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29 novembro 2023

O republicanismo da Igreja Positivista

No dia 24 de Frederico de 169 (28.11.2023) fizemos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua nona conferência, dedicada ao conjunto do regime.

Em seguida, fizemos nosso sermão; tal sermão consistiu em uma nova exposição da palestra "A Igreja Positivista e a República", originalmente pronunciada no II Ciclo de Palestras do Centro Positivista do Lavradio, no dia 18 de novembro de 2023.

As anotações que serviram de base para essa exposição estão reproduzidas abaixo.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://encr.pw/lM3qW) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/wTmqL). O sermão iniciou-se em 1h 02' 30".

A exposição feita no II Ciclo de Palestras do Centro Positivista do Lavradio encontra-se disponível aqui: - Parte 1: https://www.youtube.com/watch?v=LPWVxrTJCNE - Parte 2: https://www.youtube.com/watch?v=0KH9tVFnn4s&t=2s

*   *   *


A IPB e a República 

-        Antes de mais nada: desejo congratular os todos os presentes por sua participação no II Ciclo de Palestras do Centro Positivista do Lavradio, bem como todos os expositores e palestrantes

o   Da mesma forma, importa parabenizar nosso correligionário Erlon Jacques de Oliveira por ter tomado a frente e organizado este novo evento

o   Por fim, mas não menos importante, devemos agradecer e parabenizar a direção da Sociedade Brasileira de Belas Artes por participar do evento e permitir que o Centro Positivista do Lavradio tenha lugar em suas instalações

-        Quando fui convidado para participar deste evento, o tema sugerido foi o do título oficial desta exposição: “a Igreja Positivista do Brasil e sua atuação na República”

o   A primeira idéia que me ocorreu, a partir disso, foi estabelecer uma relação de atividades da IPB por um lado desde 1881, quando Miguel Lemos fundou a Igreja, até o glorioso dia de 15 de novembro de 1889 e, por outro lado, desde essa data até 1927, quando ocorreu a transformação de Teixeira Mendes

o   Todavia, por mais útil que seja uma tal relação – e o fato é que esse tipo de lista é cada vez mais e urgentemente necessário! –, parece-me que o tipo de problemas por que a República brasileira atravessa desde há vários anos, bem como o tipo de filosofias políticas que se propõem, atualmente, a oferecer soluções para problemas que elas mesmas criam; enfim, parece-me que a situação presente da nossa República exige um tipo um pouco diferente de reflexão: não estritamente um rol de atividades, mas, antes disso, a inspiração profunda dessas atividades

o   Assim, se o título desta exposição é “A atuação da IPB em favor da República”, o seu subtítulo deve ser: “República brasileira e republicanização do Brasil

-        Indo diretamente ao ponto: sem ignorar ou desprezar os períodos posteriores, que já se referem a outras conjunturas, o fato é que o esforço da IPB, no meio século que vai de 1881 a 1927, foi o de instituir a República no Brasil e o de republicanizar o país

-        O devemos entender por “instituir a República” e “republicanizar o país”?

o   Instituir a República significava substituir a monarquia – regime caracterizado pela sociedade de castas, em que uma família, meramente por decreto divino, tinha o direito nato de governar o país e, daí, supostamente, a capacidade moral, intelectual e prática para tanto – por um regime humano, caracterizado francamente pela busca do bem comum, em que a moral estabelece os parâmetros gerais dos objetivos sociais e da conduta, além do relativismo e da fraternidade, ou seja, em outras palavras, mudar o regime monárquico pelo regime republicano

o   Republicanizar o país significa(va) desenvolver os usos e costumes próprios à república, ou seja, desenvolver na prática o conteúdo social e moral indicado no projeto da instituição da república; de maneira mais concreta, esse aspecto consiste em proscrever a violência nas relações internas e nas relações externas, substituindo-a pela fraternidade universal; estabelecer e garantir as plenas liberdades de pensamento, expressão e associação; garantir a plena liberdade industrial; desenvolver as relações industriais no sentido dos deveres mútuos entre patrões e empregados

o   Em termos de sociologia política contemporânea, um aspecto é institucional (proclamar a República), o outro é social-cultural (republicanizar o país); mas talvez muito mais importante que isso é indicar que cada um desses aspectos corresponde aos dois âmbitos do programa revolucionário na França, em termos de republicanismo, conforme indicado por Augusto Comte no Discurso sobre o conjunto do Positivismo (p. 70):

“Em seu significado negativo, o princípio republicano resume definitivamente a primeira parte da Revolução [Francesa], ao interditar todo retorno de uma realeza [...]. Por sua interpretação positiva, ele começa diretamente a regeneração final, ao proclamar a subordinação fundamental da política à moral, a partir da consagração permanente de todas as forças quaisquer ao serviço da comunidade”

-        Isso pode parecer pouco, mas não é; muito foi feito, especialmente no sentido da republicanização do país, mesmo antes do 15 de Novembro: a assombrosa marca de mais de 600 publicações da Igreja Positivista entre 1881 e 1927 é um sinal claro disso

o   Da mesma forma que os positivistas, a República e o republicanismo eram ideais levados a sério no Brasil – apesar do que a historiografia neomonarquista e marxista afirma desde 1930, para quem a I República foi um longo período (de 41 anos!) em que a população teria vivido no mundo da Lua, permanentemente alienada, fingindo que levaria a sério o republicanismo, mesmo apesar das vívidas disputas intelectuais, sociais e políticas da época

§  Os marxistas não têm muito compromisso com as instituições sociais que não sejam as propostas pelos comunistas, o que equivale a dizer que eles não tinham nenhum compromisso com a I República e sua adesão a quaisquer propostas seguia a orientação da União Soviética; os regimes  contemporâneos não comunistas são genericamente tachados de "burgueses" e, como tais, são desprezíveis por definição

§  Igualmente, os neomonarquistas por definição não tinham e não têm nenhum compromisso, nem com a I República nem com o republicanismo

o   Deveria ser evidente, mas não é: a adesão à I República e, ainda mais, ao republicanismo, não equivalia a ignorar os eventuais problemas do regime: assim, a maior parte dos republicanos, preocupados com o regime e com o caráter republicano da I República, apontavam problemas e indicavam sugestões

-        De qualquer maneira, desde a Proclamação da República, os ideais difundidos durante a monarquia passaram a ter que enfrentar o teste da realidade, com todas as dificuldades que isso implica; concomitantemente e em parte em conseqüência disso, surgiram as desilusões, juntamente com as críticas ao novo regime: embora o republicanismo fosse forte durante todo o período da I República, o fato é que nem sempre as críticas foram contrabalançadas por necessárias reafirmações do ideal republicano

o   Em face das desilusões e das críticas feitas à República após 1889, temos que perceber pelo menos três aspectos:

o   1) Os positivistas foram, desde o início, republicanos históricos e sempre tiveram enorme clareza de que há uma distância entre os ideais e a realidade e que, por mais que a realidade possa não corresponder aos ideais, isso não é motivo para desistir dos ideais em si – e, é claro, ainda menos no caso de ideais humanos, científicos, relativos, históricos e altruístas

§  Adicionalmente a esse aspecto, o enorme prestígio conferido pela República ao Positivismo – dado, entre outros motivos, pela fundamental participação de Benjamin Constant no movimento revolucionário, resultando no Decreto n. 4 de 19.11.1889 (bandeira nacional), no Decreto n. 119-A, de 7.1.1890 (separação igreja-Estado), e no Decreto n. 155-B, de 14.1.1890 (feriados nacionais) – associou a sorte do regime à sorte do próprio Positivismo, de tal maneira que um certo declínio do prestígio da República foi interpretado como declínio moral e intelectual do Positivismo

o   2) Houve críticas à República provenientes de republicanos históricos e de personagens ligadas estreitamente à fundação do regime; não consideramos aqui as críticas feitas nos anos imediatamente posteriores ao 15 de Novembro, mas as de décadas após, como as de Alberto Torres, que, na década de 1910, embora considerasse ponto pacífico a república presidencialista, afirmava a necessidade de desenvolver a nação no país e revalorizar a política, na forma específica de uma revisão constitucional – tão profunda que, na prática, equivalia a uma nova constituição

o   3) Passadas algumas décadas do advento do regime, na década de 1920 a adesão ao republicanismo era mais fraca, novas filosofias despontavam como “verdadeiramente democráticas” (a exemplo do comunismo e do nascente fascismo) e, portanto, a defesa tanto da República como regime concreto quanto do republicanismo como ideal político já era bem mais fraco: nesse ambiente, requentadas defesas da monarquia e inovadoras defesas do autoritarismo ganhavam guarida nas críticas à República – mas, a essa altura e em tal situação, o republicanismo já não era mais uma opção viável para muitos pensadores e muitos políticos

§  Temos, assim, por exemplo, Oliveira Vianna, que corresponde exatamente às características que indicamos acima: críticas extremas à República (talvez mesmo desprezo pelo regime e pelo ideal), saudades mal disfarçadas da monarquia (com idealizações fantásticas, quase alucinadas, desse período) e simpatia, também mal disfarçada, por propostas e regimes autoritários

§  Essas críticas foram aproveitadas e aglutinadas após 1930, quando um político surgido em um ambiente influenciado pelo Positivismo mas que não reconhecia nenhuma dívida e certamente pouco valor no Positivismo, assumiu o poder e implementou um regime que, não por acaso, era a negação prática do Positivismo: trata-se de Getúlio Vargas, que, também não por acaso, não teve nenhum pudor em associar-se à Igreja Católica em 1931 para retomar a religião oficial de Estado e aos fascistas, em novembro de 1937, para estabelecer o chamado “Estado Novo” (em 1941, com o objetivo de justificar o golpe de 1930 e, por extensão, o golpe de 1937, o Ministro da Educação e da Cultura do Estado Novo, Gustavo Capanema, retomou largamente as virulentas críticas de Oliveira Vianna à República)

-        A situação descrita acima é problemática devido a uma série de aspectos, estreitamente vinculados entre si:

o   Por um lado, considera-se que a I República acabou porque, acima de tudo, ela teria merecido acabar, supostamente porque ela teria sido “oligárquica”, antipopular, dissociada da realidade da nação: certamente ela tinha inúmeros problemas, mas isso não quer dizer que ela não tivesse virtudes nem que a população não a levasse a sério, não a considerasse um regime e um projeto sérios e dignos de serem defendidos

§  Por exemplo: nunca na história do Brasil tivemos nenhum regime político que levasse a sério a laicidade do Estado como ocorreu na I República; não era perfeita, mas pautada por leis sérias; inversamente, todos os regimes “democráticos” posteriores desprezaram, como desprezam, a laicidade do Estado (a despeito de declarações formais de autoridades), ou seja, fazem questão de usar o poder do Estado para impor doutrinas políticas, sejam teológicas, sejam metafísicas, sejam científicas

o   Como indicamos, o próprio sucesso do Positivismo no advento da República conduziu a associar a Religião da Humanidade ao regime; se o regime mereceu ser posto abaixo – juízo que, revelando o estrondoso sucesso do golpe de 1930, basicamente não é posto em questão –, o Positivismo também mereceu, como supostamente mereceria, ser deixado de lado

o   Em termos de republicanismo, o desprezo pela República, manifestado por Oliveira Vianna e consagrado por Getúlio Vargas e Gustavo Capanema, tornou-se uma característica do pensamento político brasileiro desde a década de 1920 (ou, se quiserem, desde 1930), criando um vazio político e intelectual em termos de regime político, que foi ocupado pelas diversas concepções de “democracia”, que vão desde a democracia iliberal de Vargas-Oliveira Vianna-Francisco Campos, passando pela democracia liberal dos nossos liberais católicos conservadores, como Miguel Reale, Alceu Amoroso Lima, Antônio Paim, Roberto Campos e outros, e chegando a outras democracias, como a comunista, de Luís Carlos Prestes

§  O vácuo político foi substituído, portanto, por filosofias políticas totalmente anti-republicanas, demorando décadas até que tivéssemos a maturidade política, institucional e social para tentarmos, de alguma forma, voltar a praticar alguma coisa parecida com o republicanismo – mas, note-se, ainda de maneira muito distante do que era o republicanismo da I República

§  Importa insistir: no Brasil, o juízo emitido por Oliveira Vianna e assumido por Gustavo Capanema-Getúlio Vargas, segundo os quais a República mereceu ser posta abaixo, foi assumido em 1930 e considerado legítimo desde então, basicamente sem contestação séria: isso era válido nas décadas de 1930 e 1940, mas, desgraçadamente, continua válido até hoje, 2023: não há verdadeira tradição republicana no país, como se vê na plêiade anti-republicana de partidos de aluguel que usam as palavras “república” e “republicano” sem nenhuma preocupação com o significado dessa palavra (aliás, não por acaso, o mesmo valendo para as palavras “ordem” e “progresso”)

§  No lugar do republicanismo afirmou-se a “democracia”; nós, positivistas, não temos nenhuma ilusão a respeito do caráter potencialmente autoritário da democracia: a proclamada “vontade do povo” é vazia por si só, correspondendo apenas aos caprichos irrefreados e absolutos de uma genérica, indefinida e indefinível “vontade geral”, que considera odiosa as liberdades de pensamento, de expressão e de associação e que também rejeita a submissão da política à moral com a necessária separação institucional entre igreja e Estado

Portanto, a oscilação entre autoritarismos e períodos liberais, que ocorreu após 1930, corresponde à própria concepção de “democracia”, mas afasta-se da de “república”; inversamente, a democracia só se torna aceitável quando, apesar de si mesma e dos seus próceres, ela aproxima-se da república

§  Por fim, devemos notar que a rejeição da república a partir da década de 1920 correspondeu, não apenas ao desprezo por um regime e por um alto e belo ideal, mas também a implantação consciente de um largo período de amnésia institucional, política e social no Brasil: afinal de contas, tornou-se um anátema defender o republicanismo, que dirá defender a I República: não é por acaso que, fingindo que a I República e o republicanismo não existiram, de maneira escandalosa tornou-se de bom tom defender a monarquia (como se ela não um regime de castas, escravista e escravocrata!) e mesmo a Era Vargas, aí incluído o Estado Novo!

-        Podemos voltar, então, ao início desta exposição: como dissemos, celebrar a atuação republicana da Igreja Positivista do Brasil não é, não pode ser e não tem como ser apenas a enumeração, seqüencial ou não, da longa, duradoura, corajosa, profunda campanha republicana dos positivistas ortodoxos brasileiros

o   Evidentemente, essa atuação foi importante por si só, pelos seus inúmeros resultados concretos e também pelos valores difundidos por ela

o   Mas o conjunto dessa atuação talvez seja o mais importante para nós, atualmente: muito longe de serem propostas e ideais “antigos”, “datados”, “ultrapassados”, que supostamente “mereceram perecer”, o fato é que os positivistas ortodoxos (mas não apenas eles!) indicaram com clareza como é possível conciliar o apoio a um regime político sem que com isso se degrade a sifocantas aduladores, “acríticos”: a concepção de “poder Espiritual” legitimador, avaliador, fiscalizador, associada necessariamente à separação entre os poderes Temporal e Espiritual (vulgarmente chamada de “laicidade do Estado”) e também à bela concepção dantoniana, ao mesmo tempo moral, política e histórica, de que “só se destrói o que se substitui” – tudo isso e muito mais garantiu a autonomia e, portanto, a dignidade do poder Espiritual (e, por extensão, da chamada “sociedade civil”); as preocupações e as propostas dos positivistas, longe de serem “datadas”, revelam-se cada vez mais atuais, necessárias e urgentes: esse é o verdadeiro republicanismo, o que, evidentemente, cumpre com urgência retomar e reafirmar

20 novembro 2023

Vídeos da palestra "A atuação republicana da IPB" (II Ciclo de Palestras do C. P. Lavradio)

No dia 14.Frederico.169 (18.11.2023) tivemos a oportunidade de participar do II Ciclo de Palestras do Centro Positivista do Lavradio, no Centro da cidade do Rio de Janeiro. O evento contou com o apoio e um pequeno patrocínio da Igreja Positivista Virtual.

Naquele momento pronunciamos a palestra "A atuação republicana da Igreja Positivista do Brasil", que foi transmitida pela internet e também gravada em celular.


A gravação em celular, realizada por mim mesmo, está disponível no canal Positivismo, em duas partes, aqui:



Os vídeos das demais palestras - todas elas interessantíssimas e que realmente valem a pena de serem vistas - podem ser vistos a partir daqui: https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2023/11/videos-do-ii-ciclo-de-palestras-do.html

14 dezembro 2022

Reconstrução da República, universalismo e anti-identitarismo

RECONSTRUÇÃO DA REPÚBLICA COMO TAREFA NECESSARIAMENTE UNIVERSALISTA E ANTI-IDENTITÁRIA[1]

 

A feliz e necessária derrota eleitoral do fascista, no dia 30 de novembro de 2022, muito mais que permitirá, na verdade obrigará o Brasil e os brasileiros a reconstruírem o país a partir de 1º de janeiro de 2023, desde as instituições até os hábitos de convívio. Será um caminho longo, difícil e demorado; o fascismo e os fascistas destruíram muito do país, permanecendo sua capacidade de atrapalhar o país, como se vê nos distúrbios no Norte e no Centro-Oeste do país, na violência em Brasília, na violência disseminada e relegitimada, na ressurgida baderna militar etc.

Mas há um aspecto que está escapando a todos, ou, pelo menos, à maioria.

A reconstrução necessária ao Brasil é em termos de República, de republicanismo: cidadania, valores compartilhados, isonomia (igualdade perante a lei), serviços públicos de qualidade. Todos esses aspectos são universais.

O fascista tornou-se governante com base no ódio e no projeto de destruir o país, mas também no particularismo e no facciosismo.

Assim, para que o país seja reconstruído, para que a sociedade e o Estado brasileiro recuperem-se da destruição sistemática sofrida nos últimos quatro anos, serão necessárias políticas e práticas universalistas.

Pois bem: as práticas e as políticas universalistas são práticas republicanas e dirigem-se a todos (ainda que, às vezes, concentrem-se em determinados grupos específicos). Essas práticas são universalistas e, por definição, são contra os particularismos e os facciosismos.

O republicanismo necessário à reconstrução do país repele, portanto, a política identitária. Repito: o necessário republicanismo repele a política identitária. Não adianta dizer que existe política identitária “do bem” (que seria, supostamente, a política identitária da esquerda) contra a política identitária “do mal” (a da direita): a política identitária por si só já é daninha, ruim e do mal. A política identitária é exclusivista, facciosista, particularista; ela baseia-se na afirmação de um grupo particular contra todos os outros; ela baseia-se no ressentimento social e político. Não é nenhum acaso que a política identitária recuse terminantemente o republicanismo e, por extensão, o universalismo.

A necessária reconstrução social e institucional interna do Brasil, bem como a necessária reconstrução da atuação internacional do Brasil, exigem a visão de conjunto; mas a política identitária rejeita (ou melhor, despreza) a visão de conjunto.

Aceito sem dificuldade que muitos grupos identitários apóiam a saída do fascista: isso é uma questão fática. Entretanto, tenhamos claro: os grupos identitários que se opuseram ao fascista opuseram-se a ele não porque esses grupos apoiam o republicanismo ou universalismo, mas apenas porque o identitarismo do fascista opõe-se ao identitarismo desses grupos. Em outras palavras, os identitários de esquerda opõem-se aos identitários de direita apenas porque só sabem locomover-se no âmbito de seus particularismos e seus facciosismos, não porque defendam o republicanismo e o universalismo.

Repito novamente: a reconstrução do Brasil exige, como deveria ser evidente, uma perspectiva universalista (seja em termos nacionais, seja em termos internacionais), mas a política identitária rejeita esse necessário universalismo.

Por que eu faço essas observações? Porque eu tenho certeza de que a partir de 1º de janeiro de 2023 o facciosismo identitário (de esquerda) dirá que quem é contra esse facciosismo é “retrógrado” ou contra o “progresso” – como se o verdadeiro progresso aceitasse o facciosismo ou como se os identitários valorizassem de verdade o progresso.

 



[1] Este texto é uma versão levemente alterada de uma postagem feita em 6 de dezembro de 2022, em minha conta pessoal do Facebook. Disponível em: https://www.facebook.com/gblacerda1977/posts/pfbid0gat4SevMeX2r6sDGSMc7uCNfyiSWq4zAGv1zFvTgTJHipjzyVzErq8viuCznYXz6l; acesso em: 14.12.2022.

18 novembro 2022

Live AOP: O Positivismo, a República e a bandeira no Brasil

Em 17 de novembro de 2022 realizamos uma Live AOP intitulada "O Positivismo, a República e a bandeira no Brasil"; essa conferência consistiu em uma celebração pública da República no Brasil e, a partir daí, da atuação dos positivistas em prol da República, antes e depois do 15 de Novembro de 1889.

Abaixo reproduzimos as anotações que fizemos para guiar a exposição. Tendo cinco partes, as mais importantes são as partes 3, 4 e 5. No vídeo disponível no canal Positivismo, cada uma dessas partes pode ser vista a partir dos seguintes momentos:

- Parte 3 (concepções do Positivismo sobre a República): a partir de 7' 18" até 45' 28"

(Atenção: entre 7' 30" e 13' 31" houve uma falha no sinal de internet, de modo que a tela fica totalmente preta.)

- Parte 4 (atuação dos positivstas brasileiros em favor da República): a partir de 45' 29" até 1h 32' 19"

- Parte 5 (a bandeira nacional republicana): de 1h 32' 20" até 2h 16' 21"

A conferência pode ser vista no canal Positivismo; devido à interrupção do sinal que experimentamos logo no início da exposição, passamos a transmiti-la também no canal Apostolado Positivista, disponível aqui. (Os tempos indicados acima se referem ao vídeo do canal Positivismo, não ao do Apostolado Positivista.)


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O Positivismo, a República e a bandeira no Brasil

 

Roteiro:

1.      Explicação do objetivo da apresentação

2.      Apresentação pessoal

3.      Concepções do Positivismo sobre a república

4.      Atuação dos positivistas brasileiros em favor da República

5.      Sobre a bandeira nacional

 

1.      Explicação do objetivo da apresentação

a.       Inaugurar a Live AOP por um positivista

b.      Apresentar alguns elementos teóricos e históricos do Positivismo sobre a República e a bandeira

c.       Desfazer mitos sobre o Positivismo na República e sobre a bandeira nacional

2.      Apresentação pessoal

a.       Sociólogo da UFPR

b.      Doutor em Sociologia Política (UFSC, 2010)

c.       Autor de numerosos livros sobre o Positivismo

d.      Positivista ortodoxo, dono do blogue Filosofia Social e Positivismo e dos canais Apostolado Positivista e The Positivism

3.      Concepções do Positivismo sobre a República

a.       O Positivismo considera que, com a positividade, no estado normal, o bem comum, o altruísmo deve ser o parâmetro fundamental das relações sociais

b.      Em termos de regimes políticos e sociais, o Positivismo propõe duas concepções complementares: a sociocracia e a república

c.       A sociocracia consiste na organização social mais ampla, ou seja, ela inclui os parâmetros de condutas individuais e coletivas, entre as classes, entre os grupos diversos, entre as famílias – e entre os cidadãos e o Estado

                                                                          i.      Pode-se dizer que a sociocracia são os valores que fundamentam e regem a vida coletiva, ou mesmo, em certo sentido, a “cultura política”

                                                                        ii.      A sociocracia afirma o bem comum, a busca do altruísmo, os deveres mútuos; é o governo da sociedade pela sociedade a partir de princípios e valores sociais

                                                                      iii.      É o regime positivo próprio ao estado normal, pois é altruísta, pacífico e relativo; é tolerante e baseado pelo bem comum e pelo primado da opinião pública

                                                                      iv.      Em contraposição, a chamada “democracia” é metafísica

1.      A democracia é metafísica no sentido de Rousseau, pois esta consiste na secularização parcial do direito absoluto divino dos reis, que se torna direito absoluto do “povo”: cabe perfeitamente aqui a frase “A voz do povo é a voz de deus”

2.      A democracia também é metafísica no sentido liberal, pois esta considera que a sociedade é a mera soma dos indivíduos, que o Estado é inimigo dos “indivíduos”, que a opinião pública pode ser reduzida à soma das vontades individuais (em particular por meio dos votos)

d.      A república consiste no regime político propriamente dito

                                                                          i.      Augusto Comte reconhecia dois sentidos complementares para a república:

1.      Sentido negativo: república como regime antimonárquico, ou seja, substituição do absoluto teológico pelo relativismo positivo como fundamento político

2.      Sentido positivo: república como o regime do primado do interesse coletivo sobre o interesse individual

a.       Além disso: caráter social da república, não meramente político; assim, preocupação central com a geração de empregos, combate ao desemprego, melhoria da qualidade de vida etc.

                                                                        ii.      A república é necessariamente presidencialista

1.      O presidencialismo vincula-se às noções de deveres mútuos e de responsabilidade individual

2.      O parlamentarismo é rejeitado por diversos motivos:

a.       Acima de tudo, o parlamentarismo impede a indicação de responsabilidades

b.      O parlamentarismo visa a enfraquecer o poder

c.       A origem do parlamentarismo está no feudalismo inglês, com a reação da nobreza (depois burguesia) local contra o poder central e o comum do povo

                                                                      iii.      Augusto Comte estabelecia várias etapas na passagem da monarquia para a república normal:

1.      Após a extinção da monarquia, dever-se-ia estabelecer o governo temporal puramente material e, portanto, unipessoal

2.      Algumas fases intermediárias, caracterizadas pela difusão do Positivismo e, portanto, dos hábitos relativistas, altruístas, pacifistas etc.

3.      Com a difusão do Positivismo, isto é, dos hábitos próprios à positividade e ao estado normal, o poder central passaria a ser dividido entre três governantes

4.      Haveria uma câmara fiscal, isto é, orçamentária

e.       Seja em relação à sociocracia em geral, seja em relação à república em particular, o regime positivo tem algumas características fundamentais; entre elas, podemos no mínimo citar ou reiterar:

                                                                          i.      Separação entre os dois poderes

                                                                        ii.      Isonomia

                                                                      iii.      Garantias jurídicas das liberdades

                                                                      iv.      Pacifismo externo (antimilitarismo, anti-imperialismo, fim dos exércitos) e interno (polícia cidadã, deveres mútuos, respeito às opiniões)

4.      Atuação dos positivistas brasileiros em favor da República

a.       Antes de mais nada, é necessário afirmar que pelo menos desde o século XVIII o Brasil tem movimentos republicanos e que o republicanismo sempre foi muito difundido no país

                                                                          i.      Basta pensarmos na Inconfidência Mineira (1788-1789), na Confederação do Equador (1817), no período regencial (1831-1840) e na Revolução Farroupilha (1835-1845)

1.      Além desses movimentos autóctones, havia os exemplos dos Estados Unidos e de toda a América espanhola, além da França

                                                                        ii.      Da mesma forma, quando José Bonifácio articulou a independência do Brasil em 1821-1822, ele entendeu a instalação da monarquia de maneira instrumental, ou seja, sem ligar à monarquia qualquer valor próprio às monarquias efetivas (castas, direito divino dos reis)

1.      Em particular, José Bonifácio entendia que a monarquia era o único regime compatível com a escravidão

2.      Além disso, José Bonifácio temia que a república ocasionasse a fragmentação do país

                                                                      iii.      A afirmação da república e do republicanismo no Brasil é importante porque os monarquistas (assumidos, envergonhados ou disfarçados) desde sempre difundem a idéia de que a república no Brasil seria uma concepção “estrangeira”, “importada”, “estranha” ou, em última análise, que se difundiu apenas a partir de 1870

                                                                      iv.      A república era extremamente valorizada na cultura popular, em canções, modinhas, sambas, sátiras à monarquia etc.

b.      É necessário lembrar também que a monarquia brasileira não era muito respeitada e que instituía, mantinha e/ou baseava-se em uma série de problemas:

                                                                          i.      Escravidão à e, daí, degradação do trabalho, dos trabalhadores livres, dos escravos e dos libertos, além da produção do racismo

                                                                        ii.      Sociedade de castas

                                                                      iii.      Religião oficial

                                                                      iv.      Subdesenvolvimento econômico

                                                                        v.      Analfabetismo generalizado

                                                                      vi.      Filhotismo generalizado e burocracia não profissional à desprezo sistemático e ostensivo pelo mérito

                                                                    vii.      Violento imperialismo na região platina

                                                                  viii.      Fortíssima centralização política

c.       Em 1870, com o término da Guerra contra o Paraguai (1864-1870), ocorreu o restabelecimento formal de um movimento republicano brasileiro, com a fundação de um novo Partido Republicano, em Itu (São Paulo)

d.      Durante a Guerra contra o Paraguai, Benjamin Constant afirma-se positivista e republicano

e.       Em 1881 Miguel Lemos e Teixeira Mendes ingressam no Centro Positivista Brasileiro, assumem a liderança da entidade e transformam-na na Igreja e Apostolado Positivista Brasileiro

                                                                          i.      A partir daí Miguel Lemos e Teixeira Mendes desenvolvem uma propaganda crescente e enérgica tanto do Positivismo como doutrina quanto de aplicações do Positivismo à realidade brasileira:

1.      Fraternidade sul-americana (normalização das relações com o Paraguai, fim do imperialismo brasileiro na região platina)

2.      Fim imediato da escravidão

3.      Incorporação social do proletariado (incluindo os escravos e os libertos)

4.      Proclamação da República

5.      Promoção de uma cultura cívica positiva: Tiradentes, José Bonifácio

6.      Etc. etc. etc. etc.

f.       Miguel Lemos e Teixeira Mendes propunham a transformação orgânica da monarquia em república

                                                                          i.      Essa transformação dar-se-ia por ato de d. Pedro, que unilateralmente extinguiria a monarquia e todas as instituições a ela vinculadas

                                                                        ii.      Isso garantiria o caráter pacífico da transição: civil, não militar, não violento e não revolucionário

                                                                      iii.      A república a ser proclamada por d. Pedro – que passaria então a chamar-se apenas de “Pedro de Alcântara” – deveria ser, evidentemente, a república social e sociocrática

g.       Ao longo das décadas de 1870 e 1880 acumularam-se as “questões” contra a monarquia:

                                                                          i.      A Questão Religiosa

                                                                        ii.      A Questão Militar

                                                                      iii.      A campanha abolicionista

h.      Em 1887 fundou-se o Clube Militar, tendo como presidente Deodoro da Fonseca e vice-Presidente Benjamin Constant

                                                                          i.      Deodoro e Benjamin eram amigos pessoais, mas, muito além disso, simbolicamente essa presidência indicou a união das duas correntes do Exército de então – os doutores (Benjamin) e os tarimbeiros (Deodoro)

                                                                        ii.      Em 1887, o Clube Militar recusou-se a aceitar, para o Exército, o papel de capitão do mato à isso foi o golpe final e decisivo contra a escravidão (mantida ciosamente pela monarquia)

i.        Após a abolição da escravatura, todos reconheciam que a monarquia estava com os dias contados

                                                                          i.      A dinastia Orleans e Bragança não era mais respeitada, não tinha mais o apoio das elites econômicas – que até então sustentavam a escravidão via monarquia – e todos também temiam o eventual governo clericalista e estrangeiro de Isabel e Conde d’Eu

                                                                        ii.      A nomeação de um ministério “progressista” em 1889 foi apenas u’a medida desesperada, com objetivos de propaganda, para tentar frear o republicanismo

j.        Benjamin Constant lecionava na Escola Militar:

                                                                          i.      Era um professor extremamente respeitado e admirado

                                                                        ii.      Embora lecionasse em uma instituição militar, seu ensino era filosófico e civilista, ou seja, era antimilitarista

                                                                      iii.      À admiração por suas qualidades pessoais e docentes unia-se a empolgação pelo método e pelas doutrinas que ele esposava e empregava: no caso, as concepções de Augusto Comte

                                                                      iv.      Assim, Benjamin Constant reunia em si, objetiva e subjetivamente, qualidades pessoais e cívicas: a correção, o profissionalismo, o desprendimento, a devoção à causa pública – bem como o progresso, o desenvolvimento nacional, o abolicionismo, a república

                                                                        v.      Os alunos de Benjamin Constant eram a elite intelectual e profissional do Império e não estavam vinculados à degradação moral, social e política da monarquia

                                                                      vi.      Em virtude disso tudo, Benjamin Constant tornou-se o líder natural dos jovens e, por extensão, do republicanismo na Escola Militar

                                                                    vii.      Ao longo de 1889 a pressão pela república aumentou, fosse em grupos civis, fosse em militares; considerava-se que o apoio do Exército seria importante e, nesse sentido, Deodoro era figura central

                                                                  viii.      Benjamin entrou em acordo com Deodoro; com a participação de Rui Barbosa, marcaram o movimento de proclamação da República para o dia 20 de novembro

                                                                      ix.      Mas na madrugada de 14 para 15 de novembro correu um boato de que Deodoro e Benjamin seriam presos – e aí as coisas precipitaram-se: Deodoro reuniu suas tropas na Praça da República (antigamente Campo de Santana) e proclamou a República

1.      Houve movimentações na Câmara dos Deputados; na Corte, considerava-se que era um movimento apenas para a mudança de ministério

                                                                        x.      Constituiu-se o governo provisório, com oito ou nove membros; Deodoro foi indicado Presidente e Benjamin, Ministro da Guerra; dali a alguns dias chegou Demétrio Ribeiro, representando os republicanos gaúchos, que assumiu a pasta da Agricultura

 

Governo provisório

1)      Chefe do Governo Provisório — Deodoro da Fonseca

2)      Ministério da Justiça — Campos Sales

3)      Ministério da Marinha — Eduardo Wandenkolk

4)      Ministério da Guerra — Benjamin Constant, Floriano Peixoto e Antônio Nicolau Falcão da Frota

5)      Ministério dos Negócios Estrangeiros — Quintino Bocaiúva

6)      Ministério da Fazenda — Rui Barbosa e Tristão de Alencar Araripe

7)      Ministério do Interior — Aristides Lobo Cesário Alvim e Tristão de Alencar Araripe

8)      Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas — Demétrio Nunes Ribeiro, Francisco Glicério de Cerqueira Leite e Henrique Pereira de Lucena

9)      Ministério da Instrução Pública, Correios e Telégrafos — Benjamin Constant

 

                                                                      xi.      No dia 19 de novembro foi aprovada a nova bandeira nacional (Decreto n. 4); em 7 de janeiro de 1890 foi promulgado o Decreto n. 119-A, relativo à separação entre igreja e Estado; em 14 de janeiro foi editado o Decreto n. 155-B, com os feriados cívicos nacionais

                                                                    xii.      Devido às discussões internas ao governo provisório, Benjamin deixou em 12 de março a pasta da Guerra e, de maneira muito indicativa de seu caráter e seu temperamento (reflexivo, pacifista e civilista), assumiu a da Instrução Pública, Correios e Telégrafos; faleceu em 22 de janeiro de 1891

5.      Sobre a bandeira nacional

a.       A atual bandeira nacional republicana, de 19 de novembro de 1889, como se sabe, não foi a primeira; antes dela hasteou-se uma servil cópia verde e amarela da bandeira dos EUA, da autoria de Lopes Trovão

                                                                          i.      A bandeira atual foi elaborada por Raimundo Teixeira Mendes, pintada por Décio Vilares e auxiliada na parte astronômica por Manuel Pereira Reis; ela foi submetida a Benjamin Constant, que, na qualidade de membro do governo provisório, aceitou-a, ao mesmo tempo em que Deodoro já recusara o servil projeto de Lopes Trovão

                                                                        ii.      A totalidade da concepção da bandeira une a ordem ao progresso, a permanência do país ao progresso social e político:

1.      Ordem: mantém o projeto de José Bonifácio, com o retângulo verde e o losango amarelo, que, por sua vez, representavam inicialmente as cores das casas monárquicas de Portugal e da Áustria e, depois, as riquezas naturais (vivas: o verde das matas; mortas: o amarelo do ouro)

2.      Progresso: indica a mudança de regime, com a circunferência azul estrelada (idealizando o céu do Rio de Janeiro às 9h do 15 de novembro) e a faixa branca com letras maiúsculas verdes em que se lê “Ordem e Progresso”

                                                                      iii.      O “Ordem e Progresso” é uma divisa científica e política, indicando as duas formas fundamentais de analisar a sociedade (Sociologia Estática e Sociologia Dinâmica), que devem ser combinadas, e as duas tendências sociais que se deseja e que também devem ser combinadas em toda sociedade (a permanência social e o seu progresso)

b.      Há um movimento atual que afirma que se deve inserir a palavra “Amor” antecedendo o “Ordem e Progresso”

                                                                          i.      Apesar da correção moral da ênfase no amor, esse movimento difunde de maneira coordenada um relato padronizado, genérico, errado do ponto de vista histórico e extremamente preconceituoso

1.      Esse movimento justifica a inclusão do “amor” referindo-se – corretamente, é claro – à situação sociopolítica atual, caracterizada pela divisão social e pelo fascismo

                                                                        ii.      Mas: entre outras coisas discutíveis, esse movimento argumenta que “os homens que se reuniram para fazer a bandeira tiraram/rejeitaram/esconderam/desprezaram o amor”

1.      Esse relato sugere então que a base do “Ordem e Progresso” seria a fórmula religiosa do Positivismo, “O amor por princípio...”, em vez de ser uma fórmula bastante por si só

2.      Além disso, segundo esse relato, Teixeira Mendes teria sido mal, ou vil, ou egoísta, ou mesquinho, e teria tirado o “amor” para que a sociedade brasileira fosse baseada no ódio

a.       Um exemplo recentíssimo desse relato é o de Denise Fraga, em 27.10.2022, em um evento em apoio à candidatura de Lula para Presidente da República

                                                                      iii.      Esse movimento também repete que “não há informações a respeito da elaboração da bandeira”

1.      Eis um exemplo publicado há alguns dias, que apresenta esses diversos erros:

 

“Segundo o professor de História Djalma Augusto, a elite brasileira que instituiu a República foi muito influenciada pelo positivismo e pode ter suprimido a palavra amor na versão final da bandeira brasileira. Porém, o professor ressalta que não há uma consideração teórica ou uma referência muito clara sobre a supressão da palavra amor, o que torna a questão difícil de ser discutida” (Thaís Silveira, “‘Ordem e Progresso’: um país sem amor?”, 15.11.2022, Portal “Nós”).

 

c.       Entretanto, sistematicamente nós positivistas somos ignorados e desprezados no que se refere à bandeira – como, de resto, somos ignorados, desprezados, silenciados a respeito de qualquer coisa que nos diga respeito

                                                                          i.      Eu realizei inúmeros esforços para ser ouvido: em 2021 fui ouvido muito rapidamente e de má vontade pelo grupo “Amor na bandeira” – mas logo descartado e ignorado, como um intruso

d.      Vale lembrar que está na moda político-intelectual um conceito dos identitários: trata-se da tese excludente e sectária do “lugar de fala”

                                                                          i.      O “lugar de fala” estabelece uma reserva de mercado, ou uma cota retórica, em que somente “nós” (os integrantes do grupo identitário) podemos falar sobre nós e os “outros” não podem, ou podem desde que sejam vigiados e supervisionados por “nós”

                                                                        ii.      Embora o “lugar de fala” seja largamente aplicado nos dias atuais, como não poderia deixar de ser aos positivistas é negada qualquer possibilidade de ter seu próprio “lugar de fala”

e.       Os dados sobre a bandeira nacional estão disponíveis para quem quiser, na internet: seja no meu blogue, seja no portal Archive Internet, seja nos livros de Ivan Lins

                                                                          i.      Raimundo Teixeira Mendes e, depois, também Miguel Lemos publicaram uma série de artigos explicando e justificando a concepção da bandeira nacional; esses artigos começaram já em 24 de novembro de 1899, no Diário Oficial; eles foram reunidos em um livro intitulado A bandeira nacional, publicação n. 110 da série da Igreja Positivista do Brasil (cf. p. ex. p. 8-9 e 58-59)

                                                                        ii.      Há indicações na biografia de Benjamin Constant publicada por Teixeira Mendes logo após a morte do fundador da República, em julho de 1891

                                                                      iii.      Uma cópia digital da primeira edição da História do Positivismo do Brasil, de Ivan Lins, está disponível na internet

                                                                      iv.      Minhas publicações sobre a bandeira nacional estão disponíveis aqui

f.       Entrando na reflexão substantiva sobre o “Ordem e Progresso”: ele é uma fórmula por si só, de caráter científico e político

                                                                          i.      Doutrinariamente, é evidente que o “Ordem e Progresso” pode ser deduzido do “Amor por princípio”; entretanto, ele é uma fórmula por si só e cronologicamente foi elaborado antes do “Amor por princípio” – na verdade, o “Ordem e Progresso” foi a base do “Amor por princípio”

g.       As indicações de Augusto Comte a respeito das bandeiras são claras:

                                                                          i.      Na fase normal, deverá haver duas bandeiras, uma religiosa e universal (branca e verde, com a figura da Humanidade e o “Amor por princípio”, uma em cada lado) e uma política e nacional (branca e verde, com “Ordem e Progresso” e “Viver para outrem”, uma em cada lado, com bordas com as cores nacionais)

1.      Nas bandeiras nacionais, de caráter político, a sugestão do “Amor” está presente no “Viver para outrem”

2.      O “Ordem e Progresso” é uma divisa científica, política e masculina; o “Viver para outrem” é moral e feminina

3.      Essas indicações estão presentes na Política positiva: volume I, página 387, e volume IV, página 422

h.      Como Hernani Gomes da Costa observou há alguns, o conectivo “e” representa o amor, na medida em que a união da ordem com o progresso só se dá por meio do amor

i.        Antes do segundo turno das eleições de 2022, divulgamos o abaixo-assinado intitulado “A bandeira nacional não é fascista”

 

A BANDEIRA NACIONAL REPUBLICANA NÃO É FASCISTA

(Abaixo-assinado)

Para: População brasileira

Os abaixo-assinados – quer sejam positivistas, quer não sejam positivistas; reconhecendo e respeitando os valores e princípios subjacentes aos símbolos nacionais brasileiros, em particular a bandeira nacional republicana; reconhecendo a dramática situação política, social, intelectual e econômica vivida pelo Brasil no ano de 2022; considerando a apropriação cada vez mais reiterada dos símbolos nacionais por grupos sociais e políticos particularistas, violentos e intolerantes – têm a dizer o seguinte.

1. Os valores da bandeira nacional

A bandeira republicana brasileira foi instituída como símbolo nacional em 19 de novembro de 1889, quatro dias após a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889. Ela foi elaborada por Raimundo Teixeira Mendes a partir das indicações precisas do fundador da Sociologia, do Positivismo e da Religião da Humanidade, Augusto Comte.

Símbolo nacional maior por excelência, ela une de maneira simples, elegante e harmônica o desenvolvimento histórico e a continuidade social, ao manter o fundo verde e amarelo da bandeira monárquica e ao inserir a esfera estrelada azul e a divisa política “Ordem e Progresso”, próprias à evolução republicana do país. Assim, essa bandeira segue a inspiração de “preservar melhorando”, de acordo com as leis da sociologia dinâmica descobertas por Augusto Comte.

A frase “Ordem e Progresso” representa o ideal de unir indissoluvelmente duas perspectivas políticas até então opostas, o respeito à ordem e a necessidade de progresso. Separadas, cada uma dessas perspectivas torna-se antagônica em relação à outra, de tal maneira que a ordem transforma-se em ordem retrógrada e opressiva e o progresso torna-se caótico e também opressivo. Apenas a união das duas perspectivas, em que ambas sejam simultaneamente respeitadas e valorizadas, torna possível que cada uma delas seja cumprida. A ordem consiste na consolidação do progresso, ao passo que o progresso é o desenvolvimento da ordem; o vínculo entre ambos é o amor, que, em termos políticos, deve ser entendido em termos de fraternidade, respeito mútuo e tolerância.

Em particular, o respeito à ordem não equivale à submissão cega ou servil ao poder político; da mesma forma, a verdadeira relação entre o poder e os cidadãos não é a de um soldado que se submete ao seu comandante. Nada disso é liberdade ou cidadania, mas autoritarismo, militarismo e submissão abjeta.

2. A política positiva

A bandeira nacional republicana, bem como a divisa “Ordem e Progresso”, inspiram-se e representam os conceitos da política positiva; estes, por sua vez, podem ser sumariados como seguem:

- subordinação da política à moral: subordinação da política aos princípios e valores maiores da Humanidade, em que a família subordina-se à pátria e a pátria subordina-se à Humanidade; subordinação das perspectivas específicas e particulares às concepções gerais e mais amplas; primado da publicidade e da racionalidade na vida coletiva, em particular nas ações com resultados públicos; afirmação dos deveres sociais, em particular responsabilizando claramente os fortes, os poderosos e os ricos por suas ações e omissões;

- separação entre os poderes Temporal e Espiritual: rejeição de todo e qualquer clericalismo (teológico, metafísico e científico); rejeição do uso do Estado para promoção ou repressão de crenças, exceto no caso em que elas estimulem e/ou provoquem a violência; rejeição da eleição ou da indicação de sacerdotes para cargos públicos; defesa das liberdades de pensamento, de expressão e de associação;

- pacifismo: rejeição de toda e qualquer violência na política (seja do Estado contra os cidadãos, seja dos cidadãos entre si), em particular na forma das agressões de policiais contra cidadãos; rejeição da atuação de militares e policiais na política; possibilidade de manifestar livremente as idéias e as concepções pessoais sem correr nenhum risco (físico e/ou profissional) por isso;

- relativismo: prática da tolerância para com as diferentes crenças e religiões; respeito e proteção às comunidades indígenas; condenação de toda prática violenta na vida social.

3. Os fascistas contra o Positivismo

Desde pelo menos 2019, grupos fascistas e de extrema-direita têm manifestado a pretensão de tomar exclusivamente para si, de maneira sectária, a bandeira nacional republicana, incluindo aí o “Ordem e Progresso”. Diversas manifestações desses mesmos grupos evidenciam, entretanto, não somente que eles afastam-se dos ideais expressos na bandeira nacional republicana e no “Ordem e Progresso” como, ainda mais, são opostos e desprezam esses valores.

Assim, por exemplo, o mote do atual governo federal, que resume o programa fascista, é “Brasil acima de tudo e deus acima de todos”. Essa única frase rejeita ao mesmo tempo os princípios (1) da subordinação de todas as pátrias aos supremos interesses da Humanidade e (2) da separação dos poderes Temporal e Espiritual; inversamente, ela (1) estabelece como parâmetro de conduta o nacionalismo mais estreito e (2) a imposição oficial de doutrina teológica. Se isso não bastasse, o verso “Brasil acima de tudo” não por acaso retoma a frase empregada pelo regime nazista, “Alemanha acima de tudo” (Deutschland über alles).

Da mesma forma, não podemos esquecer as reiteradas manifestações de profundo ódio e preconceito político desses grupos contra o Positivismo, com o que mais uma vez evidenciam que desprezam os valores da bandeira nacional e o “Ordem e Progresso”:

- “Os positivistas são lixo que necessitam ser expurgados” (Carlos Bolsonaro, 8/3/2020)

- “Os positivistas são o pior câncer do Brasil” (Carla Zambelli, 5/7/2020)

- “Enquanto a gente não resolver o positivismo, a gente não consegue desmontar o comunismo, socialismo, a esquerda no Brasil” (Abraham Weintraub, 27/6/2022).

4. Declaração final

Os valores, os ideais, as concepções subjacentes à totalidade da bandeira nacional republicana, incluindo aí a divisa “Ordem e Progresso”, condensam os melhores e mais altos princípios da política moderna. Todos esses princípios são profundamente estranhos à filosofia e à prática do fascismo. Mais do que isso: como se sabe, o fascismo baseia-se no estímulo sistemático e no uso político da violência; na militarização e na “policialização” da sociedade; na imposição de crenças pelo Estado e na busca de supressão das crenças não oficiais; no nacionalismo extremado, na xenofobia, na intolerância.

É em virtude de todos esses motivos que afirmamos sem medo de errar:

A BANDEIRA NACIONAL REPUBLICANA NÃO É FASCISTA!

 

6.      Para concluir

a.       Esta conferência teve dois ou três objetivos:

                                                                          i.      Celebrar a República

                                                                        ii.      Celebrar a atuação dos positivistas na República

                                                                      iii.      Esclarecer alguns aspectos supostamente controversos (mas baseados unicamente na ignorância interessada) sobre os positivistas

                                                                      iv.      Afirmar a perspectiva própria ao Positivismo, contra a censura promovida pela direita e pela esquerda, incluindo aí o movimento “Amor na bandeira”