evidencia – mais uma vez: o que se evidencia cada vez mais, desde pelo menos o século XIX e com força crescente após 1945 e após 1991 – é que as guerras atuais são iniciadas pela vontade de alguns líderes e/ou de algumas elites em fazer as guerras, devido à burrice e/ou à adesão a hábitos mentais violentos (falta de fraternidade universal, valores absolutos, paranóia etc.)